A
LITERATURA É SEMPRE UM MANUSCRITO
ENCERRADO NUMA GARRAFA.
Roberto
Echavarren
UMA
ENTREVISTA COM ROBERTO ECHAVARREN
por Claudio
Daniel
Vocábulos
inscritos com fúria sonora em esmeralda, no avesso
da epiderme lapidada. Grafias de dragões e zepelins,
no céu azul-da-prússia; ferros retorcidos de
automóvel (e uma criança morta); crisálidas;
crânios; piolhos; alucinado retrato napoleônico,
como um livro de imagens e sentenças. A escritura do
uruguaio Roberto Echavarren é uma alucinada vertigem
de signos, mandalas ou recifes que desenham uma nova sintaxe,
remodelada qual matéria plástica. Melódica,
brutal, geométrica, algo vivo e desconcertante, que
seduz e inquieta: catálogo do museu da bizarria, ou
seqüência fílmica no cinema onírico.
A leitura dessa obra em mutação, larva no casulo,
expandir de fractais, é uma fascinante dança
de Formas, sinalizando novas modulações sensoriais
e semânticas. A poesia como performance: intervenção
no mundo ou recriação do real, sem parafernália
ou esqueletos de asbesto, sem ilhas de paradiso com que jogar:
e a convicção de que tudo é um labirinto
ou coleção de peças de armar, cuja figura
final é um ente, mínimo talvez, sem contornos:
como um círculo de cones com cores alteradas,
que se mesclam, cruzam e aniquilam, num ato banal e único.
Zunái
- Como surgiu
o seu interesse pela poesia? Quais foram os livros e autores
que o estimularam a escrever seus primeiros poemas?
RE -
Os contos infantis, como A Bela Adormecida, foram meu primeiro
apetite de leitura. Chapeuzinho Vermelho me levou a Júlio
Verne. Quando criança aprendi alguns poemas de memória,
não sei de quem eram, não posso recordar agora.
Meus primeiros poemas eu os escrevi no secundário,
e minhas leituras imediatas foram Garcilaso, Bécquer
e Darío, todos no programa dos cursos. Meus primeiros
poemas eram rimados em verso regular, mas não persisti
muito nisso. Quase em seguida veio outro tipo de poemas (já
havia lido Lorca, Eliot e Paz). Foram os poemas de meu primeiro
livro, El mar detrás del nombre, dedicados a uma evocação
marítima com materiais da costa onde passava o verão,
quando menino. Eram em verso livre e sua natureza sua
forma parecia exigida pelo tema para onde me
levava uma conjuntura do feeling. Ao escrever, descobri que
passava da angústia ao gozo. Eu os chamava poesia
objetiva porque pensava que só valia a pena,
ou tinha sentido, comunicar-se com imagens, já que
os próprios sentimentos são inefáveis
e além disso resultam indiferentes aos outros. Nessas
imagens talvez fosse possível comunicar algo do sentimento,
como anagnórisis, reconstruído nos leitores
de acordo com um conjetural estímulo do poema sobre
eles.
Zunái
- Você
publicou uma antologia crítica de seus poemas e textos,
chamada Performance (2000), que faz o registro de sua jornada
criativa com a linguagem. Fale um pouco sobre esta obra.
RE -
Essa compilação foi uma miscelânea idealizada,
articulada e levada a cabo por Adrián Cangi. Adrián
se interessou por minha novela Ave roc e pelo ensaio Arte
andrógino, e lhe ocorreu compilar seus trabalhos e
os de outros sobre minha obra. Porém, o impulso transgenérico
que o inspirava levou-o a mesclar entrevistas, resenhas e
outros materiais a uma antologia de meus poemas, integrando
aqueles que eu havia escrito em inglês e eram parcialmente
inéditos: Atlantic Casino (em versão bilingüe)
e Pacific Palisades. Um deles surgiu relacionado a um filme
(de mesmo título), sendo usado como diálogo
entre os personagens, o outro expus como instalação
no Convento de Santa Teresa, no México. Cangi quis
destacar o transvasamento de minha poesia à narração
e ao cinema, às artes plásticas e à performance,
então chamou o livro de Performance, tanto para indicar
sua estrutura como para sublinhar o espaçamento transgenérico
de meus esforços poéticos, apresentando uma
mostra cabal de suas dimensões.
