OCIDENTE
/ ORIENTE
UMA CONVERSA COM HAROLDO DE CAMPOS
- Haroldo de Campos -
por Maria Esther Maciel
A ocidentalidade da América Latina não se define
senão pela via do paradoxo. Somos e não somos
Ocidente, diria Octavio Paz. Somos ocidentais pela força
da geografia, das cartografias, das caravelas, de todos os
artifícios da colonização e da modernização.
Não o somos, porque nosso lugar na história
cultural do Ocidente inscreve-se nas margens e nos desvãos
dessa mesma história, está dentro e fora do
mapa que nos circunscreve.
Traços dessa ocidentalidade
paradoxal podem ser vistos na nossa relação
dialógica com o outro, com os outros: naquilo que Lezama
Lima chamou de "protoplasma incorporativo" do latino-americano
e que Oswald de Andrade condensou na metáfora da antropofagia.
Traduzir/deglutir alteridades próximas e distantes,
transitar entre um cosmopolitismo sem fronteiras e um americanismo
feito de matizes e rizomas. É este o movimento que,
no campo da literatura, tem definido o trabalho de muitos
escritores modernos e contemporâneos da América
Latina.
No que se refere ao diálogo
específico de nosso continente com as culturas do Oriente,
pouco ainda se investigou. Como se conjugaria a ocidentalidade
oblíqua dos latino-americanos com as várias
vertentes culturais do Japão, da China, da Índia,
do Oriente Médio? Que espaço tiveram/têm
essas vozes no contexto latino-americano do presente? Como
se configura (ou se revela) nossa porção oriental?
No que se refere ao diálogo
específico de nosso continente com as culturas do Oriente,
pouco ainda se investigou. Como se conjugaria a ocidentalidade
oblíqua dos latino-americanos com as várias
vertentes culturais do Japão, da China, da Índia,
do Oriente Médio? Que espaço tiveram/têm
essas vozes no contexto latino-americano do presente? Como
se configura (ou se revela) nossa porção oriental.
Nesta entrevista a mim
concedida em fins de 1997 e revisada pelo próprio poeta
em 2002, HAROLDO DE CAMPOS detém-se nessas e outras
questões. Como um dos mais inventivos leitores e "transcriadores"
de textos orientais de nosso continente, trata das relações
entre a poesia latino-americana e o legado poético
do Oriente, da presença de traços orientais
em poemas modernistas de língua inglesa e portuguesa,
das interseções culturais entre Brasil e Japão
e de sua própria experiência enquanto tradutor
da poesia japonesa. Pelo viés da erudição
e da lucidez crítica, revisita os caminhos e descaminhos
da literatura latino-americana em seus trânsitos e trocas
culturais, além de reconfigurá-la e recontextualizá-la
no espaço mais amplo e constelar das Américas.
Zunái: Sabe-se que a literatura latino-americana
sempre teve como um de seus traços constitutivos a
habilidade de incorporar criativamente elementos de outras
culturas, movida pelo que você mesmo chamou de "razão
antropofágica". Seria essa vocação
para a multiplicidade e para a "otredad" um traço
diferencial de nossa literatura em relação às
literaturas canônicas do Ocidente?
Haroldo de Campos:
Eu acho que o latino-americano foi e tem sido, até
um determinado momento, o terceiro-excluído, ou seja,
sua literatura foi entendida como uma literatura menor ou
receptora (o próprio Antonio Candido define a literatura
brasileira como um galho menor de uma árvore menor
que seria a literatura portuguesa). Tenho uma idéia
diferente, pois não considero que existam literaturas
maiores ou menores. Acho que existem diferentes contribuições
à literatura universal, à grande literatura.
Assim, o fato de Gregório de Matos ser considerado
um genial discípulo de Gôngora não tirará
jamais a especificidade da contribuição dele:
haverá lugar na grande literatura para Gôngora
e para Quevedo e haverá para Gregório de Matos,
que tem coisas que só se encontram em Gregório
de Matos. Este é o mesmo caso de Sor Juana Inés
de la Cruz, que embora discípula direta de Gôngora,
na interpretação, por exemplo, de Octavio Paz,
faz coisas que prenunciam Mallarmé, prenunciam Huidobro
e que não estavam sequer no horizonte da poesia gongorina.
