CINEMA
MENTAL E POESIA-MONTAGEM AO SOM DE
Ricardo Corona
Quando
Claudio Daniel me convidou para escrever um texto sobre as
relações entre poesia e cinema, para esta edição especial da
Zunái, admito não ter pensado em alternativa melhor do que
comentar ou simplesmente mostrar alguns poemas de minha autoria
e outros em parcerias com artistas de outras linguagens - como
Eliana Borges, nas artes plásticas e Roseane Yampolschi e Paulo
Demarchi, na música. É que a minha poesia está tão
intrinsecamente relacionada ao cinema que prefiro mostrá-la a
produzir um texto que fosse indiferente a essa influência.
Portanto, o que se lerá a seguir contém um tanto de depoimento e
outro tanto de recolha de outros textos que escrevi e que estão
em posfácios pouco lidos ou mesmo extraviados.
Num
primeiro momento, com base no poema "Na margem de todas as
coisas: uma canção", publicado em Cinemaginário (1999),
um pouco do processo criativo do livro como um todo e o
seu envolvimento com o cinema, conforme o próprio título
anuncia. Depois, do mesmo modo, alguns trabalhos de
Tortografia (2003) - neste caso, tratarei de chamá-los
"trabalhos", ao invés de "poemas", porque são híbridos e
pertencentes com igual desempenho às linguagens poética e
plástica. Em seguida, para terminar, alguns comentários sobre os
poemas sonoros (que têm forte influência da música do cinema)
gravados e estampados na minha mais recente publicação, o
livro-disco Sonororizador (2007). Apresento amostras em
mp3 para que o leitor possa também ouvi-los.
1.
Poesia e
cinema são linguagens de temporalidades bem diferentes, sendo a
primeira uma das mais antigas e a segunda uma das mais atuais,
todavia interligam-se com muitas afinidades. Essa quase banal
verificação de simultaneidade tem me estimulado poeticamente
desde o primeiro livro, Cinemaginário (1999), no qual me
impus um "cinema mental" e um livre fluxo imaginativo para
trabalhar temas diversos, sempre centrados na fanopéia.
Mais do
que simples referência, trata-se de um núcleo que abre muitos
níveis de conversações com a imagem em movimento e sempre a
partir de um livre fluxo da imaginação e não sem as
conseqüências da experiência da vida na linguagem. Um dos poemas
que melhor representam esse livro chama-se "Na margem de todas
as coisas: uma canção", dedicado a Eliana Borges, feito a partir
de uma experiência vivida conjuntamente na praia dos Ingleses,
em Santa Catarina, em 1988:
Estou na
margem
e aqui - entre os, no atrito
dos encontros - sentir e
ver:
vibra, apavora. Nada está
vazio agora. O olho-câmera clica e vaza
vertendo
vertigens num clip
de lances &
paisagens,
chips de memórias. Tudo passando,
passando -
movies
: ex-espumas
pássaros
peixes
agora uma
casa pisca
um barco bêbado dança
o vento arvora uma
árvore
ondas loucas se erguem
despedaçando-se no veludo das pedras
ondas loucas deslizam
lambendo minhas
pegadas
- não mais estou -
e o amor
não
é maior
nem menor
que o mar.
Há um
núcleo vital neste poema, que revelarei com a finalidade de
mostrar em que medida a experiência "real" pode receber uma
construção cinética, verso a verso, palavra-verso a
palavra-verso, imagem a imagem, e tudo isso auferindo presença
topográfica no poema. Pois vejamos: No final do ano de 1988,
Eliana e eu estávamos nas delícias de uma praia, num simples
passeio à beira-mar e às vésperas de voltar para São Paulo, onde
morávamos. Não tínhamos dinheiro, nem trabalho, e estávamos com
o filho Cauê bem pequeno. Estávamos, então, na condição de
esquecidos, humilhados e falávamos da importância do amor.
Brincávamos de mensurar esse sentimento e de saber qual seria o
tamanho concreto dele, enquanto a barra pesava, pois sentíamos
também o "peso" de nossa condição. Estávamos à margem do sistema
e nas delícias da margem de uma praia - e o amor era o nosso
assunto. Este núcleo de sentimentos me fez escrever o poema:
nossa conversa, nossas inseguranças, nosso amor. Queria "pegar"
esse pathos e dar-lhe uma medida: o mar. O amor e o mar.
E o poema veio, após a nossa conversa, ainda naquela praia,
anotado num papel qualquer.
