ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

Prosseguindo o debate iniciado em sua edição anterior, Zunái publica a segunda parte da série Poesia e Agoridade, organizada por Jorge Lúcio de Campos e Rodrigo de Souza Leão. Confira as respostas dos autores convidados à seguinte questão:

- Quais seriam, no seu modo ver, as principais linhas de força (influências) e de fuga (tendências) da poesia atualmente produzida no Brasil? De onde viemos e para onde vamos?

 

Claudio Daniel: A poesia dos autores mais recentes, ou seja, que publicaram o primeiro livro nos últimos cinco ou dez anos, não se presta a uma única definição. Há uma pluralidade de técnicas, diretrizes e conceitos que norteiam suas escolhas. No prefácio da antologia Na Virada do Século, Poesia de Invenção no Brasil, que publiquei em parceria com Frederico Barbosa, dizemos: "O império do pós-moderno, que vaticinou o fim da história e o eclipse das utopias, sob a hegemonia do capitalismo predatório neoliberal, só poderia mesmo conduzir a dois caminhos opostos: o da negação da idéia de vanguarda e o da (re)afirmação dos conceitos de invenção e pesquisa estética. Enquanto o primeiro faz a apologia da adoção de formas canonizadas por certa crítica universitária, como a poesia coloquial e discursiva centrada no cotidiano, reverberando o Modernismo dos anos 30, o segundo retoma a exploração de novos processos e procedimentos de escritura, como resposta, no plano formal, ao discurso banalizante da mídia. A demanda de informação nova, no caldo de beleza e brutalidade da aldeia globalizada, não se confunde, porém, com a tese de evolução estética linear, nem com a proposição de um futuro planejado, a partir de um programa teórico e de um grupo organizado, elementos típicos das vanguardas da primeira metade do século passado. Temos aqui uma pluralidade de linhas experimentais firmadas no solo da agoridade (...). Os poetas atuais não comungam de um mesmo credo, mas têm como princípio básico a noção do poema como um elaborado processo de linguagem - e não apenas isso. O meticuloso artesanato das palavras soma-se à investigação de novos repertórios simbólicos e culturais do Ocidente e do Oriente, da escritura e de outros códigos de expressão, de um passado remoto ou da atualidade - como resistência". Acredito que estas palavras, hoje, mantêm plena atualidade, bem como as afirmações do poeta e crítico uruguaio Eduardo Milán, em seu depoimento no Memorial da América Latina, em 1990 (e que incluí, como apêndice, no livro Estação da fábula, coletânea tradutória do vate rio-platense, publicada em 2001): "A poesia latino-americana de hoje se debate numa clara divisão: regressar de forma acrítica a um passado canônico ou continuar a busca de novos meios de expressão. Em termos gerais, o retorno a um passado canônico (...) implica a fuga de um presente caótico e a tentativa de buscar refúgio naqueles momentos históricos, especialmente em sua aura, que auguravam uma tranqüilidade espiritual dependente de um certo estado do mundo. A esse estado do mundo corresponderiam formas poéticas claramente tipificadas (...). Bem: a novidade dessas formas e sua carga crítica implícita estão agora perdidas para sempre. (...) Na verdade, o retorno às formas canônicas do passado, dado a sua perda de atualidade, supõe uma a-formalidade (...) que só é possível pelo estado atual do mundo: perda da fé na história como motor de mudanças, derrocada das utopias tanto estéticas como históricas, o cessar do devir temporal". Esta avaliação, feita por Milán no contexto hispano-americano, aplica-se à perfeição em nossas plagas, onde o establishment tenta impor como padrão certo coloquialismo invertebrado, calcado em modelos do modernismo tardio, deixando à margem as tentativas experimentais que representam o sopro de renovação de nossa poesia. O sucesso dessa empresa, porém, repousa em pés de barro, dada a fragilidade e inconseqüência de seus resultados. Por outro lado, os autores que apostam suas fichas no trabalho mais consistente com a linguagem têm obtido notáveis realizações; para citar poucos exemplos: Grafias, de André Dick; Zona branca, de Ademir Assunção; Fábrica, de Fabiano Calixto; Trívio, de Ricardo Aleixo; Polivox, de Rodrigo Garcia Lopes; e Animal anônimo, de Joca Reiners Terron. Poderia citar outros títulos, dada a riqueza e diversidade que caracterizam a nova poesia brasileira, em seus momentos de maior consistência e densidade, mas esses poucos nomes servem como amostragem do que está sendo produzido, na contracorrente do discurso conformista. São estes, para mim, os poetas e a poesia que apontam para o futuro.

*

 

Claudio Willer: Linhas de força e linhas de fuga? Fiquemos com tendências e influências. Continuamos dentro da tradição da modernidade (e não em uma suposta pós-modernidade). No caso brasileiro, daquilo que foi inaugurado pelo modernismo de 22, em sua diversidade (modernismo, aqui, foi muitas coisas, algumas delas não tão modernas e certamente bem pouco transgressivas). Existe uma corrente formalista, é claro, com um enorme débito com relação à poesia concreta, muito valorizada pela crítica e pelo ambiente universitário, e também algo como uma tendência mais conteudista, mais voltada para a mensagem que para o código; e muito ainda daquela dicção coloquial, do informalismo valorizado a partir dos anos 70 como poesia marginal, identificado a uma criação underground. Hoje, tais tendências em certo grau se combinam, confundem-se ou se sobrepõem em vários autores. E há muitos poetas bons, dos anos 60 para cá, escrevendo com imagens poéticas. Já fiz listas de poetas que deveriam ser mais lidos, e que não o são por não se enquadrarem nas tendências e movimentos dos mapeamentos em voga. Continuam valendo, essas listas. E há um pessoal bem novo, semi-inédito, com posições e dicções bem transgressivas, e com um interesse central em surrealismo. É claro que acho isso muito bom.