Minha idéia é esta: não existem literaturas
menores, mas contribuições distintas no concerto
da literatura universal. Sob essa perspectiva, os latino-americanos,
nessa literatura, inscrevem constantemente suas diferenças,
desde a chamada fase colonial. Aliás, no caso brasileiro
há um fato curioso, observado, com muita razão,
por um estudioso do barroco baiano, que é o João
Gomes Teixeira Leite, autor do Boca de Brasa. Em um artigo,
ele mostra o seguinte: que nem sequer é correto dizer
que a literatura brasileira era um ramo menor de uma árvore
menor porque a literatura brasileira produzida na época
do barroco era um ramo não da literatura portuguesa,
mas da literatura espanhola, pois Portugal estava sob a égide
da Espanha e os poetas do barroco (para nem falar do Padre
Anchieta, que era canário) escreviam tanto em português
quanto em espanhol. Gregório de Matos tem poemas bilingües,
tem alguns em espanhol, e sobretudo enxerta castelhanismos
na língua portuguesa. Manoel Botelho de Oliveira, cuja
Musa do parnaso, no prólogo, refere-se a Portugal como
uma província da Espanha, tem uma seção
em português, outras em espanhol, em italiano e em latim.
Além disso, a literatura espanhola da época
não era uma árvore menor, era uma literatura
do Siglo de Oro, era uma das mais importantes do mundo. Assim,
a tese de que nossa literatura é um ramo menor da literatura
portuguesa acaba sendo uma construção um pouco
idealizada, ideológica. Uso aqui a palavra ideologia
no sentido específico, ou seja, transformar um interesse
particular em um interesse geral, transformar, por exemplo,
a ótica do romantismo, que é a tônica
da emancipação nacional, em ótica da
literatura em geral. Como se o barroco tivesse que ser excluído
de uma formação, por não responder à
ótica da literatura nacional e àquele sistema
literário nela articulado. Então, na opinião
desse ou daquele, a literatura brasileira poderia ser considerada
uma literatura menor, mas essa não é definitivamente
a minha posição. Mesmo do ponto de vista histórico-contextual,
como já apontei, a nossa literatura não era
um galho da portuguesa, mas um galho da literatura espanhola
do Siglo de Oro, da qual a portuguesa também era tributária.
Os poetas portugueses da época eram todos eles gongorinos,
vide o trabalho de Ayres Montes sobre Gôngora e a poesia
portuguesa. Durante muitos anos, depois da restauração
de 1640, vários críticos da literatura portuguesa,
como João Gaspar Simões, não podiam ouvir
falar de barroco, pois barroco significava Espanha.
Nossas literaturas, chamadas
literaturas terceiro-mundistas, marginais ou periféricas,
designações que, a meu ver, não descrevem
a realidade, contrariamente a outras, que têm vocação
mais monolingüe e imperialista (como é o caso
específico, por exemplo, de certa parte da literatura
francesa e de certa parte da literatura norte-americana),
têm uma vocação universal, universalista.
Entre os exemplos marcantes disso, podemos citar Borges, um
latino-americano que acabou virando símbolo da literatura
universal, em várias dimensões. Ele teve muito
interesse pelo Oriente, pela literatura hebraica, islandesa,
escandinava etc.
Zunái:
Borges reivindicava, inclusive, o direito de o latino-americano
usufruir do repertório literário universal,
que também nos pertence tanto quanto aos que se acham
donos dele. Nesse sentido, Hamlet ou Dom Quixote são
tão nossos quanto dos ingleses ou dos espanhóis...
Haroldo: Exatamente.
E Borges foi um exemplo vivo disso. Teve uma formação
na Suíça, suas leituras iniciais foram mais
em inglês, por força do ambiente em que ele nasceu,
leu Don Quijote pela primeira vez em um versão para
o inglês, era contemporâneo do grupo expressionista
alemão, participou da vanguarda, do ultraísmo
espanhol.
Zunái: E
é notável como a esse chamado repertório
universal também inserimos outras culturas não-ocidentais,
não é mesmo? Como você abordaria o grande
interesse de nossos escritores pelo Oriente?
