POESIA E AGORIDADE
A partir desta edição,
Zunái inicia um amplo debate sobre o fazer poético
na era do fetichismo do mercado e da globalização. Quais seriam
as reais perspectivas para a poesia, hoje? Confira abaixo
as respostas dos autores convidados. As entrevistas foram
concedidas a Rodrigo de Souza Leão e a Jorge Lúcio de Campos,
e integram um livro inédito organizado pelos dois poetas.
Claudio Daniel
- Vivemos numa época de confusão e tumulto. Um tempo áspero,
metálico, ruidoso. Paisagem musical com figuras sombrias de
um quadro de El Greco. Percebo uma tensão cada vez maior entre
discurso e realidade, mitologia e fenômeno, como jogos de
luz e sombra. Essa dissonância é perceptível, sobretudo, no
choque entre as imagens paradisíacas da televisão e a violência
e miséria das ruas. A tese da "nova ordem mundial", que surgiu
após a queda do Muro de Berlim, no final dos anos 80, revela-se,
cada vez mais, uma peça de marketing, criada para encobrir
a brutalidade e a exclusão social.
Claro, a história é sempre uma construção
ficcional, com elementos de teologia, política e ópera bufa;
porém hoje, mais do que nunca, essa narrativa parece fantasiosa,
uma abstração cruel ou sarcástica caricatura. O suposto ambiente
clean, ordenado,
racional do capitalismo pós-moderno, veiculado na mídia como
o melhor dos mundos possíveis, já não convence a quase ninguém
que reflita, seriamente, sobre o assunto. Para os intelectuais
"colonizados", como dizia Glauber Rocha, ele existe como nova
mística; basta lermos os cadernos de cultura, política e economia
dos jornais, onde o espírito crítico foi substituído pelo
canto de louvor à tecnologia, ao liberalismo econômico e ao
consenso de Washington.
É o "monoteísmo do mercado"
de que falava Roger Garaudy. Porém, como falar em liberdade
individual, por exemplo, quando as pessoas são submetidas
a jornadas de trabalho de doze ou quatorze horas por dia,
perdem direitos sociais e são viciadas na morfina ideológica
transmitida pelas corporações, nas chamadas "políticas da
qualidade", que intentam transformá-las em bonecos mecânicos,
no melhor estilo George Orwell? O tempo livre para o lazer,
a informação, a cultura, é subtraído pelas exigências da produção,
e as poucas horas de entretenimento são gastas em frente à
televisão, que dissolve a massa encefálica em novelas lacrimosas,
programas de auditório e circos de reality
show. Não há espaço para o pensamento questionador; fica
cada vez mais reduzida a liberdade de escolha. Marchamos para
uma autocracia eletrônica, um despotismo inteligente, como
nos piores pesadelos de Aldous Huxley. Os noticiários sobre
os eventos internacionais, nas revistas e nos telejornais,
aproximam-se cada vez mais do estilo do antigo Pravda: o que
conta não é o fato, mas a interpretação ou motivação ideológica.
Basta vermos a cobertura da recente guerra afegã, por exemplo,
ou da campanha contra o Iraque. Quais podem ser as possibilidades
da poesia nesse labirinto de espelhos deformados? Resistir;
ser a voz contrária, borrão de tinta na tela, vírus de computador
que anarquiza, destoa e contradiz esse trágico desatino.
*
Claudio Willer -
Cito aquilo que Octavio Paz escreveu a respeito em A
outra voz? Ou então, este trecho de Os
filhos do barro: "A poesia moderna
oficia no subsolo da sociedade e o pão que divide entre seus
fiéis é uma hóstia envenenada: a negação e a crítica. Mas
essa cerimônia entre trevas é também uma procura do manancial
perdido, a água da origem." É claro que ele se refere à poesia
hermética, difícil, ao texto não-discursivo. Pode não ser
inteiramente verdadeiro, abranger apenas parte da poesia,
mas que é bonito, isso é. Veja que a identifica quase como
uma cultura underground, entende-a como discurso à margem,
por seu caráter não-instrumental. Concordo, é claro; e mais,
acho que, quanto à relação entre poesia e sociedade, continuamos
no ciclo inaugurado pelo Romantismo em sua oposição à sociedade
burguesa, representado e até encarnado por personagens como
Baudelaire e Rimbaud, e, no século XX, com especial vigor,
pelo surrealismo.
Ou seja: tudo mudou, mas,
ao mesmo tempo, tudo continua igual. Já observei isso em outras
entrevistas, inclusive aquela feita para o Balacobaco: o que
Baudelaire escreveu sobre o lugar do poeta na metrópole, na
sociedade de massas, continua valendo.