Já critiquei com muita ênfase - ou melhor, venho criticando, desde 70 e tantos, uma certa precipitação ao se escrever poesia brasileira, mapeando-a, estabelecendo topologias, descrevendo-a como série cronológica um tanto acelerada. "Dialética com taquicardia", já escrevi em certa ocasião. Tem que haver distância, para falar do hoje. Mas existe, sim, algo como uma "geração 90", marcada pela eqüidistância, maior pluralismo, e, como já disse acima, imagens poéticas.

*

 

Rodrigo Garcia Lopes: Passamos os anos 80 e 90 escutando a ladainha de que a poesia brasileira contemporânea estava fraca, que nada interessante estava acontecendo etc. Hoje não há como negar que a situação melhorou muito: há mais sites, revistas e, principalmente, poetas de qualidade do que anos atrás. Ao invés de apontar as linhas de força (mesmo porque muitos estilos às vezes se aglutinam num mesmo poeta) prefiro listar algumas tendências mais visíveis: uma neoconservadora, que escreve como se estivéssemos no século retrasado, quando não repisa o modernismo sem acrescentar nada a ele. Nesta tendência estão poetas como Afonso Romanno de Sant´Anna, Ivo Barroso, Ivan Junqueira, Bruno Tolentino, Alexei Bueno, entre outros, que têm muito poder junto a grandes editoras etc. Há também uma certa linha que poderíamos dizer neo-modernista, mas é uma poesia escrita por jovens que parecem escrever como velhos, geralmente diluições pioradas e sem visão de um Drummond, Bandeira e Cabral. Esta é bastante tributária da "angústia da influência" e se restringe, quase sempre, a um coloquialismo do cotidiano. Do outro lado, pode-se apontar uma tendência pós-concreta (com seus desdobramentos neobarrocos, neominimalistas etc). O concretismo foi importante, e sua maior lição para os poetas jovens foi apontar, de modo inequívoco, a falácia da transparência da palavra, a importância da materialidade da linguagem, vital para a poesia. Mas muitos poetas estão ainda presos a seus postulados, e se recusam a buscar outros processos de linguagem, referências, outras tradições. Algo que tenho observado em parte da poesia brasileira que tem sido publicada e em antologias recentes é que ela, com felizes exceções, está muito chata, livresca, literária demais. Muitas vezes tenho a impressão que os poetas estão escrevendo um mesmo poema. Digo isso em relação a um tipo de poema curto, levemente perturbado sintaticamente, de ritmo sincopado, com cortes abruptos que muitas vezes apenas mascaram uma seqüência, em textos que muitas vezes que são fragmentos de descrições estilizadas. Para mim, esses poemas são apenas aparentemente concisos. Escondem, muitas vezes, uma falta do que dizer sob a camuflagem de uma descrição fraturada, de anti-lirismo, com uma citaçãozinha cult aqui e acolá (de preferência em francês), mas que revelam uma falta de plano e visão: poemas tipo "a avenca/ à janela/ embora/ caligramas, a/ paisagem." Ou: "o gato, quer dizer/ embora nem tanto/ pisa pé/ ante pé (pétala)/ etc. etc". Concisão, é bom lembrar, não é tanto uma questão de quantidade mas de qualidade do dizer. Um haikai, mesmo conciso, pode ser fraco e não dizer muita coisa, enquanto um poema longo como Song of Myself de Whitman diz e diz muito. Discursivismo não é verborragia. Muitas vezes vejo poemas que parecem escritos por um mesmo poeta, como se fossem imitações de Regis Bonvicino quando ele dilui ou traduz Robert Creeley! Mesmo nos melhores poemas concretos, que eram assumidamente antidiscursivos, era clara a intenção, o dizer do poema (vide nascemorre, do Haroldo). Quando a poesia vira mero trocadalho do carilho ou "jogo de linguagem", quando ela parece estar sendo escrita apenas para aplauso dos críticos ou de outros poetas, quando ela fica artificiosa e chata, a qualidade do dizer poético sai perdendo. Além do que, costumam me proporcionar, como leitor, viagens muito curtas. Este reducionismo de expressão é, em parte, influência direta dos postulados concretistas, bem como do poema-minuto revisitado pela poesia marginal. Não que eu seja contra poemas curtos, eu mesmo os pratico muito, mas creio que está faltando mais fôlego, mais visão, mais contundência na poesia escrita hoje.

Há, finalmente, os autores que se alimentam de tradições diversas e a fundem de modo único. Há casos em que várias categorias textuais convivem pacificamente na obra de um único poeta. Há poetas idiossincráticos e que não pertencem a nenhuma dessas tendências, como um Roberto Piva, Waly Salomão, Glauco Mattoso, por exemplo. No entanto, é meio inescapável reconhecer que em todas essas tendências ainda domina, mesmo subliminarmente, o lirismo romântico e modernista: uma forma poética "em que o falante isolado (seja ou não o poeta), localizado numa paisagem específica, medita ou rumina sobre algum aspecto de sua relação com o mundo exterior, chegando por fim a alguma sorte de epifania, um momento de percepção com que o poema se encerra" (Perloff). A explosão ou desconstrução desse conceito de sujeito lírico é um dos desafios do poeta hoje, propor outras subjetividades e conceitos, outros modos de fruição poética. O poema tem que chegar junto, converter o leitor à beleza e estranheza da linguagem poética por si só. Se impor como um ser de linguagem re-potencializada, re-carregada de sentido. Ser crítica, exploratória, surpreendente, revelatória, celebratória, ou tudo isso. Whitman: "O teste de um poema é quão longe possa elevar, purificar, aprofundar e tornar feliz os atributos do corpo e da alma humana".