Haroldo: No que
se refere ao interesse dos latino-americanos pelo Oriente,
posso dizer que isso aconteceu no âmbito das Américas,
e não apenas da América Latina. Nas Américas
houve realmente uma extraordinária preocupação
no alto modernismo norte-americano. Nesse momento, o intelectual
norte-americano também era um exilado, queria morar
na Europa, também tinha esse problema de se sentir
um pouco marginal. Tanto que migrava para o centro. Se o latino-americano
sente-se desterrado desde sempre, o desterro do norte-americano
se faz ver nos anos 20, visto que os protagonistas do alto
modernismo de língua inglesa foram todos eles auto-exilados.
É o caso de Pound e é o caso de Eliot, que adotou
inclusive a cidadania inglesa. E ambos, exatamente por essa
condição de se sentirem acuados dentro do marco
americano e quererem expandir seus horizontes ao ponto de
migrarem para a Europa, abriram-se também para as mais
diferentes culturas. Eliot, por exemplo, em The Waste Land,
incorpora inclusive citações da literatura sânscrita,
enquanto Pound, desde logo, se interessou pela China e pelo
Japão, o que o levou a traduzir poesia clássica
chinesa e teatro Nô japonês, com base nos manuscritos
de Fenollosa, já que nessa época ainda não
sabia nada de chinês e nada de japonês. Aliás,
japonês ele nunca estudou. O chinês ele estudou,
sobretudo depois da primeira fase, quando fez as primeiras
traduções, que foram as fundamentais , aquelas
em que, segundo Eliot, Pound inventou a poesia chinesa em
língua inglesa. Depois disso ele realmente fez estudos
de chinês, como autodidata, e a um certo momento já
tinha um conhecimento bem razoável do idioma.
Zunái: E no caso específico dos poetas
da América Latina, como se evidenciou essa abertura
às formas poéticas orientais?
Haroldo: Há
o caso do poeta Juan Tablada, no México, e no Brasil
temos o caso curioso de um poeta que, embora não tenha
propriamente uma articulação com a poesia oriental,
tem uma vocação orientalizante, de síntese,
que é o Oswald de Andrade, com sua poesia Pau-Brasil.
Um poema como amor/humor é um poema-minuto, um quase
haikai.
Zunái: Havia algum interesse explícito
de Oswald de Andrade pela poesia oriental ou seu traço
orientalizante era, vamos dizer, involuntário?
Haroldo: Eu não
acredito que houvesse um interesse explícito. Havia,
sim, essa vocação para a síntese que
acabava se aproximando da poesia oriental. Agora, naquela
geração, houve um exemplo bastante curioso de
um grande amigo dele, modernista moderado, que era o Guilherme
de Almeida, que não apenas foi o primeiro presidente
da Associação Cultural Brasil-Japão,
em São Paulo, como também inventou um sistema
peculiar para traduzir haikais japoneses, usando rimas, com
resultados às vezes muito interessantes. Ele conseguia
breves poemas, luminosamente articulados em imagens e sons,
próprios de um grande artesão. Aliás,
ele era mais interessante como tradutor do que como poeta.
Como poeta, era um modernista tradicional, e como tradutor
teve momentos excelentes. Não só traduziu esses
haikais, mas fez também a tradução de
François Villon, em português medieval, ou a
tradução (que estou preparando para reeditar
na coleção Signos da Editora Perspectiva) da
Antígona de Sófocles, diretamente do grego.
Tanto quanto eu conheça, é a melhor tradução,
a mais criativa em língua portuguesa, de uma tragédia
grega. Guilherme de Almeida tem, assim, essa contribuição
bastante importante. Dessas pessoas que trabalharam com o
haikai nessa primeira geração do modernismo
brasileiro, creio que Guilherme de Almeida foi o mais interessante.
Zunái: E nas gerações posteriores?
Haroldo: No caso
da poesia posterior, temos que considerar um poeta como Paulo
Leminski, que conhecia o idioma japonês, traduziu, escreveu
um livro precioso sobre Bashô e incorporou em sua poesia
uma forma específica de haikai. Existe por aí
também muita diluição, pois se no haikai
a brevidade é muito difícil de ser conseguida,
é também confundida com uma grande facilidade.
Daí uma série de incursões epigonais,
uma certa moda haikaísta em que não estou interessado.