Zunái
- O que você
busca realizar, com sua poesia? Trata-se de uma aventura estética,
de gozo pessoal, registro de idéias e sensações
ou um modo de interpretação e de intervenção
no mundo?
RE -
Busco interpretar, mas também intervir. Por exemplo,
meu poema Atlantic Casino está armado com restos de
língua que são como os fiapos do rock, lascas
de informação, trouvailles descritivas e interpretativas,
com respeito a um fenômeno da música, a um exercício
de estilo dinâmico e visual, estilo de vida, conjunto
de práticas que veiculam o corpo histórico,
articulam suas opções e seu desejo. Ao transformar
esse poema no diálogo de um filme que tem como atores
rockers verdadeiros, membros de bandas da Nova York de então,
é como se o poema virasse uma vingança, um jogo
supremo ou duplo, o truque de Huysmans e Wilde: a realidade
imitando a ficção. Porém, a realidade
já era ficção, quer dizer, estilo, antes
que existisse o poema: os rockers interpretam um poema que
os interpreta.
Zunái
- Sua poesia
tem uma estratégia de recriação da sintaxe,
num texto miscigenado que dissolve os limites entre verso
e narrativa da prosa, sem uma lógica discursiva linear.
O pensamento estrutural de sua poesia tem relação
com as vanguardas dos anos 20 (Girondo, Huidobro, Vallejo)?
RE -
Mais com Huidobro e Vallejo do que com Girondo, embora seja
um leitor de En la masmédula. O cubismo de imagens
prístinas de Huidobro e o afeto de penumbra caseira
em Vallejo, que tinge e deforma, condiciona o tropeço
lingüístico... Trabalho com uma sintaxe de movimento
contínuo, embora cortada e recortada por certo laconismo
que deixa a imagem se arranjar sozinha para comunicar seu
tom plástico imbuído da estrutura atônica
que possuem os estímulos de um muro ou de uma tela.
Simpatizei com a estética a-significante de Antonioni
ou de Tapies.
Zunái
- No poema O
Napoleão de Ingres você faz uma montagem
alegórica com citações de diferentes
tempos e espaços: A cor da seda, sua textura
/ são quase metálicos: um zepelin pelo céu
/ azul-da-prússia, um dragão chinês /
voando em seu troar de metais. Essa mescla corresponde
a um desejo de superar as fronteiras entre repertórios
e culturas?
RE -
O quadro de Ingres (Napoleão Imperador) dispara associações
que não se controlam pelo confinamento a um século
ou uma cultura: o quadro em si é uma soma de informação
alegórica, combina os atributos de um império
supremo. Ingres pintaria depois A apoteose de Napoleão.
Meu poema é um conglomerado de associações,
um nó problemático que surge ao descrever impressões
visuais. A pintura é um aleph onde se concentra a cifra
de um poder, como se essa collage criasse o poder do personagem,
ao dotá-lo de uma gravitação cósmica,
satisfizesse uma correspondência exata com uma divindade
mais ou menos ilusória. O aleph, já se sabe,
tem a pretensão sublime e ridícula de comunicar
tudo. E a virtude do herói (neste caso, Napoleão)
é sempre um desejo megalomaníaco que oculta
os aspectos vulneráveis desse poder na realidade. A
máscara oculta o calcanhar do herói em um gesto
extremo para persuadir e persuadir-se de uma indiscutível
glória ilimitada, quase imortal. Meu poema ironiza
essa empresa, enquanto se assombra ante o grandioso da composição.
Zunái
- A metáfora
ocupa uma posição central em suas composições.