Para não dizer que comungo com os pessimistas de plantão, poderia mencionar poetas importantes e de relativamente diferentes linhas discursivas poéticas hoje: Luis Dolhnikoff, Josely Vianna Baptista, Sebastião Nunes, Régis Bonvicino, Ademir Assunção, Claudio Daniel, Marcos Losnak, Joca Reiners Terron, Claudia Roquette-Pinto, Mário Bortolotto, Fernando Karl, Contador Borges, Jairo Batista Pereira, Carlito Azevedo, Maurício Arruda Mendonça, para citarmos apenas alguns. Não poderia haver poetas de sensibilidades e linguagens mais díspares, com todos os pontos geracionais, de contato e de leitura que possam ter (modernismo de 22/concretismo/Leminski etc). Prefiro ver essa configuração como indicando vetores em transe e em crise, como todos nós, para com as potencialidades e usos e conseqüências éticas e estéticas da palavra. Eles têm linguagens que às vezes se tocam ou se contrastam, cada um com seu próprio repertório sempre em transformação. Juntas, dão uma configuração interessante da poesia hoje que está aí.

*

 

Donizete Galvão: As linhas de "fuga" são mais fáceis de serem identificadas. Acho que fogem da poesia os editores, os livreiros e aquelas pessoas que acham que poesia é coisa de gente meio maluca, romântica, sem o mínimo senso de realidade.

Essa identificação da poesia como uma coisa sentimental, cheia de uma ternura untuosa, ainda persiste. Há quem faça esse tipo de poesia e até os que a lêem. Sinceramente, eu tenho enjôo dessa poesia que exala mais perfume do que aqueles cartões natalinos. Prefiro ler dicionários, história e livros de geografia. Para início de conversa, é preciso limpar o terreno arrancando todas essas banalidades de diário sentimental tidas como poesia. Desbastado o cenário de todas essas mediocridades que anualmente são lançadas, fica mais fácil identificar algumas tendências poéticas.

Um dos grupos mais atuantes são aqueles que beberam todas as teorias dos concretistas, não se sentem na obrigação de fazer poesia concreta, mas inegavelmente têm muito a ver com rigor, concisão, experimentação e a tal dança do intelecto. São poetas-críticos, quase sempre com mestrado ou doutorado na área de Literatura. Poderíamos chamar essa tendência de minimalista apenas para colocar um rótulo. Há muitos bons poetas nessa linha. Os principais problemas são a abstração excessiva, um gosto pelo fragmento pós-moderno, uso de flashes poéticos que não se articulam para formar uma poética, sintaxe esgarçada num mundo que já está fragmentado demais. Como qualidade, além da erudição, acho que há a disposição para dialogar com poesia de outros países (Estados Unidos e França), envolvimento com a tradução de poetas importantes. É uma poesia cosmopolita, de metrópoles, que em certo momento me parece sem chão.

Do lado oposto, há uma espécie de nostalgia de retrocesso. Poetas mais conservadores que são extremamente críticos com relação ao modernismo e escrevem naquelas revistas que jogam tomates em Oswald de Andrade. Há uma nostalgia do apuro formal do parnasianismo, interesse por formas fixas como o soneto e uso de um tom sublime um tanto simbolista. Eu não tenho nada contra poetas de tom elevado. Dora Ferreira da Silva, Ivan Junqueira e Hilda Hilst são exemplos do que pode ser produzido com uma dicção elevada, na tradição dos grandes poetas da tradição ocidental. Acontece de o tom sublime ser, em alguns um tanto exagerado, postiço. O resultado pode ser uma poesia que soa anacrônica e até mesmo kitsch. Cultivam uma visão extremamente crítica do modernismo, que para muitos deles foi um blefe.

No meio do caminho, ficam aqueles mais ligados à tradição modernista de Drummond, Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Murilo Mendes e Mário de Andrade. São poetas que entendem que ainda é possível levar adiante certas conquistas modernistas e que sentem que o diálogo ainda não se esgotou. Este é um grupo muito criticado por ambos grupos anteriores. Eu acho que estou mais próximo dessa linha que ainda conserva, mesmo que forma mais crítica e desencantada, um certo projeto cultural para o país. Trata-se de uma poesia mais realista, mais enraizada no chão e numa mitologia pessoal ou familiar. Há o risco do auto-engano, da repetição, de se estabelecer em um nível mediano.

Outra vertente é a que busca um diálogo mais próximo com a poesia hispânica, seja aquela de características surrealistas ou com poetas do Neobarroco como José Kozer ou Reynaldo Jiménez. Entenda-se que Neobarroco é mais um rótulo para agrupar admiradores de poetas como Lezama Lima ou Severo Sarduy do que uma escola. Ultimamente, têm surgido boas traduções da poesia hispânica contemporânea e poemas de autores brasileiros são publicadas em revistas fora do país e latino-americanos publicam em revistas brasileiras e participam do conselho editorial de várias delas. Para meu gosto, há artifício demais e uma linguagem rebuscada que parece girar em falso.