Precisamos ser claros
ao usar a expressão "contemporâneo". Hoje é quando? Há cento
e cinqüenta anos, Baudelaire já transmitia a idéia do poeta
como ser à parte, isolado e marginalizado na sociedade de
massas, o albatroz obrigado a levar uma vida pedestre, como
naquele poema de As
flores do mal e em tudo o que ele escreveu sobre a vida
na metrópole. A contradição poesia/sociedade (sociedade burguesa,
industrial, pós-industrial, de massas, de mercado, midiática,
o que for) já foi claramente estabelecida no Romantismo, e
não mudou em sua essência, a não ser pelo fato da sociedade
burguesa, hoje, ser menos fechada, mais permeável. Por exemplo,
você não tem censura direta, não toma processos por escrever
poemas - e este é um avanço recente. Aliás, sempre houve,
na civilização ocidental, tensão entre poesia, descontado
o beletrismo eloqüente, e sociedade; basta lembrar que Camões
foi criticado em seu próprio tempo, excluído, visto com desconfiança
por suas inovações, e só depois convertido em nosso autor
mais canônico. Isso, entre tantos outros exemplos.
*
Fabiano Calixto -
É difícil dizer quais as perspectivas do Homem no mundo contemporâneo,
e a poesia, sendo produto desse mesmo Homem, caminha, assim,
ao seu lado, na mesma obscura perspectiva, no mesmo sufoco,
com a mesma corda no pescoço. Neste momento, por exemplo,
estamos presenciando uma guerra absurda sob o comando insano
de um fascista chamado Bush - o presidente dos Estados Unidos
da América e magnata do petróleo. Pergunto-me: Há saída? Há
perspectiva? Se há, temos que nos esforçar muito para enxergá-la.
Se não há, temos que colocar todas as nossas forças no projeto
de fazê-la existir.
Acho que as pessoas estão
de saco cheio de conversas que não dão frutos. A desesperança
é total. Isso vislumbrado de um prisma muito mais amplo que
a vitória, no Brasil, de um presidente vindo da massa trabalhadora.
Este fato é de grande importância, sem dúvida, mas os problemas
são muito maiores do que os sonhos que esta eleição gerou
no imaginário das pessoas. Friamente pensando, o que podemos
fazer, enquanto cidadãos e artistas, é preparar algo melhor
para o futuro. Fazer as coisas acontecerem hoje para que amanhã
possamos colher algo que preste neste sanatório geral no qual
vivemos. A diferença cultural e social é brutal. E isso tem
que mudar. E, pior, sabemos que não é para já. Tem que haver
um trabalho sério. Confiamos nossa perspectiva a alguns sujeitos
nos quais votamos, mas os eleitores neste país não têm o hábito
de cobrar seus eleitos. A cobrança dos direitos seria um primeiro
passo. Chegar junto, protestar, fazer o ar ficar mais leve.
O caos assola também a
cultura em geral, em específico a poesia, cuja perspectiva
tentamos dar nesta conversa. Veja, a televisão inexiste enquanto
veículo de informação e cultura. E é a partir da tela da TV
que a maioria das pessoas formulam seu raciocínio sobre o
mundo em que vivem. Isso é quase a morte! As rádios, com uma
ou duas exceções, são um completo lixo - são os jardins suspensos
do jabá! O mercado editorial joga todos os anos livros e mais
livros nas prateleiras das livrarias nacionais - uma pesquisa
de 2001 mostra que o mercado editorial superou a indústria
fonográfica, isso significa um aumento gigante na produção
e venda de livros neste país. No período de 1990 a 2000, o
faturamento cresceu 122,2%!, os editores (ou editadores, se
preferirem) descobriram que se pode ganhar muito dinheiro
com publicações ordinárias. Com esses dados, penso que a discussão
sobre a leitura/livro no Brasil deva ter outras escalas, porque
o brasileiro hoje lê muito mais do que há dez anos, só que
o que esse sujeito lê é de qualidade duvidosa, é enlatado
made in USA,
ou romancezinho de quinta, livros de magos e monstros, de
como fazer crescer pêlo em ovo em quinze dias etc. etc. etc.
Você entra no trem, no metrô, no ônibus, há muitas pessoas
lendo. O problema está, como disse, na qualidade do que lêem.
Observe a educação, a
escola pública é um terror e está cercada de incompetência
por todos os lados - e isso não é implicância minha, as pesquisas
estão aí, na cara de todo mundo. Alunos das mais variadas
idades e séries que não sabem ler, escrever, raciocinar, e
que não vão ter, em hipótese alguma, chance de concorrer com
outros estudantes que vieram do bom ensino particular.
