CINEMITOLOGIAS (FRAGMENTOS)
Ademir Assunção
Cinepoética
Há
alguns anos venho me interessando por mitologias. Ao mesmo tempo
que buscava um domínio consciente da escrita em meus primeiros
trabalhos poéticos, me fascinava pelos conteúdos inconscientes
que, acredito, afloram em toda obra artística. Em algum lugar
entre o impulso criativo e a elaboração de um poema (um objeto
ou processo de linguagem) sentia a presença de uma certa brisa
ancestral. Será que entre este impulso criativo de um poeta na
virada para o terceiro milênio da era cristã e o de um "xamã"
que pintava enormes bisões numa caverna de Lascaux não existiria
nenhuma ponte, nenhum sentimento comum de perplexidade, horror e
desafio? - indagava a mim mesmo. Daí, talvez, o interesse pelas
mitologias, especialmente aquelas mais "primitivas" - como os
"civilizados" costumam designar tudo aquilo que escapa à lógica
de um mundo organizado segundo critérios puramente racionais (se
é que podemos chamar o capitalismo predatório globalizante de
racional).
Cinemitologias
tem a ver com esta pesquisa.
A
estruturação do livro em datas remete, evidentemente, à idéia de
um diário. Trata-se, porém, de um diário do sono, do sonho, do
tempo dormido. O que busquei nesta pequena aventura
literária foi um fluxo vertiginoso de imagens, como os processos
oníricos, reciclados em linguagem escrita. Como um cinema do
inconsciente.
Glauber Rocha comparava a estrutura de montagem da linguagem
cinematográfica com a estrutura dos sonhos. Os surrealistas
chegaram a produzir vários filmes influenciados diretamente por
sonhos - como Un chien andalou, de Salvador Dali e
Luís Buñuel. Cinemitologias nada tem a ver, no entanto,
com automatismos de escrita. Em meu trabalho, procurei sempre
desautomatizar a linguagem.
Cinemitologias
é também, no fundo, um caderno de estudos que resultou em vários
poemas a serem publicados no meu próximo livro. Poemas que não
apenas fazem referências explícitas a sonhos e filmes, mas que
procuram incorporar elementos implícitos do cinema em suas
próprias estruturas - cortes, fusões, seqüências, closes,
flashbacks, silêncios, ruídos. Vertigem em torno de um conceito
que consumiu muitas noites de sono: a idéia de uma cinepoesia.
Ou
tudo não passa de um doce pesadelo?
Ademir Assunção
Novembro, 1998
"O
sonho é o mito privado. O mito é o sonho coletivo."
Joseph Campbell
19.01
Riscos de adagas na pele da face. Palavras são lâminas.
23.01
Sonhei com dinossauros pastando no quintal. Um deles, de pescoço
muito comprido, engoliu um boeing 707 por engano.
07.03
A
Loucura compra um chapéu com flores coloridas na aba de feltro.
Depois vai pra cama com o maior inimigo do namorado. De manhã,
chora lágrimas de silicone quando olha no espelho e não vê
ninguém.
15.03
Rastro de lesma na pedra quente. Queimada, se contorce, em
silêncio. Ou
sou eu que não consigo ouvir seus gritos?
27.03
Não
vai haver Amor se não houver Rebeldia.
07.04
Tenho
sonhado fotografias. Quando acordo, há centenas de imagens
espalhadas pelo quarto. O cérebro funciona como uma polaroid.
Tento juntar tudo pra ver se vira um videoclipe mudo.
16.04
Lembranças, alucinações, pensamentos, projeções. O Estúdio
Realidade (William Burroughs) é manipulação incessante de sons &
imagens. A televisão é a droga mais letárgica do século.
Comparado ao poder de impacto da tevê, só a bomba de Hiroshima.
13.05
É
como se um pássaro pousasse na pálpebra do Dragão Adormecido. É
como se o Dragão Adormecido sonhasse um planeta habitado por
flores de oxigênio. É como se as flores de oxigênio roçassem a
têmpora de um samurai enlouquecido. É como se o samurai
enlouquecido só existisse no sonho do poeta que sonha com um
dragão sonhando. É como se nada disso existisse. É como se fosse
pintura de Matisse. É como se fosse cena de um filme de
Kurosawa. Sonhos.
21.03
Passinhos de gueixa pela madrugada, roçar de meias delicadas no
assoalho. O vento mistura as letras escritas no papel de arroz.
Os pessegueiros estão secos.
23.10
Um
tigre saindo de dentro de uma caverna. Passos lentos, olhar fixo
na caça. Não adianta correr. O destino está selado nesta tarde.
Alguém vai sentir dor.
05.11
Vento
nas folhas de zinco. Brisa que se esmaga nos blocos de concreto.
Aridez de metrópole no verão do final de um milênio.
18.11
Caco
de vidro rasgando a superfície da água. Um peixe-miragem
mergulha no espelho, crispa as escamas em seu próprio reflexo,
engole-se a si mesmo, desaparece no lago profundo de seu avesso.
(Textos extraídos do livro Cinemitologias, de Ademir
Assunção.)
Ademir Assunção,
poeta e jornalista, nasceu em Araraquara (SP), em 1961. Publicou
os livros de poesia LSD Nô (1994) e Zona Branca
(2001), além de três livros de prosa experimental, A máquina
peluda (1997), Cinemitologias (1999) e Adorável
Criatura Frankenstein (2004). É um dos editores da revista
de literatura e arte Coyote.
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Leia também
um fragmento de Adorável
Criatura Frankenstein,
poemas e um
ensaio
sobre o autor
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