O que expus é quadro bastante simplista. A poesia não cabe nesses compartimentos e os poetas circulam entre várias dessas tendências. Nem vale a pena em louvar a multiplicidade de vozes que já virou um lugar comum. Pode ser que o que esteja faltando seja justamente um debate mais aprofundo do que realmente importa , como resultado estético, de todas essas linhas. Uma tarefa para a crítica sobretudo. Muitas vezes o debate é substituído por louvores, farpas, suscetibilidades extremadas. O debate precisa de um distanciamento crítico e de racionalidade, sem aqueles tons apaixonados tão comuns em polêmicas e discussões. Uma das melhores coisa que li ultimamente foi um ensaio de Eduardo Sterzi chamado O mito dissoluto onde ele investiga essa dissolução do mito na poesia brasileira até chegar a negatividade da produção atual. Acho que é desse tipo de crítica de maior fôlego que estamos precisando.

Para encerrar esta questão, devo dizer que não acredito muito em linhas evolutivas que progridem linearmente. Penso mais em termos de vasos comunicantes. Não acredito em darwinismo cultural. Todos os grandes poetas estão vivos e são contemporâneos de cada geração que dialoga e reinventa seus antecessores, constituindo sua família espiritual. No meu tempo de criança havia um caderno escolar muito comum em que um menino segurava uma bandeira onde estava escrito Avante! Não acredito nessa caminhada sempre avante. Os caminhos são mais tortuosos e circulares. E muitos poetas que têm um discurso vanguardista, muitas vezes até encantador, fazem poemas conservadores ou mesmo ruins. Uma boa teoria não gera necessariamente um bom poema.

*

 

Fabiano Calixto: Há muitas linhas de força. Vejo, em alguns autores contemporâneos, uma qualidade muito grande e é muito bom poder notar também a multiplicidade de escolhas estéticas dos mesmos, ou seja, há várias poéticas em ação e isso é ótimo, afinal, vivemos num país de dimensões continentais, quase 200 milhões de pessoas, seria ridículo, portanto, se tivéssemos apenas um modo de fazer poesia. Viemos de uma tradição fortíssima, de poetas como Sousândrade, Cruz e Sousa, Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, João Cabral de Melo Neto, entre outros. E temos o privilégio de ter alguns autores vivos entre os melhores do mundo! Leia-se: Augusto de Campos, Décio Pignatari, Manoel de Barros, Ferreira Gullar, Armando Freitas Filho - note-se, também nestes nomes, a diferença de opções e isso não anula, de forma alguma, a qualidade de um ou de outro (como quer, aliás, uma parcela fascista do critiquês tupiniquim).

Falando dos autores mais jovens, que estrearam há mais ou menos uma década, uma década e meia, há, como disse acima, um trabalho fortíssimo em construção. Poetas como Carlito Azevedo, Claudia Roquette-Pinto, Claudio Daniel, Frederico Barbosa, Ricardo Aleixo, Arnaldo Antunes, Ronald Polito, Antônio Moura, Eucanaã Ferraz, Ademir Assunção, me interessam muito. Há também os que já publicavam entre as décadas de 60 e 70, como é o caso da divina trindade formada por Paulo Leminski, Torquato Neto e Ana Cristina César, que já se foram e estão tendo uma atenção maior da crítica mais consciente, e os que vêm do mesmo momento e continuam produzindo poesia high quality em nossos dias, como é o caso de Glauco Mattoso, Júlio Castañon Guimarães, Horácio Costa, Duda Machado, Waly Salomão e Régis Bonvicino. E há ainda os novíssimos, os nascidos nos anos 70, como André Dick, Eduardo Sterzi, Kleber Mantovani, Micheliny Verunschk, Virna G. Teixeira, Tarso de Melo, Marcelo Montenegro, que têm trabalhos extremamente interessantes. Destes nomes que citei (e é apenas uma parte, pois há alguns outros nomes muito bons) pode-se perceber a já dita multiplicidade de direções. E todos têm em comum dois característicos que os torna fortes: a busca da elaboração da linguagem e a do entendimento do estar-no-mundo. Essa é para mim a linha de força da poesia brasileira e é por aí, acredito, que ela caminhará.

*

 

Fabrício Carpinejar: Grandes poetas estão produzindo sem medo do futuro, muito menos rancor do passado. O que aconteceu foi uma mudança de mentalidade, a poesia perdeu a influência social que tinha antes, as tiragens estão menores, o círculo mais restrito entre os próprios críticos, a rede mais fragmentada devido ao bombardeiro de informações e expansão de sites e revistas digitais. Mas, de qualquer forma, a poesia brasileira soube produzir seu próprio espaço de interlocução. A falta de lugar é também um lugar. Aprendeu com a rejeição, alcançando novas formas e estabelecendo uma mestiçagem de vozes que singulariza seu papel multicultural. O caminho pressentido é de um barroco diferenciado, com despojamento formal e excesso de conteúdo. Dificilmente, encontraremos esse alto grau de invenção em outro país. Na última metade do século XX, subestimamos o barroco sensual executado por Jorge de Lima (nosso Heitor Villa-Lobos do lirismo) em nome de uma poesia crítica e social, mas ele voltou. Nossa marca é a exuberância, os contrastes, a superação dos gêneros, a pujança de cores, inscritas na música popular (Caetano Veloso) e no romance e no conto. Hoje a poesia está extremamente narcísica. O passo seguinte será transformar a conjugação da primeira pessoa do singular para o plural. Haverá o desejo de corporificar as cidades, mapear os conflitos de início de século e falar em nome de uma coletividade.