Algum
tempo depois, agora com residência em Curitiba, retomei o poema
com a decisão de operacionalizar um "cinema mental" e foi quando
percebi que nele havia outra margem. As palavras poderiam ser
agrupadas semanticamente de modo a algumas pertencerem a terra,
outras ao ar e outras ao mar. Com uso de procedimentos como o
corte, o close, a montagem etc., editei o poema, separando
palavras relacionadas a fogo, água, terra e ar. Numa leitura
atenta, as duas colunas (as margens) que dividem o poema,
abrigam os quatro elementos: ar/terra, de um lado, e água/fogo,
do outro, através de palavras correlatas: "vento", "pedras",
"ondas", "atrito" etc. Foi a partir desse poema, que considero
central no livro, que se estabeleceu toda a relação com o
cinema. Os outros, aos poucos, foram sendo vertidos para a idéia
"cinética" do livro.
Para cada
poema deste livro há um procedimento semelhante. Dos haicais que
estão sobrepostos em outros poemas, que os aproxima da idéia
central de Cinemaginário, pelo que tem de montagem, do
olho-edição e por serem apreendidos como qualquer outra imagem
que os poemas sugerem. Os haicais estão incorporados, não estão
avulsos e dessa maneira servem ao livro como um fotograma serve
ao filme - e mesmo assim não estão distantes da tradição
japonesa, pois, como se sabe, o haicai é escrito num contexto de
diário, de viagem, de experiência, de busca do satori.
Desse
modo, todos os poemas do livro trazem técnicas de colagem,
montagem, grande angular, zoom, cortes, close etc. As imagens,
aparentemente soltas, estão ligadas a procedimentos de montagem
cinética.
É preciso
lembrar, no entanto, que o meu objetivo nessa relação
fronteiriça não foi o de querer inaugurar algum procedimento
inovador ou coisa que o valha. E mais: que não há nada de novo
nessa associação, já que ela pertence à natureza humana. Ainda
penso, cambiando Ítalo Calvino (Seis propostas para o
terceiro milênio, 1990), que há um cinema mental que vem
antes da invenção do cinema. Esse pensamento, importante para o
meu processo, esclarece, ao menos para mim, que a invenção do
cinema era inevitável e, sobretudo, que a imagem cinética não é
exclusividade do cineasta ou da própria linguagem
cinematográfica. Neste sentido e em parte redizendo o que está
no início desse texto, o cinema (neste caso, o cinema mental)
pode ser tão antigo quanto a poesia, quanto o homem, e a
tecnologia somente o transformou em linguagem, retirando-o desse
estado mental. O cinema é a mais perfeita materialização da
imaginação humana, podendo-se afirmar que todo homem que vê,
edita imagens.
A imagem
cinética está presente na Ilíada, de Homero (séc. 8
a.C.), através de rapidez combinada com movimento, o que dá à
narrativa iliádica lances cinematográficos. Assim como, mais de
20 séculos depois, essa rapidez imagética aparece nas
letras-poemas "Alegria, alegria" e "Domingo no parque", de
Caetano e Gil, respectivamente. São letras que, analisadas como
poemas, segundo Paulo Andrade, "trazem recursos técnicos
utilizados pelos cineastas como o corte, a justaposição de
imagens" (Torquato Neto: uma poética de estilhaços,
2002).
Logo, o
principio dialógico com o cinema, presente em Cinemaginário,
advém deste contexto de cinema mental ou imaginação cinética, no
que é peculiar ao humano, que vê e pensa, pensa e imagina.
2.
No
segundo livro, Tortografia (2003), feito em parceria com
a artista plástica Eliana Borges, a relação de diálogo que se
estabelece com o cinema é bem diferente. O artifício se faz
presente. A montagem recebe importância na linguagem.
A
expressão "tortografia", como se sabe, foi criada por Augusto de
Campos para situar criticamente a poesia de e. e. cummings. Para
nós, soma-se a sua acepção neológica que subverte o significado
do vocábulo grego kalligraphía ("escrita bela").
Pois bem,
além do diálogo com o cinema, os trabalhos trazem combinações de
linguagens e expressões na sua maioria oriunda do universo das
artes plásticas. Os trabalhos habitam um lugar de livre-troca,
de trânsito-transe, de fronteira-free, de ir e vir, de
dobras e re-dobras. Trabalhos que jamais se ilustram ou se
reverenciam. A direção, muitas vezes, seguiu aquilo defendido
por Torquato Neto: "É inventar o perigo e estar sempre recriando
dificuldades pelo menos maiores. É destruir a linguagem e
explodir com ela".