Estou interessado, sim, no haikai radical, o haikai como,
por exemplo, ocorre na poesia de Paulo Leminski. Não
necessariamente um haikai seguindo as regras do modelo japonês,
mas um haikai reinventado em termos pessoais, às vezes
paródico. Ou como o haikai involuntário, como
aquele do Oswald de Andrade, amor/humor, que de fato é
um poema extraordinário na sua concisão.
Zunái: E como se dá a sua própria
atitude como poeta, tradutor e crítico, diante da poesia
oriental?
Haroldo: A minha
atitude já foi uma atitude muito mais projetada e programada.
O Leminski, que era bem mais moço, também teve
uma atitude projetada, mas já como um herdeiro altamente
criativo da nossa geração. No meu caso específico,
o contato com a poesia oriental foi projetado: primeiro, com
a admiração por Pound; depois, com a idéia
da poesia concreta e do método ideogrâmico. E
a um certo momento pensei: se estou falando de ideograma,
vamos ver como isso funciona na prática. E aí
coincidiu que 1956 foi o ano da fundação do
Centro Cultural Brasil-Japão, cujo primeiro presidente
foi, como já disse, o Guilherme de Almeida. Aí,
eu e minha mulher, Carmen, nos inscrevemos em uma das primeiras
turmas do curso de japonês, que tinha como professor
um baiano de Feira de Santana. Chamava-se José Santana
do Carmo e tinha aprendido japonês para ensinar a crianças
filhas de imigrantes em Marília. Acabou fazendo uma
primeira gramática muito interessante da língua
japonesa. Ele dominava com perfeição o idioma,
tanto na fala quanto na escrita, era um bom calígrafo
e, além disso, até fisicamente ele começou
a virar meio japonês. No curso aprendi o básico
e depois contratei o Santana como professor particular, pois
meu interesse era mais voltado para os ideogramas, para a
língua escrita, e o pessoal da escola não queria
que ele entrasse muito nos ideogramas, nos cursos regulares
de conversação. Foi aí que comecei a
fazer minhas primeiras traduções com o auxílio
do Santana, publiquei no jornal O Estado de São Paulo
e depois, através de um boletim que circulava entre
as pessoas ligadas ao círculo do Ezra Pound, vi referências
a um poeta japonês, Kitasono Katsue, que tinha mantido
correspondência com Pound nos anos 30 e que fazia uma
poesia de vanguarda. Entrei em contato com esse poeta através
de carta, falando da poesia concreta, mandando algumas traduções
para o inglês de poemas nossos. Ele nunca respondeu
diretamente a essa carta, mas me mandou o exemplar de uma
revista que ele dirigia, chamada Vou, na qual publicava um
poema concreto japonês (que Santana e eu traduzimos
para português), feito de repetições,
de enumerações combinatórias numa técnica
realmente concreta, com algumas imagens às vezes surrealistas,
mas muito despojado e utilizando elementos ideográficos
como nós utilizamos os caracteres alfabéticos.
Era uma técnica gestáltica, que aproveitava
elementos da língua japonesa, com técnicas ocidentais.
É curiosa essa reversão. Eu falo disso, no final
do meu ensaio no livro Ideograma, como uma passagem: primeiro
houve a influência do ideograma numa língua fonética,
depois houve a passagem dessa poesia ideogramática
em uma língua fonética, que seria a poesia concreta
brasileira, para os japoneses que, por sua vez, passaram a
utilizar técnicas alfabético-gestálticas
de proximidade e semelhança com caracteres ideográficos.
A última página de meu ensaio é a transcrição
de um poema de um dos mais importantes poetas concretos japoneses,
Seiichi Niikuni. O poema, sobre a chuva, era como aquele caligrama
do Apollinaire, "Il pleut", só que o pictograma
japonês e chinês para a chuva é um céu
com uns pinguinhos. Os pinguinhos caligráficos do ideograma
eram organizados numa ordem gestáltica, inspirada no
tratamento que nós dávamos ao problema. Assim,
foi realmente uma aproximação com o Oriente
em termos programáticos: havia o fascínio pelo
ideograma chinês, o método ideogrâmico
do Pound, da poesia concreta, as primeiras traduções
de haikais, o contato com Kitasono, a tradução
do poema concreto que ele compôs, e assim por diante.