*

 

Floriano Martins: Embora os termos não me agradem em nada, o que cabe definir antes é a extensão dessa atualidade. Tratamos de poetas vivos e atuantes, independente da idade? Ou tratamos apenas das vozes mais jovens, que começam a despontar? Como é sempre prematuro, quando não de todo ingênuo, falar do que está a surgir, melhor que pensemos no primeiro parâmetro. Temos ainda bastante misturado um universo de tendências que se repetem ou tateiam à procura de algo ainda por ser vislumbrado. Em texto de abertura que preparei para uma edição especial da revista mexicana Alforja, edição inteiramente dedicada à poesia brasileira, comentei que o "abismo entre o falante e sua condição existencial é um dos dilemas mais freqüentes na poesia que se tem escrito no Brasil". Reproduzo a seguir uma breve passagem desse texto, o que me parece sugerir alguns pontos para essa discussão:

"O coloquialismo buscado pelo que se poderia chamar de uma pós-vanguarda, aquele momento centrado nos anos 70 - onde se confunde o entoar de cantos contraculturais com a erva acesa em nome de nada -, raramente atinge uma carga de vivência que se misture a uma expressão poética consistente e renovadora. Ao contrário, foi dar em uma junção de grandiloqüência e maneirismo que exacerbava a mais lastimável de todas as vertentes estéticas até então cultuadas.

A falta de analogia, uma das características essenciais da poesia desde quando entrada na modernidade, nos deixou primeiramente a fazer graça (sem graça alguma, diga-se), concluindo por uma ironia estéril, onde o objeto do riso não pode contestar por ausência total de diálogo. Toda perspectiva de analogia foi convertida em imposição, assimilação fácil da colonização de origem, identificação com um cartesianismo escolástico, onde a teoria define a prática, em cumplicidade com as evidências de poder.

Certo é que as vozes mais substanciosas permanecem, em grande número, subterrâneas. Não se trata de uma etapa, em meio a uma plataforma de superficialidade em que se constitui a presente época. Estamos sempre descobrindo com atraso nossos grandes valores poéticos do passado, quase sempre defasados em relação a nós mesmos. Padecemos de uma ignorância que nos é praticamente inata. Desconhecemos o mundo que levamos dentro de nós, no caso da grandeza indiscutível de uma tradição poética, o que se traduz em um comportamento deslumbrado diante de fogos pirotécnicos dentro e fora do país.

Em face disto, acabamos difundindo a produção de uma poesia de duvidosa qualidade, repleta de ornamentos (uma irreverência atônita, um frívolo orientalismo, um grafismo inócuo, um devaneio sub-filosófico etc.), onde não há um mínimo contato com a visceralidade da existência humana. Apesar de tudo, essa é a poesia que se mostra, ainda que não seja a que verdadeiramente temos. Como o país vive em perene descompasso entre a vertigem do dia e um prazer ilusório, prevalece toda forma de facilismo formalista, desde o desenho aleatório (com ares de uma equação matemática) de palavras na página, até a mera descrição de cenas, flashes de uma paisagem onde a pessoa é nada. Enfim, não há uma contribuição de sentido nessa linguagem poética." (Alforja # XIX, México, 2001)

*

 

Glauco Mattoso: "Linha de força" para mim é fio elétrico, e "linha de fuga" equivale a uma saída de emergência. Se isto sugere que a poesia brasileira entrou num curto-circuito e que precisamos duma escapatória, eu diria que concordo, mas apenas em parte. O impasse acontece se o poeta pretende vincular-se a alguma corrente ou escola, mas a escapatória neste caso é apenas provisória: trocar de camisa, despindo a do time campeão do ano passado e vestindo a do campeão deste ano. Como os campeonatos são cíclicos e rotativos, esta solução meramente prorroga o impasse. Parnasianos que viraram modernistas voltarão ao parnasianismo na geração 45ista para, mais tarde, voltarem ao modernismo, seja através do concretismo, seja através do marginalismo, dependendo do grau de formalismo ou informalismo de seu background ou underground. Drummondianos que viraram cabralinos amanhã poderão estar combatendo a escravatura como Castro Alves ou defendendo a independência como Gonzaga, dependendo do engajamento mais momentoso. Já para o poeta cuja cosmovisão é menos relativista o impasse se reduz a um pêndulo bem mais
universal à história da poesia: oscilar entre o heroísmo e o humorismo, entre o épico e o epigramático, entre Camões e Gregório, caso em que me coloco. De onde viemos? De Portugal, portanto de Camões. Para onde vamos? Para Pasárgada, ora! Ou então para Maracangalha, como Caymmi, aliás conterrâneo de Gregório, de quem, aliás, Bocage é póstero. Quero com isto dizer que os poetas não-alinhados e inenquadráveis (tipo Augusto dos Anjos ou Zé Limeira) nunca dependeram nem dependerão de "linhas de força", assim como poetas cotucadores de onça com vara curta (e grossa) e mexedores em casas de marimbondos (de fogo) (tipo Gregório ou Emílio) nem têm para onde nem por que fugir, dispensando portanto as "rotas de fuga". São estes, os não-alinhados e os cotucadores, personalidades individuais demais, portadores, por si mesmos, de tanta complexidade e tamanha problemática que passam ao largo dos impasses sazonais do revezamento escolástico, com ou sem diluição pós-isto ou pós-aquilo. Pensando nos alinhados, nos desalinhados, nos deselegantes e nos absolutamente desleixados, fiz o seguinte soneto recapitulando alguns momentos dessa trajetória da poesia local:

SONETO 394 BELETRISTA

Na história da poesia brasileira
Gregório, como um sátiro, desponta.
Dirceu canta Marília, que não conta.
Gonçalves Dias trepa na palmeira.