Mais uma vez, pergunto-me:
Quais as perspectivas num mundo como este? Num país como este?
Diante de tal quadro, em que coloquei alguns mínimos detalhes,
não sei se há perspectiva.
Lembro aqui um trecho
de Schopenhauer: "Parecemos carneiros a brincar sobre a relva,
enquanto o açougueiro já está a escolher um ou outro com os
olhos, pois em nossos bons tempos não sabemos que infelicidade
justamente agora o destino nos prepara - doença, perseguição,
empobrecimento, mutilação, cegueira, loucura, morte etc."
Somos todos carneirinhos felizes enquanto os açougueiros do
sistema escolhem friamente suas vítimas. Esta é a situação
do Homem contemporâneo.
Agora, sobre poesia, só
vejo saída nos trabalhos que têm ousadia, força e inteligência
- assim como somente acredito num povo com as mesmas características.
Não acredito nos poetinhas do academiquês, com seus poemas
gasto-gago-gregos-titiquinhas-de-Homero, com suas teses-fezes.
Isso para mim não interessa em nada.
*
Fabrício Carpinejar
- Como fixar o valor das coisas? Como cambiar o preço
flutuante do mundo? Quando enterradas, quando gastas pela
troca e uso das mãos, as palavras começam a ganhar história.
E só ganham memória na desvalorização. As perspectivas da
poesia são as melhores, porque ela não tem nada a perder.
Atingiu o anonimato necessário para vir à tona. Não cabe aos
poetas combater o concretismo, o formalismo, o surrealismo,
o romantismo, o realismo e outros movimentos. Até porque
o combate é a forma mais forte de influência. Acabou o maniqueísmo,
não obrigando a apagar as diferenças, e sim preservar a coexistência
de diferentes pulsões. A poesia brasileira passou pela fase
de provação acadêmica, de virar objeto de especialista, e
não do público (como nossas universidades são muito recentes,
ao contrário de instituições seculares de países como o México,
a poesia sofreu como rato de laboratório de teses), dos experimentalismos,
está preparada para emergir de influências determinantes como
Manuel Bandeira, João Cabral e Drummond. Vai rejuvenescer
como um dialeto, um idioma necessário para a reconciliação
do homem com o mundo primevo. Falará para a sociedade mais
do que para o mercado. Será um foco de resistência, assumindo
sua condição de contra-senso e magia. Em um momento em que
as pessoas carecem de fé, ela será um jeito de acreditar na
linguagem e reaver os lazeres vendidos a custo baixo (o excedente
do trabalho é exclusão). Será um ócio mobilizador, uma paciência
voraz. Se os detalhes são esquecidos pela pressa produtiva,
o que interessa ao escritor é ser a sobra, rebater a extinção
das lembranças fúteis, reciclar o tempo perdido. Como diz
Machado de Assis, a literatura deve ser "mais que um passatempo
e menos que um apostolado". Creio na espontaneidade maior
que não signifique desleixo, trocadilhos e publicidade, creio
na forma espontânea que não priorize a rima ou um efeito premeditado,
creio na epopéia da intimidade. Vejo que acontecerá uma maior
valorização de leitores de poesia, caso ela seja aplicada
como criação na sala de aula desde a infância, não apenas
como leitura.
*
Glauco Mattoso -
A pergunta é ambiciosa e sua resposta exigiria no mínimo a
inclusão num livro impresso em cuchê e encadernado em couro,
ou então um diploma manuscrito em gótico com iluminuras nas
capitais e moldura com arabescos, já que o convite a discorrer
parece sabatina de colégio. Mas como sou insubordinado, e
por isso me tornei poeta, trato de desobedecer, pelo menos
em parte, o regulamento. Respondo, portanto, não em lauda
mínima ou fonte obrigatória como proposto, e sim ilustrando
minhas posições com sonetos, a exemplo do que faço nas crônicas
e ensaios (em que intercalo prosa e poesia) para as colunas
virtuais que assino em diversos sítios. Dito isto, passo à
primeira resposta ressalvando que a poesia não tem perspectivas
reais, só tem perspectivas imaginárias.
Quanto à contemporaneidade
do mundo, poder-se-ia dizer da poesia o mesmo que
se diz da política, ou seja, que quanto mais muda,
mais continua sendo a mesma. Os poetas sempre foram, desde
os primórdios da civilização macacal, menos compositores que
intérpretes da realidade, isto é, reelaboram a palavra para
reforçar seu eterno significado sob uma aparência de invenção.