No poema Confissão Piramidal, no entanto,
temos um choque entre a construção lírica,
simbólica, e passagens de duro realismo, como esta:
Vertigem da mulher que desperta no teto de seu automóvel
/ feito um nó de ferros retorcidos, vê sua filha
jazer a seu lado / e ao querer tocá-la percebe que
não há nada onde havia um braço, que
não tem braços, que foram abolidos / como uma
folha fica aprisionada entre as páginas de um livro.
Como a realidade se relaciona com a poesia, em sua opinião?
RE -
Os referentes do poema são tanto livrescos como vitais,
estéticos como traumáticos. Se entrechocam,
em uma collage simbólica que pretende dar as dimensões
conjuntas de nossa experiência do real. Porque o poema
aspira a não deixar nada de fora. Em sua invenção,
quer dar conta ou ser fiel às passagens violentas entre
os diversos registros de nosso existir.
Zunái
- Em Medusário,
mostra de poesia latino-americana que você organizou
com José Kozer e Jacobo Sefamí, estão
reunidos autores significativos da poesia contemporânea
do continente, desde nomes históricos, como Lezama
Lima, até poetas mais recentes, como Reynaldo Jiménez.
Como surgiu a idéia de fazer este livro? Comente o
processo de criação da obra.
RE -
O que me propus, e José Kozer se propôs, foi
demostrar que na América Latina havia outra
poesia, a poesia que tentávamos fazer e que os escritores
que admirávamos faziam. Os livros de poesia circulam
mal, ou microscopicamente, e esse esforço comum, de
parentescos secretos ou aleatórios, se dispersava,
por isso me pareceu necessário construir um panorama,
uma coleção imperdível, que
circulasse com certa amplitude e servisse como apresentação
e cotejo da nova poesia. Não pretende antologizar,
mas selecionar. Chamei-a de mostra para distingui-la
de uma antologia. Nossa tarefa foi mais próxima de
um curador de artes plásticas: alguém que relaciona
os artistas a partir de traços comuns ou de contrastes
calculados. O processo de realização teve uma
longa gestação e seus antecedentes foram o meu
Transplatinos (que apresenta a poesia do Rio da Prata ao leitor
mexicano) e Caribe Transplatino (a coleção bilingüe
preparada e prefaciada por Néstor Perlongher, publicada
em São Paulo). Lezama Lima aparece no pórtico
de Medusário como figura sinaleira e pai
da nova poesia deslocando, por certo, outras figuras
que, apesar de sua notoriedade, não foram inspiradoras
para os novos poetas.
Zunái
- O Neobarroco,
a seu ver, é uma estética, uma visão
de mundo ou ambas as coisas? Trata-se de uma vertente que
já cumpriu seu ciclo histórico ou continua em
sua fase de vigor, expansão, metamorfose?
RE -
O neobarroco é um nome de guerra. Deixa
uma marca, uma cicatriz para a memória. Porque abre
e deixa abertos uma série de problemas, tanto de poética
como de estilo de vida. Supõe também uma tomada
de contato com o absoluto (ou exímio) de
uma tradição de arte maior: no caso
do castelhano Las Soledades, El sueño. Recorda uma
problemática dada e uma referência aos textos
a partir dos quais certo nível de lucidez ou exigência
opera na criação da língua. A partir
daí, um âmbito heurístico de escritura
e comunicação (de cumplicidades,
seria possível dizer) se estabelece, frente a, e em
oposição a outras tendências demagógicas
e oportunistas, como por exemplo o mito romântico da
identidade latino-americana e o embuste da superioridade moral
como compensações para problemas e deficiências
de nossas sociedades continentais. Como etiqueta, não
é possível esquecer a palavra neobarroco.
Porém, na prática da escritura, nos aguardam
surpresas e derivas estilísticas sem nome próprio.
Zunái
- No posfácio
a Medusário, você aponta o Neobarroco como saída
alternativa ao coloquialismo discursivo da poesia engajada
e também à visualidade estrutural da poesia
concreta. Desenvolva este tema.