Rabelo é Zé, não tem eira nem beira.
Escravo, ao Castro Alves, vira afronta.
Bilac eleva e leva a lavra em conta.
Delfino é preso ao pé, mas mal o cheira.

Augustos são vanguarda: Alguém os siga!
Oswald e Mário apupam: Pau no apuro!
Drummond, Bandeira, ombreiam, bons de briga.

Cabral é cabra cru, cerebral, duro.
Se Piva quer viver na Grécia antiga,
Mattoso, em trevas, vive no futuro.

*



Jorge Lúcio de Campos: É da ordem do sensus communis que a sofisticação tecnológica crescente dos meios informacionais coloque em questão os códigos, digamos, mais "tradicionais" de percepção-concepção do real circundante. Se, de fato, os poetas ainda buscam (porque, de um modo imponderável, necessitariam) imitar esse real, ou afundam numa faina paradoxal que os leva a diferentes níveis de mudez (considerando-se os muitos pios, murmúrios e gaguejos com que nos deparamos, em sua produção, amiúde como modalidades de dissimulação dessa mudez) ou, simplesmente, se deixam levar pelos meios-tons do jogo simulacional, o que os levaria a um comportamento, sob certa ótica, bastante questionável. A instrumentação crescente da própria poesia a partir de outras dicções poéticas, seria, atualmente, uma de suas mais marcantes características. O problema é como, no caso da tradução de versos, normalmente apenas os bons poetas tem se mostrado capazes de nutrir-se criativamente (e ao seu texto) com a experiência do alheio, estabelecendo esgarçamentos semióticos que poderíamos considerar válidos e enriquecedores. Em torno dessa vertigem intersemiótica, típica, principalmente, das últimas duas décadas, é que transitariam - num primeiro plano de visibilidade - de forma quase indiscernível, a competência e a incompetência de nossa produção atual. Afinal, citar criativamente ou criar através da citação não é tarefa das mais fáceis comparativamente ao citar por citar, caracterizado pela gratuidade aparente que esse ato revela. Os possíveis malefícios causados em um ou por um corpo possuído não devem, necessariamente, ser atribuídos aos aos quais se atribui a fragilidade da cultura simulacional "pós-moderna" fantasmas que nele se instalaram.

Os equívocos advém quase sempre das carências discursivas e do pouco amadurecimento simbólico dos que a produzem. Os pré-modernismos, o modernismo de 22, a geração de 45, o concretismo e a poesia-práxis têm sido apontados como alguns desses fantasmas que "assolariam" a nossa (anti)produção atual. Contudo, a geração poética do "neo" (genealogicamente enfileirada em termos das décadas de 80 e 90) vem apenas acompanhando uma tendência típica de nosso Zeitgeist. Importaria muito mais, no caso, avaliar a sua capacidade de lidar, gerenciar os códigos deste espírito que assola, segundo alguns (ou abençoa, segundo outros), o nosso momento histórico.

O romantismo pôs no colo de seus escritores e pintores um desafio tão árduo quanto o de agora: buscar a originalidade pela originalidade em nome da genialidade pela genialidade e somente alguns deles (é claro que o número dos que tentaram e falharam decerto foi maior do que o dos bem-sucedidos) conseguiram, com efeito, processá-lo com eficiência. Hoje pode-se dizer que, se não ocorre o mesmo fenômeno, as diferenças também não chegam a ser tão decisivas. Diante da disseminação repertorial, cabe a cada um de nossos poetas decidir, sempre da maneira mais criativa possível, o que fazer com (e não estou me referindo à turba infinita das fantasmagorias de menor porte) os megaespectros de Pessoa, Oswald, Cummings, Cabral, dos irmãos Campos ou de quem quer que seja. Importa saber, como corretamente afirmou Ivan Junqueira, que "é no equilíbrio alcançado por uma coisa e outra (forma e conteúdo) que se revela o grande poeta". Um dos equívocos da poesia de participação social é justamente este: em nome de uma utopia humanitária desdenha-se da forma e, a partir daí, compromete-se a possibilidade de transmissão artística ou de fruição do objeto estético. Enfim, se somos artistas, não podemos jamais renunciar à beleza em que consiste o matrimônio indissolúvel entre forma e fundo.