Foram feitas várias exposições de poesia
concreta no Japão, a primeira no Museu Nacional de
Tóquio, apresentada pelo Kitasono, depois houve exposições
conjuntas com alemães que estavam também fazendo
poesia concreta. O compositor e poeta brasileiro Luis Carlos
Vinholes, ligado a nosso grupo e radicado por muitos anos
em Tóquio, foi providencial como mediador dessas iniciativas.
Zunái: E atualmente? Como têm sido suas
relações com a cultura japonesa?
Haroldo: Atualmente
continuo mantendo contatos com alguns poetas. Morreu o Kitasono,
morreu o Seiichi Niikuni, mas há alguns poetas novos
com os quais tenho contato e há um poeta da minha geração,
Fujitomi Yasuo, tradutor do cummings para o japonês,
com quem até hoje mantenho contato. Mais recentemente,
estabeleci uma amizade muito cordial e cada vez mais próxima
com um poeta que não é propriamente da linha
visual, mas de uma linha experimental que eu chamaria jazzístico-visual-performática,
Gôzô Yoshimasu. É um poeta de uns 57 anos,
um dos mais conhecidos poetas japoneses contemporâneos,
casado há muitos anos com uma brasileira chamada Marília,
que é cantora e compositora. Juntos, fazem performances
maravilhosas. Cheguei a traduzir alguns poemas dele e ele
está interessado em verter alguns fragmentos das Galáxias
para o japonês. Fizemos inclusive uma apresentação
em um encontro de poesia em Medellín: verti dois poemas
dele para o espanhol e fizemos uma leitura conjunta em japonês
e espanhol, enquanto Marília cantava fragmentos em
inglês. Foi um sucesso extraordinário.
Zunái: Você
chegou a fazer alguma experiência com renga, à
maneira da que Octavio Paz fez com Jacques Roubaud, Edoardo
Sanguinetti e Charles Tomlinson, cada um valendo-se de uma
língua diferente, por volta de 1970? A renga é
uma forma de poesia japonesa muito rica, por ter como um de
seus princípios constitutivos (acredito que o mais
importante) a alternância de autores. E pelo que se
pode constatar na sua trajetória intelectual, você
é um poeta afeito a trabalhos conjuntos, além
de ter uma grande vocação babélica.
Haroldo: Aquele
tipo de experiência eu nunca cheguei a fazer. Casualmente,
quando o Paz participou da experiência com a renga,
eu estava em Paris e cheguei a assistir à sessão
terminal. O único problema com aquela renga é
que, se bem me recordo, ela tinha como estrutura o soneto.
Eu acho que o soneto não se presta muito bem à
renga, porque é muito longo como medida. O ideal seria
fazer uma medida mais curta.
Zunái: Havia também a proposta de uma
escrita automática, de feição surrealista,
não é mesmo?
Haroldo: Ah, sim,
havia. Eu também escrevi e publiquei algo muito mais
ambicioso: um poema chamado "Renga em Nova York".
Isso, porque houve um projeto de se fazer uma renga em Nova
York com o Roubaud e um poeta americano, mas, como não
foi adiante, acabei escrevendo uma renga sozinho. Aliás,
existe uma tradição de renga-solo. Grandes poetas
de renga fizeram não apenas o poema encadeado coletivamente,
mas também foram solistas, compondo um poema de autoria
única. Nessa minha renga utilizei uma terza rima dantesca,
mantendo aquele esquema de rimas, com um elo saindo de outro
e com um tom muito irônico. Assim, posso dizer que meu
approach nutriu-se desses interesses de ordem mais lingüística,
que é como sempre acontece comigo. Se estou interessado
na Bíblia, estudo o hebraico; se me interesso pela
poesia russa, estudo o russo. Ou seja, faço um adestramento
na língua, adquiro um conhecimento funcional que me
permite manejar dicionários e trabalhar com fontes
bilingües.
Zunái: Como você abordaria a experiência
oriental de Octavio Paz? Em que medida vocês se aproximariam
e se distinguiriam em relação a esse approach
com o Oriente? Percebe-se claramente que o interesse de Paz
não se circunscreve ao âmbito da linguagem, mas
se abre a outros aspectos de ordem mais cultural...