Na prática nada se cria (porque tudo é recriado) e nada se
copia (porque cada poeta é seu estilo individual), mas tudo
se apropria (isto é, se ajusta como roupa às medidas de quem
veste e à moda que veste os outros), de modo que na atualidade
o tamanho do guarda-roupa poético continua ocupando o mesmo
espaço do quarto e da casa que ocupava há séculos. Isto significa
dizer que, em tese, o poeta é onipotente e na prática não
passa de um visionário. E como de médico e de louco todo mundo
tem um pouco, todo poeta tem seu público e ao mesmo tempo
o público leva os poetas a sério só de vez em quando, nos
momentos de delírio. Esse é o alcance da poesia: surtos e
transes. A poesia não vacina, a poesia vaticina. A poesia
não cura, a poesia anestesia. A poesia não é uniforme, é fantasia.
Não é escudo nem colete antitiro, é máscara. Seu território
e sua fronteira são, portanto, tão curtos quanto um feriadão
de carnaval. Se entendermos a expressão "reais perspectivas"
como um espaço físico num tempo histórico, posso ilustrar
este tópico com dois sonetos topográficos e cronológicos:
SONETO 148 CASEIRO
Poema é como um plágio involuntário,
evoca alguma coisa que foi dita
sem ter na consciência que repita
chavões tradicionais do adagiário.
Se digo que sou falso plagiário,
ninguém na panelinha me acredita.
Mas, se parafraseio alguma cita,
daquilo já me julgam proprietário.
Idéia não tem dono, só inquilino.
Se existe estelionato do intelecto,
na lei do inquilinato me vacino.
Já residi num prédio
de concreto.
Morei também num mote fescenino,
mas hoje não motejo, só soneto.
SONETO 510 MALOCATÁRIO
Soneto é um apertado apartamento
num vasto condomínio de inquilinos.
A mesma planta e vários seus destinos:
um drama urbano em cada pavimento.
Dois quartos, pouca luz e muito vento,
que podem ser alcovas ou cassinos,
paróquias parcas, clubes clandestinos,
abrigo do autor brega ou do briguento.
Agora virou zona, mas um dia
foi casa de família e regra tinha:
conversa só começa se o pai pia.
Além da comezinha escrivaninha,
só tem privada, cama, mesa e pia.
Sem sala, o papo acaba na cozinha.
*
Jorge Lúcio de Campos
- Uma das mais valiosas conquistas (se não a mais valiosa)
efetuadas pelo homem deste fim-de-século foi a sua conscientização,
ao que parece (no mínimo, torço para tanto) definitiva, de
que a autonomia é um dado natural, e não algo muito maior
- uma espécie de ideal dourado - pelo qual sempre valeria
a pena lutar e até morrer, mas que ficaria ad
infinitum isolado numa campânula ou difratado como um
traço no horizonte, modulado no mapa sinuoso de um território,
enfim, inalcançável por si só. O fim desta importante mistificação
pode representar, é certo, um decisivo passo emancipatório
e não somente o de uma prática onanística de quase três séculos.
Afinal de contas, ser autônomo - ou estar consciente de que
ser autônomo é algo perfeitamente exeqüível - é uma condição
intrínseca para qualquer ser pensante que se saiba enquanto
tal e se importe com isso.
Em seu estágio atual,
esse processo - que também supõe, como acabei de propor, o
de uma providencial autoconscientização - já se revela urgente para alguns obstinados
segmentos da sociedade (lamentavelmente ainda tímidos e estranhos
demais à maioria de nós), favorecendo, claramente, uma pulverização
dos metadiscursos de outrora em micronarrativas deveras maleáveis
no que tange à conjunção e à pertença simbólicas. Em função
disso, falar-se em conceitos de índole platônica como "modelos",
"paradigmas" e "cânones" torna-se complicado, ao menos no
que tange à produção dissidente e estridente daqueles segmentos.
Quero dizer com isso que, em termos literários, os poetas
competentes de agora não têm outra alternativa que trabalharem
individualmente, um pouco solitariamente, em busca de soluções
não submetíveis aos critérios velozes de avaliação "cômoda",
oriundos quase sempre das máquinas de rostificação que os
homens da mídia e os burocratas de sempre acionam sem parar.
O processo criativo (não
só em termos poéticos) não pode, sob pena de se autodesqualificar,
deixar de marcar uma invariável positividade. Um artista criativo
é aquele que consegue conceder (direta ou indiretamente) à
sua obra a capacidade de afirmação e instauração do sentido.