Do período paleolítico ao theatrum pós-moderno, de estrito servidor da sociedade (cf. figuras do artista-feiticeiro, do artista-sacerdote, do artista-cortesão e do artista-funcionário, entre outras) ao confortável status de franco-atirador ou de usufrutuário-manipulador de simulacros lúdicos, o artista continuará sendo ainda assim, segundo Jean Cassou, "já alguém em que se apercebe uma singularidade específica e a obra que produz pode(rá) ser por nós (de algum modo) desembaraçavel de significados e intenções para nos aparecer como uma obra de arte". A fuga da estandardização seria, portanto, um critério consistente para avaliar, em termos qualitativos, a atual produção poética brasileira. Não são muitos os que tem demonstrado esse dinamismo em suas coletâneas. Como não poderia deixar de ser, a maioria, numa condição in progress, esbarra em suas próprias indefinições, desinformações e mesmo em arroubos esteticamente inócuos. Não são muitos também os que ousam, optando pelas vias da transgressão e da transcendência, ou melhor, pelas vias da densidade transgressiva e, algo paradoxal (mas apenas à primeira vista), da positividade transcendental. Afinal, estas vias estão entre as mais árduas e, ainda por cima, as próprias idéias de transgressão (assim como a de experimentação) e transcendência se viram anodinizadas pela de seu simulacro e hoje transgredir e transcender são, com freqüência, no mínimo práticas vazias e gratuitas e, no máximo, algo vetusto e enigmático aos olhos mais jovens.

A questão que ora parece se impor, de maneira imediata - quase premente e por dentro - na poesia brasileira contemporânea, é a mesma que se pretende também urgente fora dela: na prosa, no pensamento, nas falas, nos hábitos... Importa, enfim, decidir logo entre duas estratégias de deslocamento (não implicando nenhuma delas o que, no caso, deveria ser levado em conta, ou seja, o afrontamento). Boa parte de nossos poetas mais jovens vem se embaraçando com um penoso dilema: recuar ou avançar? Poucos são os que se colocam a hipótese mais "inteligente" de vencê-lo, permanecendo no código, retomando-o com paciência - aos poucos, mas sempre - na medida de suas necessidades intrínsecas de (re)dinamização; (re)operando-o no presente, na potencialidade inesgotável do agora.

Em verdade, não são muitos - nunca foram ou deverão ser - os poetas que podemos considerar excelentes. Se fosse possível definir o lançar poético como um risco (assim como todos os demais lançares discursivos, aí inclusos os escritos e os não-escritos) - um que envolveria o descortinamento dos próprios mistérios pessoais mediante a via equilibrante do rigor - então não poderia restar dúvidas quanto a isso. Se, por um lado, é alto o número dos que se arriscam, irresponsavelmente, na gratuidade do gesto de quem apenas pensa porque pensa ou anseia porque anseia fazer poesia, expondo-se, amiúde, ao ridículo e ao rebaixamento, pelo outro, são raros, felizmente, os que se arriscam no sentido proposto e é mais do que normal (e saudável) que assim ocorra.

Como já tive a oportunidade de externar, numa outra ocasião, penso que o processo criativo (não só em termos poéticos) não pode, sob pena de se autodesqualificar, deixar de marcar uma invariável positividade, sendo criativo o artista que consegue conceder (direta ou indiretamente) à sua obra a capacidade de afirmação e instauração do sentido. Por detrás da complexidade da fatura da boa poesia (assim como da boa pintura etc.), estão dois agenciamentos mínimos fundamentais: a intuição (o bom poeta é sempre aquele bem-sucedido na extração-captura ordenadora do sentido bruto-caótico das coisas) e a expressão (o bom poeta é sempre aquele que sabe expressar, adequadamente - de forma a torná-lo esteticamente compartilhável - o resultado "concreto" daquela extração-captura). Dentro de tal contexto, a valoração de um poema se mostra, então, muito relativa. Depende, enormemente, dos elementos mínimos disponibilizados, no ato do encontro, pelo poeta e pelo leitor-avaliador de sua poesia. Isso sem contar com os aspectos psicológicos que, inevitavelmente, interferem no processo, acelerando-o ou estancando-o. A grande arte nunca foi e ainda não é da ordem das multidões, pois sua universalidade não pode ser "fabricada", apesar do esforço, cada vez mais agressivo, dos meios de comunicação e dos agentes do mercado. A grande poesia é da ordem solitária dos indivíduos-neles-mesmos e de suas clandestinas partilhas interpessoais.

A meu ver, nas duas últimas décadas, algumas dicções iniciaram, em nosso país, a gestação de um instigante savoir-faire poético. Não costumo citar nomes e, portanto, não vou fazê-lo aqui, pois isso importará pouco num diagnóstico tão breve como este que proponho. Nomear, segundo o gosto, os meus "bons" e "maus" poetas, meus "eleitos" e "desafetos", meus "parceiros" e "êmulos" de nada serviria: antes soaria como um ato adicional de hipocrisia e amadorismo. Estou certo de que os "competentes" tem percepção disso, assim como, quero crer, os "incompetentes"... Sendo minimamente espertos, eles não deverão se iludir com a marcha oscilatório-impressionista da crítica constituída que, com freqüência, se verá tentada a manipulá-los e reterritorializá-los a seu bel-prazer.

Também não gostaria de recorrer a categorias ou, o que é bem pior, a rótulos. Muitos já o fazem, professoralmente ou não - bem-intencionadamente ou não - visando dotá-los, diante das massas, de uma visibilidade, aqui e ali, desnecessária, mesmo venenosa... Em minha opinião, falar de uma geração 80, ou de uma geração 90, não ajudará em nada, visto que concordo com a aferição, já feita por alguém, de que "os poetas em questão não constituem nada parecido com uma geração - se é que isso, num tempo fragmentado e veloz como o de hoje, ainda pode existir. Existem laços pessoais, encontros em revistas e coleções, mas no geral o trabalho é solitário, como, aliás, deve ser mesmo".