Haroldo: Realmente,
o caso de Paz é distinto. Ele teve um grande conhecimento
cultural sobre a China, o Japão e, principalmente,
a Índia. Escreveu sobre o erotismo, a religião,
a história, a cultura, com muita profundidade. É
um grande erudito nessas matérias. Sua abordagem é
mais culturalista, enquanto a minha é mais concentrada
no problema material do poema e da linguagem. Para ele não
é fundamental nesse projeto culturalista, para a realização
do qual ele manipula uma larga e sofisticada bibliografia
em francês, inglês, espanhol, o estudo específico
das línguas. O Paz trabalha, para efeito de traduções
de poemas, sejam de origem chinesa, japonesa ou hindu e sânscrito,
com versões intermediárias. Mas como ele tem
um ótimo artesanato poético, é capaz
de transformar esses poemas dessas várias fontes em
poemas de muita qualidade em espanhol, que logo se integram
como partes componentes de sua própria poesia. A única
coisa que não é dado a ele fazer, exatamente
porque isso depende de um mergulho mais em profundidade na
própria materialidade da língua, é o
tipo de trabalho que faço, que é um trabalho
hiper-radical, que consiste em aproveitar efeitos e sugestões
dos próprios ideogramas originais. Isso não
quer dizer que ele não faça excelentes traduções.
Elas têm, inegavelmente, um resultado estético
muito eficiente em espanhol. São traduções
de alto nível, que compensam, digamos assim, a não
abordagem do poema em seu extrato material, já que
o Paz se vale de fontes intermediárias, com um profundo
conhecimento da cultura, da religião, etc, que o ajuda
a reinventar o poema em espanhol, seu idioma.
Zunái: Creio que, além dos interesses
de ordem intelectual que movem cada um de vocês, entra
aí também a questão da história
pessoal, das experiências vivenciais de cada um, não?
Ainda que você seja um cosmopolita, com admirável
capacidade de transitar em várias línguas e
linguagens, faça freqüentes viagens internacionais
e se mantenha sempre em diálogo com o resto do mundo,
seu topos é mais estável em terras brasileiras.
Já o Paz, em decorrência de suas próprias
atividades profissionais, viveu muitos anos em outros países
que não o México, tendo um contato direto com
culturas diferentes, como as do Japão e da Índia.
Isso, sem dúvida, interferiu na sua maneira mais culturalista
que lingüística de lidar com as literaturas desses
países.
Haroldo: Sim. E
posso dizer que o traço definidor de Paz foi sua profunda
imersão na cultura hindu em suas várias dimensões.
Ele conheceu os monumentos, acompanhou os rituais, teve uma
vivência das tradições religiosas, como
o Tantrismo, por exemplo.
Zunái: Daí o poema Blanco ser uma espécie
de reinvenção tântrica do "Un coup
de dés"...
Haroldo: Exatamente. O Blanco aproveita o Un coup de
dés via tantrismo, o que é fantástico.
Assim, eu diria que temos ópticas diferentes e até
complementares na maneira de lidar com o Oriente. No meu caso,
não tenho a vocação culturalista do Paz.
Se eu fosse traduzir poesia hindu, minha possibilidade de
fazê-lo seria através do estudo da língua
e, mais uma vez, seguindo aquele procedimento que vai do concreto
mais rudimentar, que é o conhecimento da língua,
até o estudo das formas literárias mais elaboradas.
Zunái: Creio que tanto o seu procedimento quanto
o do Paz possibilitam uma reconfiguração do
próprio conceito de literatura universal, que sempre
esteve circunscrito aos cânones do Ocidente.
Haroldo: Isso me
lembra uma observação de um professor de Literatura
Comparada, Earl Miner, grande especialista sobretudo em cultura
japonesa, autor de vários trabalhos importantes, que
num livro editado pela Universidade de Brasília sobre
Literatura Comparada, chama a literatura ocidental de provinciana,
visto que ela se considera a única expressão
literária existente, ignorando soberanamente expressões
literárias milenares, como a chinesa, a japonesa, a
hindu, a islâmica, a persa. Para ele, são poucos
os escritores ocidentais que se dão ou deram conta
de que a literatura não se passa apenas nesse mapa
ocidental. A literatura não tem apenas raízes
greco-hebraicas, nem apenas se dá nesse espaço
das línguas preferenciais do Ocidente.