A julgar
que a montagem é o modus operandi do livro, abre-se
naturalmente uma conversa com uma das mais antigas formas de
expressão: o ideograma. A partir da abertura contextual
inaugurada por Ernest Fenollosa em seu célebre ensaio e talvez a
mais fundamental correspondência entre os mundos moderno e
antigo: 'Os caracteres da escrita chinesa como instrumento para
a poesia'. Descoberto e divulgado por Ezra Pound e apresentado
entre nós por Haroldo de Campos (Ideograma: Lógica, Poesia,
Linguagem, 1977), bem como pela sua incorporação no cerne
das conquistas formais do movimento da Poesia Concreta. Em
Tortografia, as relações imateriais e as transferências de
sentidos entre imagens e/ou palavras articuladas se revelam mais
consistentes quando vistas a partir da sinologia apresentada por
Sergei Eisenstein em seu 'O princípio cinematográfico e o
ideograma', ensaio publicado originalmente em 1929 como posfácio
de um livro sobre cinema japonês, e que relacionou a importância
da escrita figurativa japonesa e chinesa na montagem do filme.
E, mais recentemente, com os novos estudos de Jean François
Billeter em seu ensaio 'A arte chinesa de escrever' (L'art
chinois de l'écriture - Essai sur la calligraphie,
1989), que estabeleceu conexões e similaridades, principalmente,
entre a escrita chinesa e a composição musical e plástica."
Eisenstein sintetiza que 'a cinematografia é, em primeiro lugar
e antes de tudo, montagem'. A analogia que se estabelece aqui é
a da similaridade, ou seja, a semelhança que ultrapassa as
aparências - as correspondências comuns entre linguagens que a
princípio diferem entre si.
Neste
livro, a aproximação entre poesia e cinema adquire proporções
ainda maiores, apesar de menos perceptível. A visualidade
aparece não somente a partir da palavra, mas com a palavra que
se funde e se torna uma só arte, um só signo. A imagem é objeto,
matéria, e é, portanto, o próprio recurso. Se em
Cinemaginário as palavras-chave são "edição mental", em
Tortografia, é "montagem".
As
"caligrafeias" se inscrevem num contexto de diálogo com o
cinema, mas magnetizadas por diversas fontes e procedimentos, do
Apollinaire DADA à colagem do texto figurativo ameríndio e
africano, aos muitos artistas que realizaram experiências com a
escrita gestual e de combinação de signos, como os poetas
brasileiros Edgard Braga e Pedro Xisto, o norte-americano Bob
Brown e o artista plástico suíço Adolf Wölfli, entre outros.
Qual seja
o mecanismo de busca, haverá pluralidade contextual, pois hoje,
mais do que em outro tempo, a história da criação se mostra
impulsionada pela evolução das formas criativas desde os
primórdios da aventura do homem com a linguagem. De rabiscos
(i)legíveis à linha da acupuntura. De narrativas visuais cujo
animal-signo decifra/devora/inscreve seus próprios significados
na pele da página a uma "charada de grafite", trazida dos muros
de Pompéia da Antigüidade pop para se relacionar com um
poema-esfinge com fortes aspectos da estrutura cummingsiana. Da
foto postal com escrita garranchosa de uma remetente do início
do século XX respondida cem anos depois com a escrita fraturada
de e-mail ao olho/pensamento da obra contemporânea. Da
linguagem que faz do próprio corpo seu habitat ao poema-slogan
dos anos 1970...
A poesia
e as artes plásticas serviram ao livro na medida que puderam
dilatar-se para receber outras linguagens ou a referência delas,
para serem incorporadas como elementos fundamentais no processo
de criação que resultou em uma "obra-total". Porém, diga-se, não
pelo significado afetado do adjetivo, mas sim pelo que este
representa de pluralidade, convergência, desdobramento,
revitalização e contradi(c)ções.
Um espaço
de confluência de linguagens muitas vezes construído com
múltiplas grafias (fotografia, serigrafia, caligrafia e
radiografia), com desdobramentos da poesia para o universo das
artes plásticas e destas para o campo poético. Com intensidades
variáveis, a busca da fusão de dois modi operandi: da
artista plástica e do poeta. Por extensão, um espaço em que
ambas as linguagens também estivessem abertas para o
despaisamento do que sejam poesia e artes plásticas,
propriamente ditas.
3.