Entretanto, em momentos como estes, de crise e impasse criativos, é que os rótulos costumam proliferar, inevitavelmente, ao sabor dos consensos plantados pela mídia. Neles, o prefixo "neo" é usado a rodo. Fala-se, por exemplo e muito, de uma vertente neoconservadora (ou "metafísico-formalista" ou "clássico-revisionista", como alguns preferem, ou, ainda, de tudo isso ao mesmo tempo, num corpo único de idéias e efeitos), espécie de monstro de mil braços que, brandindo todo tipo de signos historicamente registrados, grita: "eles ainda estão aqui; é preciso considerá-los sempre, respeitar sua longevidade"; fala-se muito também de uma vertente neoconstrutivista, atrelada ao epigonismo do som e da imagem, dos jogos da materialidade significante, intrinsecamente sectária do impacto das novas tecnologias da comunicação visual sobre a sensibilidade pós-moderna; e de uma vertente neotropicalista (ou "dionisíaca", como querem outros), comprometida com a liberdade do traço e com o delírio da composição, que trataria a cultura como um farto mosaico a partir do qual sempre seria possível extrair fragmentos-cacos e rumar para novas (nem tanto assim) bricolagens poéticas, para nomadismos simbólicos em cujas deambulações, muitas vezes, dar-se-iam antes tropeços que achados; e, ainda, de uma vertente acadêmico-culturalista, mais atrelada a discussões conceitualmente setorizadas (como seria o caso, hoje, da questão dos gêneros, das etnias, do feminismo, do homoerotismo etc.) do que ao fato poético em si, e que o ultrapassa, seguidas vezes, sobrelevando-o, ao tratá-lo como um mero veículo de expressão de tratamentos temáticos; fala-se ainda dos neomalditos, dos neo-engajados, de uma (com freqüência, não intencional) "má poesia", antes envolvida com uma agressiva predisposição psicológica frente ao social do que com qualquer outra coisa e, dos seus antípodas naturais, os neo-esteticos, marcamente envolvidos com uma tentativa de preservação do "museu imaginário", da perícia formal, enfim, da belle poésie...

Por conseguinte, no calor da construção desta fala, me permito dizer que a poesia concebida hoje, no Brasil, a exemplo do que ocorre em várias outras paragens, tem sido recorrentemente marcada pelo que chamaria, em caráter provisório, de fenda da indecidibilidade. Se como outros ainda afirmam, a criação poética envolveu sempre - e continuará a assim fazê-lo, em maior ou menor grau - um certo desejo de imitação da realidade, é natural que a fatura contemporânea reflita os percalços de um momento sociocultural simbolicamente tão marcado, como o nosso, por uma crise de percepção-concepção que, por sua agudeza, traz no bojo uma grave e inevitável crise de identidade.

*

 

Luiz Roberto Guedes: Viemos, en masse, da Semana de Arte Moderna, do versolibrismo, dançarinos de corda bamba, batizados por Manoel Bandeira e "desasnados" por Drummond, com seu garimpo diamantino do tempo presente. A esse ovo partido - que nos eximiu de ler Bilac ou estudar versificação -, seguiu-se a revolução verbivocovisual do concretismo, produto intelectual state-of-the art engendrado em país agrário, quando na América do Norte, àquela hora, os poetas retornavam ao verso longo, whitmaniano, e à poesia discursiva, prosaica, talvez, mas não "pedestre". Imagino que esse aparente paradoxo se deva a alguma lei histórica de ação e reação, uma pendularidade, em que vamos buscar o que nos falta. Pois Pound e Eliot não deram as costas à wilderness norte-americana em troca da tradição européia? Voltando ao nosso latifúndio poético, João Cabral também projeta sobre a terra sua grande sombra, com seu cante seco, staccato, despoetizado, demiurgo do cão sem plumas e engenheiro da ponte Recife/Sevilha. Contudo, em que pese o tal pendor "rupturista" de nossas belas artes, em que um acervo dito passé é atirado à lixeira da história, penso que já houve tempo para uma acomodação de camadas geológicas, e hoje temos uma diversidade de dicções e incorporações de repertórios. Como já apontou o poeta Reynaldo Damázio, hoje em dia, nem os founding fathers do concretismo fazem mais poesia "concreta". Os dados foram rolados, e cada poeta tentará sua sorte com quanto puder apreender e destilar. Questão de fogo criador, de "duende", como disse Lorca. Há muita poesia invaginada, prospectiva dos limites da linguagem, gemidos terminais eliotinos, e poetas que ainda lutam com as palavras, em busca de dizer ou descobrir. Um hipotético concurso de poesia, neste momento, revelaria ainda neodrummondianos, pós-cabralinos, transvanguardistas, alquimistas herméticos, criptosurrealistas, neomanoelistas (não o Bandeira, mas o de Barros), pós-marginais, cultpunks, transgressores programáticos etc. São linhas de tensão, como cordas de arcos. Cada um que atire a sua flecha. A linha de fuga eu creio que é a busca de sentido, tocar o mundo de passagem e vislumbrar nosso próprio estranhamento. A poesia seria talvez o último reduto da transcendência em nossa era de tecnobarbárie. Quando a primeira bola de fogo explodiu no céu de Bagdá, na manhã do ataque, a telejornalista global analisou: "Foi a melhor imagem até agora". Haja poesia nesse mundo condicionado pela Deusa Técnica.

*

Leia também:

Poesia e Agoridade I
Poesia e Agoridade III

*

 

retornar <<<

[ ZUNÁI- 2003 - 2005 ]