Por detrás da complexidade da fatura da boa poesia (assim
como da boa pintura etc. etc.), estão dois agenciamentos mínimos
fundamentais: a intuição (o bom poeta é sempre aquele bem-sucedido
na extração-captura ordenadora do sentido bruto-caótico das
coisas) e a expressão (o bom poeta é sempre aquele que sabe
expressar, adequadamente - de forma a torná-lo esteticamente
compartilhável - o resultado "concreto" daquela extração-captura).
Dentro de tal contexto, a valoração de um poema se mostra,
então, muito relativa. Dependerá, enormemente, dos elementos
mínimos disponibilizados, no ato do encontro, pelo poeta e
pelo leitor-avaliador de sua poesia. Isso sem contar com os
aspectos psicológicos que, inevitavelmente, interferem no
processo, acelerando-o ou estancando-o. A grande arte nunca
foi e ainda não é da ordem das multidões, pois sua universalidade
não pode ser "fabricada", apesar do esforço, cada vez mais
agressivo, dos meios de comunicação e dos agentes do mercado.
A grande poesia é da ordem solitária dos indivíduos-neles-mesmos
e de suas clandestinas partilhas interpessoais.
*
Luiz Roberto Guedes
- A despeito do desencantamento deste mundo pós-utópico, da
hegemonia dessa divindade chamada Mercado, a poesia permanecerá
sempre como uma necessidade do espírito humano, uma expressão
inelutável da aventura de ser, transbordamento de uma demasia
do ser. Uma fome de beleza que jamais poderá ser saciada pelas
quinquilharias cintilantes do mundomercado.
Sua perspectiva é de sobrevivência
e perene resistência, apesar de/ou por sua mesma inutilidade,
sua menos-valia de artefato gratuito, que existe por si e
porque sim. Curiosamente, hoje se suspeita que a arte, esse
produto sem finalidade, seja uma verdadeira necessidade biológica,
e não só do homem, mas de outras espécies, como elefantes,
macacos e até gatos, a julgar pela pintura que produzem. Quanto à questão do lugar da poesia no mundo
das mercadorias e do espetáculo - onde o ataque ao Iraque
foi um show televisivo - seu "nicho de mercado" é mínimo,
mas suficiente. A aparente desimportância da poesia nesta
chamada "supermodernidade" é um queixume de poetas magoados
por esse exílio ou invisibilidade em cena,
mas não há o que lamentar, pois ela, a poesia, não
se reduz a entretenimento, não compete nem se confunde com
os produtos pretensamente culturais dessa indústria: fáceis,
rápidos, balanceados como rações. O critério de qualidade
desta era macdonaldizada é aquele proclamado pelo Fausto Silva:
"um milhão de cópias vendidas". O tempo da poesia é outro,
contemplação, reflexão, síntese; ciclo contrário ao imediatismo
do chamado tempo real, velocidade e virtualidade que hoje
"desrealizam" o mundo e abduzem as mentes, como alertou Paul
Virilio. No entanto, hoje o gueto poético também é global,
pois a internet promove a circulação universal da poesia.
Assim, a sociedade dos poetas proscritos persiste em seu ofício
de rebelião permanente, espalhando palavras ao vento, porque
ser "as antenas da raça" é destino inescapável. A história
não acabou, e a poesia sempre será possível, mesmo depois
de Auschwitz e da queda do World Trade Center. Aliás, já li
poemas imediatos e pontuais sobre este último evento. Vejamos
se a destruição da biblioteca de Bagdá ou o saque do museu
nacional iraquiano também dão samba, perdão, poesia.
*
Ricardo Aleixo -
A real perspectiva da poesia, hoje, é continuar existindo,
a despeito dos inúmeros diagnósticos que afirmam que ela se
encontraria em estágio terminal. Pura burrice. Ou, na melhor
das hipóteses, má-fé. Como pode a poesia desaparecer, se sequer
começamos a compreender o que é poesia e o que ela de fato
pode significar para as nossas vidas? Quanto a isso, não tenho
a menor dúvida: poesia é forma de conhecimento - como a filosofia,
a religião, o amor. O "mundo contemporâneo" pode nem saber
que precisa da poesia, mas precisa, sim. Sou daqueles que,
como Mário Faustino, crêem que "o poeta é, entre outras coisas,
um dos homens que compõem a tribu
prophétique, alimentadora da esperança dos homens, descortinando-lhes
um futuro mais nobre". Parece tão datado isso, não parece?
Mas é o que me orienta e me dá alento quando penso no "papel"
da poesia. Já há muita gente entregue à tarefa de anunciar
o fim do mundo, da história, do amor, da poesia e de tudo.