Quando se fecha os olhos durante a exibição de um filme o que se
ouve pode ser considerado um poema sonoro. O som que mais se
aproxima de um poema sonoro é aquele que os músicos produzem
para o cinema. Faça a experiência com Laranja Mecânica,
de Stanley Kubrick. Mas não me refiro a trilha musical, mas os
sons que vivificam o movimento fílmico, a ação. Os mais
aleatórios. Aqueles que, num plano mais radical, disse John
Cage:
"Se você quer ouvir uma boa música, deite no chão e escute
o mundo a
seu redor".
Sempre quis publicar um livro-disco de poesia, ou melhor, um
livro livre, com associações em vários níveis com a música
contemporânea. E com o som do cinema. Sonorizador (2007)
é um livro-disco que, obviamente, não foge a esse contexto e
apreendeu aquela totalidade, bem resumida pelo poeta
sonoro-visual Giovanni Fontana (Itália), de que "a voz veste o
mundo e assina seus traços", alinhavada com menções das
principais descobertas na área da poesia associada ao som,
feitas ao longo do século XX: "A voz é movimento e delineia a
dinâmica sonora que, às vezes, se apóia na natural melodia da
língua falada (Arrigo Lora Totino); no microcosmo da boca (Henri
Chopin); ao corpo (Jean Paul Courtay); nas possibilidades
rítmicas do texto (Richard Kostelanetz); na assonância da
linguagem inventada (Bliem Kern); no uso do microprocessador
(Larry Wendt); na micromodulação da leitura (Ernest Robson); no
sopro (Ilse e Pierre Garnier); na manipulação eletrônica (C.
Amirkhanian); na permutação acústica de grupos de palavras (L.
Kucharz); na capacidade técnica da dicção (D. Stratos); nas
qualidades hipnóticas do texto (Altagor); nas variações
fonéticas interpretativas (A. Spatola); nos efeitos
contrapontísticos da montagem (B. Heidsieck); no fonema (Enzo
Minarelli); no uso do dialeto (A. Conto); no berro (F. Tiziano);
no outro movimento (G. Fontana)". (Revista Dismisura, 1984).
Em meio a este leque de referências, mesmo que esteja aqui quase
todo aberto, o lugar simbólico que denominei para Sonorizador
chama-se "eletropoesiacústica". Porque é nele que o trabalho se
potencializa nas suas tensões - sem jamais solucioná-las - com a
inter-relação de poesia e música acústica e eletroacústica. A
solução seria a acomodação sem riscos das diferenças entre as
linguagens, o que descaracterizaria uma delas em função da
outra. O entre e o quase são resultantes inacabados porque não
interessa um outro lugar e sim a tensão. A poesia, aqui,
diga-se, feita para a voz, está na sua capacidade de se
relacionar com outra linguagem, mas consciente de que a sua
migração é para outro sentido, para o "ouvido pensante" (Murray
Schaffer), de par com a justa definição de que "a poesia é a
permanente hesitação entre som e sentido" (Paul Valéry).
Sonorizador é todo feito de idéias-sons. Se música é a
resultante da organização do som, interessou-me antes a
organicidade dos sons. E os sons que nos cercam não são caóticos
ou menos musicais do que aqueles que compõem uma sinfonia.
Matthew Herbert, da música eletrônica, ao falar sobre isso, fez
uma interessante comparação: "os carros vão passando de acordo
com as mudanças nos faróis do trânsito, que foram programadas e
os telefones tocam mais em alguns momentos do dia que em
outros". (Caderno Mais!, 18.03.2007). Um raciocínio que ajuda a
deixar claro que aqui o som é elemento fundamental por ser
mediador entre as linguagens e, sendo o fonema a partícula
sonora da palavra, então uma composição sonora cabe
perfeitamente bem ao poema e vice-versa. A margem passa a ser o
lugar da criação, pois sugere que o som pertence tanto à poesia
quanto à música. Kurt Schwitters, em manifesto escrito em 1924,
defendeu que "o material básico da poesia não é a palavra, mas a
letra" (Revista Aerea, Chile-Argentina, 2001). A composição das
letras promulga o evento sonoro da palavra, e novamente estamos
no mundo do som sem sair do território da poesia.