Zunái: Borges mostrou isso muito bem, ao buscar
nessas literaturas milenares subsídios criativos para
sua própria literatura. Consta inclusive que o livro
que escreveu sobre Buda, em parceria com Alicia Jurado, tem
grande prestígio no Japão. Isso evidencia, como
você mesmo disse a propósito da recepção
da poesia concreta pelos japoneses, que os orientais se interessam
pelas leituras e apropriações que fazemos de
sua própria cultura.
Haroldo: Exatamente.
Além de Borges, que tinha esse faro pelo Oriente, com
uma impregnação muito grande, eu citaria um
outro que também teve um gesto, eu diria, bem heurístico,
em relação ao Japão: Roland Barthes.
O seu Império dos signos foi recebido pelos japoneses
com o maior interesse. Uma vez ganhei de presente de um poeta
e semioticista japonês, que estudou com o grupo do filósofo
Max Bense, uma antologia na qual ele participa ao lado de
vários semioticistas japoneses e que enfoca vários
aspectos da cultura nipônica, cujo título, dado
em inglês, é Empire of Signs, uma expressa homenagem
ao livro de Barthes. Muita gente critica Barthes, dizendo
que ele ficou só quinze dias no Japão e se aventurou
a escrever um livro sobre a cultura japonesa. Mas não
importa se foram só quinze dias. Ele vinha refletindo
sobre isso há muito tempo e, com a grande acuidade
semiótica que tinha, fez um trabalho de decodificação
de signos muito apreciado pelos próprios japoneses.
Por exemplo, ele não vê aquela questão
das etiquetas, das mesuras, como uma forma de subserviência,
mas como forma de relação civilizada com o outro.
Zunái: Agora uma pergunta mais pessoal: essa
sua opção predominantemente estético-lingüística
exclui necessariamente uma afinidade mística com essas
culturas do Oriente?
Haroldo: Não
tenho esse tipo de afinidade porque não sou uma pessoa
mística. Mas sempre tive muito respeito por todas as
religiões. É claro que não posso respeitar
um xiíta árabe ou um fundamentalista hebraico,
que estão na ordem do fanatismo e só merecem
repúdio. Respeito as especificidades culturais, os
ritos que compõem as religiões, ainda que não
seja um religioso. Por outro lado, penso que ser agnóstico
não é ser ateu. Agnóstico é aquele
que se interroga. Eu sinto aquilo que o último Oswald
chamava de "a constante órfica no homem",
o espanto diante do "sagrado" e das coisas incognoscíveis,
para as quais não se encontram respostas e que nem
a ciência sabe explicar. Por exemplo, o fato de não
sabermos de onde viemos e para onde vamos, se houve intervenção
de um deus criador ou se a natureza seria, como pensavam os
panteístas, uma engendradora de tudo isso, etc. Além
disso, tenho muito interesse seja na cabala hebraica, seja
no budismo, no taoísmo, seja, até onde fiz leituras,
na religião védica. Mas todo esse meu interesse,
antes de ter uma tônica mística, tem uma tônica
de interrogação intelectual. O agnóstico
é aquele que não tem um gnose definida, o que
não quer dizer que ele negue a possibilidade uma gnose.
Ele está em um processo de busca e, em certos momentos
às vezes cruciais de sua experiência de vida,
essa busca até se impõe. De repente, o seu lado
racional é, digamos assim, avassalado por essa "constante
órfica" de que falava o Oswald.
Zunái: E a poesia, não seria a sua religião,
como foi a de muitos poetas?
Haroldo: É,
em certo sentido é isso mesmo. Se tenho uma religião,
essa religião é a poesia. Ou pelo menos, tudo
o que me pode ser religioso passa pelo crivo da poesia. Como
já disse Novalis, "quanto mais poético
mais verdadeiro". Eu fui aos textos bíblicos e,
por exemplo, um texto como o Eclesiastes, que traduzi na íntegra,
me impressionou profundamente. É digamos, assim, o
momento mais radical na Bíblia Hebraica, de reflexão
sobre a infinitude do homem. Nem o Livro de Jó tem
essa radicalidade, pois termina com um happy end. Já
no Qohélet, o livro termina com a expressão
da finitude radical do homem: "não são
mais que animais ademais não mais", quer dizer,
diante da morte não houve ninguém que viesse
dizer que o destino do homem é diferente do destino
animal. Ambos morrem e fim. O Qohélet não pensava
na imortalidade da alma, pois isso não foi necessariamente
uma tese hebraica, mas uma questão consolidada no cristianismo.