*
Rodrigo Garcia Lopes
- Numa sociedade de massas, em tempos de bombardeamento de
informações e maciça manipulação da linguagem (seja através
de notícias, pela propaganda e pelos meios de comunicação)
acho que a poesia permanece como força de resistência contra
a automatização e pasteurização de comportamentos, usos de
linguagem e percepções. A poesia é vital em nossos dias porque
ela nos força a parar e prestar atenção, a desfamiliarizar
e assim questionar o jeito como geralmente processamos as
informações, os dados imediatos da consciência. Como
escreve Guy Debord, no ensaio que traduzi
para a revista Coyote: "A notícia é a poesia do poder, a contra-poesia
da lei e da ordem, a falsificação mediada do que existe. Controversamente,
a poesia deve ser compreendida como uma comunicação direta
dentro da realidade e como a alteração real desta realidade.
É linguagem liberada, linguagem recuperando sua riqueza, linguagem
rompendo seus significados rígidos e que abraça simultaneamente
palavras e música, gritos e gestos, pintura e matemática,
fatos e atos. A poesia depende, assim, das mais ricas possibilidades
de viver e
de mudar a vida num determinado estágio da estrutura
socioeconômica. Nem é necessário dizer que esta relação da
poesia com seu material mais básico não é de subordinação
de um ao outro, mas uma interação." A poesia aponta e incorpora
outros modos de ver, de sentir, de ser e estar no mundo. Como
diria Paulo Leminski, ela é um inutensílio, e este é seu trunfo
numa sociedade lucrocêntrica. No entanto, e ironicamente,
ela é também "a última fronteira onde a arte se defende das
tentações de virar ornamento e mercadoria". A poesia é única
por compartilhar seu meio essencial, as palavras, com outras
formas de comunicação. Em termos de Foucault, é, potencialmente,
um contra-discurso entre discursos. Existem povos sem prosa,
mas não sem poesia. Todas as culturas começam com ela. As
qualidades sonoras, sensuais e perceptivas da poesia satisfazem
uma necessidade humana fundamental. Acredito numa ligação
visceral entre poesia e vida. Ou como diria Leminski, de novo,
"é a linguagem que deve estar a serviço da vida, não a vida
a serviço da linguagem". Por outro lado, é vital entender
poesia como a arte da linguagem. E isso significa reconhecer sua diferença e peculiaridade
em relação aos demais tipos de linguagem que usamos ou que
chegam até nós diariamente. Reconhecer os discursos à nossa
volta (a linguagem estando sempre colada à cultura em que
está imersa) é fundamental como forma de insubordinação e
resposta individual a um mundo cada vez aterrorizado pela
caretice e pelo terrorismo, cada vez mais saturado de informações,
onde fato se mistura à ficção, impactado por tanta violência,
miséria, mesquinharia, e que assiste à banalização da sensibilidade.
Poesia, assim, interessa hoje enquanto uma
forma de vida e de linguagem, e que funde arte e pensamento.
Acredito na poesia como forma máxima de conhecimento
do mundo. A poesia força as palavras até os limites da linguagem.
O próprio poema cria uma nova realidade de palavras.
*
Ronald Polito -
Uma resposta possível seria lembrar a frase tão citada e já
desgastada de Adorno, para quem não seria mais possível escrever
poemas depois de Auschwitz. Mas creio que os próprios fatos
desmentem este tipo de perspectiva catastrofista, pois simplesmente
(bons) poemas continuam sendo escritos, mesmo depois do Vietnã,
da Coréia, das ditaduras latino-americanas e ibéricas, da
Bósnia, da Angola, do Iraque atualmente, da próxima destruição
de amanhã, de daqui há um século, um milênio etc., enfim,
do "nazismo universal", nas palavras sintéticas de Jorge Mautner
e Caetano Veloso. E nem acho que, por causa destes e outros
fatos da miséria humana, seria mais difícil (ou mais fácil?)
escrever poemas.
Outra resposta possível
seria empreender uma leitura do mundo contemporâneo como o
pior dos mundos possíveis, coisa que também não me atrai e
nem convence, bem como o raciocínio contrário, do tipo "vivemos
no melhor dos mundos possíveis", que é outro modo patético
de experimentar e viver a realidade. Talvez pela minha formação
acadêmica de historiador, causam-me tédio estes padrões de
observação que considero rasteiros e ingênuos, pois incontáveis
épocas se imaginaram como as melhores ou as piores possíveis,
e não há um aparelho de medição do péssimo ou do ótimo. Vivemos
pior ou melhor do que nossos antepassados? Esta pergunta não
permite nenhuma resposta razoável, talvez porque a própria
pergunta careça de legitimidade ou consistência epistemológica.