Foi com estas idéias-sons que resolvi publicar o livro-disco
Sonorizador e, para isso, depois de escrever os poemas
especialmente para a voz, convidei a compositora Roseane
Yampolschi, cuja sensibilidade musical e experiência nas áreas
de composição, filosofia da música e em estudos de
interdisciplinaridade, foram importantes para a efetiva
composição sonora destas idéias-sons, com desdobramentos e
contribuições enriquecedores. Assim como a participação do
compositor Paulo Demarchi, regente da Orquestra de Percussão da
Universidade Federal do Paraná, que posteriormente se juntou a
nós e trouxe elementos rítmicos mais acústicos para os poemas
feitos previamente para isso, cujas assonâncias internas
indicavam percussão vocálica, desdobramentos do meu interesse
pelo contexto etnopoético. Sons vocálicos, percussivos, tribais
("a obra antiga me agrada pela sua novidade", disse Tristan
Tzara) podem ser percebidos em "Tupi
tu és",
"Chamada",
"Ja
ma la"
e "Niva"
- estes dois adaptações livres dos cantos poéticos Yamanes
(Chile) e Comanche (EUA), que não possuem significado além do
rito acústico da palavra no ar. Talvez o ápice desta percussão
etnopoética que junta códigos similares
esteja em "Tungu Ball", com
composição feita por
Alexandre Rogoski, a partir do meu poema que é uma homenagem aos
índios siberianos da língua tunguso-manchuriana (na qual se
originou a palavra "xamã") e ao poeta dadaísta Hugo Ball; um dos
inventores da poesia fonética, além de propagador do zaum e de
performances que uniam niilismo e xamanismo. O fonema percussivo
e tribal (mas aqui com outro sentido) também aparece no
poema-rave "Nanobô
Ragnarok".
A fala percussiva, assim como a música acústica, mas com maior
peso na composição eletroacústica, reaparecem com força em
poemas com composição de Roseane Yampolschi, tais como "Tambor",
"Baka",
"Passe" e "Tam"
- este de autoria do poeta futurista Almada Negreiros (Portugal)
e na voz da cantora lírica Luciana Elisa Hoerner. Com Roseane
Yampolschi, a composição acústica e eletroacústica associada aos
poemas e vice-versa engendra uma semântica (sonora e poética)
canibal que está presente já na primeira faixa do disco com o
poema "Recall",
que se mantém em "Buraco de minhoca" e especialmente em "À
mesa",
de Augusto dos Anjos, mas também na instrumental
"Xepa", já que se apropria de sobras
de sons processados. As instrumentais "Entre" e "Xepa", de
Roseane Yampolschi, são talvez as mais representativas de um
nível de associação das linguagens em que o processo se
inverteu, ou melhor, em que saiu de cena o princípio de compor
"a partir da poesia" e entrou o de "na música". Curiosamente, em
ambas permanece a palavra. E isso não é necessariamente uma
contradição. Em "Xepa",
as vozes e risadas "distraídas", "fortuitas", "aleatórias",
porque gravadas nos intervalos do nosso tempo de estúdio, foram
utilizadas de maneira inteligente e sensível para devorar a
palavra no universo da música. Em
"Entre",
em meio à composição eletroacústica, a sutileza do "gemido"
onomatopaico (ah, hum) feito, a meu pedido, pelo trompetista
Raule Alves e dimensionado na peça por
Roseane Yampolschi criou níveis no diálogo poesia-som que nos
levam ao rumorismo fonético, o qual, segundo Enzo Minarelli,
aparece quando "a palavra é zerada até o fonema, com grande
carga de energia bucal, gravada numa unidade mínima do sistema
lingüístico". Nessa linha estão os dois poemas da faixa "Livro-se
+ Vrr",
porém com camadas de variações fonéticas interpretativas e
sonoridade extremamente refinada que se mantém na melodia
natural da língua
falada. "Entre" contém a rica
sugestão de ser um túnel sonoro que o liga
- pois está entre - aos poemas "Tungu
Ball",
posterior - no qual reaparecem explicitamente sons onomatopaicos
(ah! hã!) e ao poema anterior, "Buraco
de minhoca".
A mediação de palavra e som constrói ligamentos orgânicos entre
música eletroacústica, poesia, nanociência, ficção científica e
história em quadrinhos (feita para o poema "Buraco de minhoca"
por Maxx Figueiredo).
Cinemaginário,
Tortografia e Sonorizador, pelas tensões próprias
do encontro de linguagens, apresentam uma poesia organicamente
associada ao cinema.
Ricardo Corona
(1962) é autor de Cinemaginário (1999), Ladrão de fogo
(CD, Medusa, 2001), Tortografia (2003), Corpo sutil
(2005) e Sonorizador (livro-disco, 2007) - todos lançados
pela Iluminuras. Editou as revistas Medusa e Oroboro.
Leia poemas
de Ricardo Corona; ouça faixas do CD Sonorizador
e obras visuais de Tortografia.
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