Para ele, a alma se dissolvia no universal. Foi o que, mais
tarde, constituiu o objeto de uma heresia no âmbito
do cristianismo medieval, que é o chamado Monopsiquismo,
de origem árabe-averroísta. Dentro desse princípio,
não há alma individual, mas uma grande alma
universal, à qual vai se unir a alma do homem no momento
em que ele morre. Ou seja, a chamada alma individual deixa
de ser individual para se dissolver em uma alma universal.
É a famosa heresia de Siger de Brabante, que foi condenada
por São Tomás de Aquino. Dante, no Paraíso,
coloca tanto Siger de Brabante quanto Tomás de Aquino,
o que parece a realização, avant la lettre,
daquela história de Borges, sobre os dois teólogos
inimigos diante de Deus e Deus não conseguindo distinguir
um do outro, por serem a mesma pessoa. No Paraíso,
Dante faz a reconciliação dos dois que, em vida
real, foram irreconciliáveis. Siger de Brabante foi
condenado como herético e teve um fim estranhíssimo.
Enfim, o Eclesiastes foi o poema mais radical sobre o caráter
finito do ser humano e o caráter de vazio, de "névoa
de nada", das glórias, de tudo. É um texto
que tem uma grande dimensão de contemporaneidade. Ele
acredita que o homem não foi capaz de alcançar
a grandeza e a beleza do projeto de Deus e que até
mesmo chegou a se desviar desse projeto. Em hebraico, a palavra
"pecador" tem concepção diferente
da cristã, e quer dizer aquele que atira fora do alvo,
que não consegue atinar com o projeto de Elohim: ou
atira para além ou para aquém, mas nunca chega
ao alvo. Assim, existe a concepção de graça,
fundamental na concepção hebraica. Por que algumas
pessoas são aquinhoadas e outras não? Thomas
Mann trabalhou isso na tetralogia de José: por que
José é aquinhoado e os outros irmãos
não o são? Por que existe essa eleição?
Essa eleição corresponde ao fato de que determinadas
pessoas acertam no alvo e outras não acertam. E não
são aquelas que pensamos acertarem que acertam realmente.
Quem decide sobre o fato deste ou daquele acertar o alvo é
Elohim e nós nunca podemos saber qual é o desígnio
dele. Ou seja, é um círculo vicioso, até
mesmo irônico, e isso está presente no Eclesiastes.
Eu confesso a você: Pound dizia, depois de ter estudado
muito os ensinamentos de Confúcio, que a religião
dele era a filosofia confuciana; e no meu caso, houve um momento,
que até hoje me impressiona muito, em que eu quase
achei que minha religião fosse o Qohélet.
Zunái: Retornando à questão da
poesia oriental, quais são seus novos projetos nessa
área?
Haroldo: Fiz o
livro Escrito sobre Jade, com o Guilherme Mansur, e como ficamos
muito entusiasmados com o resultado, propus a ele um outro
livro reunindo todas as minhas traduções avulsas
da poesia japonesa, a que vou dar um título que veio
de uma obra jesuítica, uma gramática mais ou
menos da época de Anchieta e que se chama Gramática
da Língua Japoa. No meu caso, será Antologia
da Poesia Japoa .
Zunái: Interessante como esses poemas pouco
conhecidos, ao serem transcriados em nossa língua,
acabam por interferir no fluxo da produção poética
brasileira, contribuindo para um redirecionamento da própria
poesia contemporânea, não é mesmo? Muitos
poetas leitores dessas traduções que você
faz vão delas se nutrir para criar novos poemas e novas
poéticas.
Haroldo: Eu digo
que essas traduções têm interferido muito
no meu próprio trabalho poético e acredito que
possa interferir também no trabalho de outros poetas.
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Leia um ensaio
de Haroldo de Campos sobre o neobarroco.
Leia também um
ensaio
de Eduardo Milán sobre o poeta.
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