Sendo (para mim) a poesia
essencialmente um problema de pesquisa da linguagem, as perspectivas
para ela são o enfrentamento das questões de linguagem que
cada tradição poética construiu em suas diversas configurações
espaço-temporais. Dependendo do fôlego, do interesse e da
erudição do poeta, ele buscará responder a poucas ou muitas
interrogações e perplexidades, ligadas apenas a seu pequeno
universo lingüístico circundante ou referindo-se a círculos
mais amplos, que transcendam inclusive o âmbito sempre limitado
da cultura em que nasceu, se educou e através da qual geralmente
se expressa. Mas, por mais amplos que sejam esses círculos
que o poeta seja capaz de absorver, creio que eles nunca se
conjuminarão no "mundo contemporâneo", objeto desmesurado
e inapropriável por qualquer ato cognitivo. Pois há muitos
"mundos" e a idéia de "contemporâneo" também parece pressupor
uma sincronia, uma simultaneidade que são fáceis de falsear
empiricamente. O que não impede alguns poetas de conseguir
atingir certo grau de universalidade, sempre relativa, sempre
incompleta, limitada. Como os seres humanos.
*
Donizete Galvão
- Falar em reais perspectivas pode virar um exercício de pretensão.
Haverá algumas perspectivas reais e outras falsas?
Entendo que o trabalho do poeta, como de todo artista,
é um tatear no escuro. A poesia vive no risco, na instabilidade,
no improvável. Se a gente nem sabe se vai escrever mais um
poema ou mais um livro, como saber quais são as reais perspectivas
da poesia? Quando termino um livro, eu me sinto zerado. Há
momentos em que acho que nunca mais escreverei nem um verso.
Portanto, não me sinto autorizado a fazer especulações sobre
perspectivas. Acho que isso pode interessar mais aos críticos
literários que acompanham a produção poética, se não do mundo,
pelo menos do país. Para o escritor o importante é seguir
escrevendo, sem interrogar muito se há futuro. Ele escreve
porque não conseguiria viver sem a escrita. Não há outra saída.
Em todo caso, podemos
divagar um pouco. Podemos pensar em um panorama mais pessimista,
como a do crítico Giulio Carlo Argan que temia que a poesia
se transformasse numa espécie de doutrina esotérica, uma "alquimia",
feita e lida apenas para um grupo de iniciados. Acho que esse
é um perigo real. Sendo mais otimista, lembrei-me de Harold
Bloom em O cânone ocidental,
naquela parte em que ela comenta Vico e fala da idéia da poesia
como uma "religião sem Deus". Pensar na poesia como a recuperação
de um terreno sagrado me dá um certo alento. Acho que vivemos
em um mundo completamente dessacralizado, em que o sentido
espiritual desapareceu da obra de arte. A mim interessa muito
essa idéia da arte como elemento de religação do homem com
o cosmo, como disse Ponge.
Agora, voltando os olhos
para a realidade, é inegável que a arte tem ocupado cada vez
menos espaço na vida das pessoas. A mente do homem de hoje
é muito dispersa, quer coisas rápidas, agradáveis, digeríveis.
Penso, por exemplo, no cinema voltado,
exclusivamente, para adolescentes que já não conseguem
acompanhar um filme que não contenha centenas de efeitos especiais
ou numa sessão que não seja acompanhada por um balde de pipocas,
coca-cola, balas e chocolates. Se o homem moderno não consegue
se concentrar em duas horas de filme, como vai querer se mirar
no espelho distorcido da arte? O mergulho em uma experiência
estética causa também dor. As pessoas, hoje, querem ser belas,
perfeitas, alegres, célebres. Será que têm tempo ou disposição
para encarar um romance ou mesmo um livro de poemas? Não é
incomum que as pessoas comentem que "viram" você na revista
tal, mas nem sequer comentem o que leram, se gostaram, se
detestaram. Pensando nessa cultura em que há tão pouco espaço
para a individuação, onde todos são meros consumidores, fica
difícil pensar em abertura para a poesia. Ela não tem nada
a ver com o que chamam de "mercado editorial". Acreditar nisso
é uma ilusão. Sem um público leitor, ainda que pequeno, fica
difícil até mesmo para o autor sentir a importância do que
está fazendo. E, quando falo público-leitor, não estou me
referindo aos próprios poetas, críticos, editores de revista,
que compõem o circuito fechado dos apreciadores da poesia.