RE -
Quando adolescente e jovem me chocava o contraste entre a
poesia que eu lia e escrevia com a tendência prevalecente
em meu país e na América de uma poesia comprometida
que me parecia facilitária e demagógica. Os
poetas e o público da poesia comprometida
menosprezavam qualquer outra tendência dentro de uma
política maniqueísta de exclusão. Sobretudo
em meu país, onde, para algum péssimo discípulo
de Nicanor Parra, Fidel Castro era o melhor escritor latino-americano,
a julgar pela frívola improvisação de
seus soporíferos discursos. É o que Emil Volek
chamou em um artigo a macondização
da América. Talvez como assinala Volek
a origem desta macondización possa remontar até
Martí, que, com afirmações algo delirantes
sobre a superioridade moral da América Latina (como
se aqui, no período da independência, não
se houvesse matado e até exterminado as populações
aborígenes) criou certos slogans ad usum delphini que
depois foram amplamente explorados. Esta busca infantil e
oportunista de uma identidade latino-americana
criou também uma literatura de exportação,
a impostura do realismo mágico, pelo qual nos reconhecem
na Europa. A poesia comprometida era coloquial,
simplista, transmitia seus slogans a um auditório vasto,
buscando sempre o consenso entre partidários e não
a discussão. Esta poesia (e a atitude que a acompanhava)
era refratária às novidades estilísticas
e vitais da época: música de rock, rebelião
e política de minorias (mulheres, homossexuais etc.),
experiência com drogas etc. Entendia a política
só no sentido antigo, leninista, de tomada do poder
central, para estabelecer una ditadura revolucionária.
A poesia concreta do grupo Noigandres me pareceu uma das grandes
conquistas da escritura latino-americana. Só que sua
opção: isolamento das palavras que declinavam
em variações ou permutações, supressão
da gramática, me parecia um limite rigoroso, ao modo
das vanguardas do início do século, enquanto
que minha tendência, e também a do que me parecia
ser a poesia mais jovem, a partir dos anos sessenta, era a
complicação da sintaxe, o uso eclético
dos recursos do idioma, mudanças de tom e registro,
cujos referenciais só podiam ser o barroco do século
XVII e a poesia simbolista, tanto francesa como latino-americana,
desde Mallarmé a Julio Herrera e Reissig.
Zunái
- Existe sentido
em fazer literatura numa época cada vez mais dominada
pela violência e pela banalidade? Acredita na possibilidade
de surgimento de um novo tipo de humanismo, após o
eclipse das utopias?
RE -
A literatura é sempre um manuscrito encerrado numa
garrafa, e navega por mares desconhecidos. O que você
chama com razão de banalidade tem a ver
com o desenvolvimento da tecnologia e a multiplicação
dos meios de difusão das mensagens. Temos de aceitar
a mudança tecnológica e digeri-la, tomá-la
com leveza e não rechaçá-la. Alguns meios
sucedem a outros mas a escritura é uma matriz não-obsoleta,
reciclável sempre em memórias tecnológicas.
A violência ligada à marginalidade e ao negócio
das drogas põe a nu os problemas reais da sociedade.
Vivemos com eles e a literatura testemunha isso. As utopias
parecem-me um humanismo propagandístico e demagógico.
Creio que hoje podemos estar mais próximos de um humanismo
verdadeiro, mas menos pretencioso.
Zunái
- Você
está trabalhando hoje em um novo livro? Fale a respeito.
RE
- Acabo de terminar um poema longo, narrativo, ainda inédito,
intitulado Centralasia. Lezama Lima escreveu que a serpente
americana anuncia o dragão asiático. Hoje podemos
estar mais próximos de outros lugares e culturas do
planeta. Meu poema não é mero exotismo, à
maneira decimonônica, mas uma tentativa de assimilar
e criar a partir de modos de vida e pensamento que também
são, ao menos em parte, os nossos. Apropriar-se de
vários aspectos da cultura, do pensamento e dos modos
de vida asiáticos é uma maneira de redescobrir-se,
de redescobrir e desfrutar alternativas liberadoras de nossos
dogmas religiosos e de nossos preconceitos vitais.
*
Leia
também os
poemas
de Roberto Echavarren e ensaio
sobre o autor.
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