Por isso, acho que devemos
pensar a poesia como um sal que atua em um terreno limitado,
mas não é menos importante. Importa, sim, para a língua do
país e para a sua cultura. Mesmo as pequenas tiragens podem
exercer, com o tempo, um efeito multiplicador. A poesia tem
seu valor na hora de tornar a língua mais rigorosa, menos
inflada, sem clichês. O grande compromisso do poeta é servir
à língua para que ela se expanda, se desenvolva, se enriqueça
com atritos e reverberações. A poesia deve dizer não
à vulgaridade da linguagem, ao mercantilismo, ao pensamento
rasteiro. É um trabalho de Sísifo, mas os poetas precisam
encarar que a poesia é uma vocação difícil.
Portanto, olhando para
o mundo pequeno da poesia, acho que temos que ter esperança.
Primeiro, porque a internet abriu muito as possibilidades
de comunicação entre os poetas, as trocas de leituras, os
sites, os blogs.
Isso causou uma efervescência. Se a quantidade não é sinal
de qualidade, acho que alguma coisa boa vai sim surgir desse
caldo. Revistas virtuais, como a Storm Magazine
e a Agulha, têm dedicado bons espaços para a literatura
e a poesia em particular.
Além disso, no Brasil,
aumentaram muito as publicações voltadas para a poesia. Ainda
que com tiragens pequenas, uma periodicidade incerta, são
muitas as revistas poéticas. Posso citar o mais antigo dos
suplementos, o Suplemento Literário de Minas Gerais, hoje editado muito bem pelo Anelito de Oliveira. Temos a
revista Poesia Sempre, da Biblioteca Nacional, Inimigo Rumor,
Sebastião, Coyote, Babel, Sibila, Rodapé, Et Cetera e por
aí vai.
Mesmo na grande imprensa,
há espaço para a poesia, como o caderno Mais!, da Folha de
São Paulo, onde publiquei dois poemas. São projetos que podem
amadurecer, outros podem ter vida curta, mas está havendo
uma movimentação. Acho que a fase da lamentação já foi superada.
Se pensarmos em nomes,
há poetas muito jovens que já são donos de uma obra de boa
qualidade e ao que tudo indica vão produzir grandes livros.
Penso em André Luiz Pinto, Dirceu Villa, Eduardo Sterzi, Paulo
Ferraz, Tarso de Melo, Rodrigo Petrônio, que têm menos de
trinta e devem produzir muita coisa boa nas próximas décadas.
Ou em nomes já mais conhecidos, como Claudia Roquette-Pinto,
Fábio Weintraub, Ruy Proença, só para citar alguns, que ainda
têm muito caminho pela frente e já atingiram sua maturidade.
Na área da crítica, há tantos bons nomes surgindo, todos preocupados
com a produção contemporânea, e que unem erudição e sensibilidade.
Cito os nomes de Eduardo Sterzi, Priscila Figueiredo e Sérgio
Alcides como prova de que a crítica vai muito bem.
Portanto, se olharmos
à nossa volta, veremos que existe produção poética de qualidade
e massa crítica. Agora, como isso vai se comportar em termos
de perspectivas culturais fica difícil saber. Sem a outra
ponta, que é o público-leitor, o ciclo não se completa. Entendo
que o artista não pode perder a esperança. Parece contraditório,
mas sou um melancólico esperançoso.
*
Floriano Martins -
As perspectivas da poesia são essencialmente de natureza estética.
Desta maneira, não podem ter senão leitura múltipla, uma vez
que comportam uma infinidade de abordagens da linguagem poética.
Tampouco cabem restringi-las à contemporaneidade, porque atuam
tanto dentro como fora do tempo. A menos que se esteja a pensar
não na criação mas sim na produção de obras poéticas, o que
não pode ser dissociado de aspectos como veiculação, difusão,
reflexão. Tem-se aí uma complexidade que envolve primeiramente
um conhecimento da matéria com que se lida, o que vale tanto
para o poeta ao criar o poema quanto para o editor ao optar
por este ou aquele livro, o crítico ao traçar paralelos subterrâneos
entre as obras que comenta, e o próprio leitor, no pleno exercício
de sua sensibilidade. Isto quer dizer que falta cultura a
todos os componentes desse cenário: poetas, editores, críticos,
leitores. Por aí, pela busca de tentar corrigir essa carência,
é que se estaria a desenhar um esboço vital do que desconfio
a pergunta trata como real perspectiva da poesia.
*
Leia também:
Poesia
e Agoridade II
Poesia
e Agoridade III
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