Prosseguindo o debate
iniciado em sua edição anterior, Zunái
publica a segunda parte da série Poesia e Agoridade,
organizada por Jorge Lúcio de Campos e Rodrigo de Souza
Leão. Confira as respostas dos autores convidados à
seguinte questão:
- Quais seriam, no
seu modo ver, as principais linhas de força (influências)
e de fuga (tendências) da poesia atualmente produzida
no Brasil? De onde viemos e para onde vamos?
Claudio
Daniel: A poesia dos autores mais recentes, ou seja, que
publicaram o primeiro livro nos últimos cinco ou dez
anos, não se presta a uma única definição.
Há uma pluralidade de técnicas, diretrizes e
conceitos que norteiam suas escolhas. No prefácio da
antologia Na Virada do Século, Poesia de Invenção
no Brasil, que publiquei em parceria com Frederico Barbosa,
dizemos: "O império do pós-moderno, que
vaticinou o fim da história e o eclipse das utopias,
sob a hegemonia do capitalismo predatório neoliberal,
só poderia mesmo conduzir a dois caminhos opostos:
o da negação da idéia de vanguarda e
o da (re)afirmação dos conceitos de invenção
e pesquisa estética. Enquanto o primeiro faz a apologia
da adoção de formas canonizadas por certa crítica
universitária, como a poesia coloquial e discursiva
centrada no cotidiano, reverberando o Modernismo dos anos
30, o segundo retoma a exploração de novos processos
e procedimentos de escritura, como resposta, no plano formal,
ao discurso banalizante da mídia. A demanda de informação
nova, no caldo de beleza e brutalidade da aldeia globalizada,
não se confunde, porém, com a tese de evolução
estética linear, nem com a proposição
de um futuro planejado, a partir de um programa teórico
e de um grupo organizado, elementos típicos das vanguardas
da primeira metade do século passado. Temos aqui uma
pluralidade de linhas experimentais firmadas no solo da agoridade
(...). Os poetas atuais não comungam de um mesmo credo,
mas têm como princípio básico a noção
do poema como um elaborado processo de linguagem - e não
apenas isso. O meticuloso artesanato das palavras soma-se
à investigação de novos repertórios
simbólicos e culturais do Ocidente e do Oriente, da
escritura e de outros códigos de expressão,
de um passado remoto ou da atualidade - como resistência".
Acredito que estas palavras, hoje, mantêm plena atualidade,
bem como as afirmações do poeta e crítico
uruguaio Eduardo Milán, em seu depoimento no Memorial
da América Latina, em 1990 (e que incluí, como
apêndice, no livro Estação da fábula,
coletânea tradutória do vate rio-platense, publicada
em 2001): "A poesia latino-americana de hoje se debate
numa clara divisão: regressar de forma acrítica
a um passado canônico ou continuar a busca de novos
meios de expressão. Em termos gerais, o retorno a um
passado canônico (...) implica a fuga de um presente
caótico e a tentativa de buscar refúgio naqueles
momentos históricos, especialmente em sua aura, que
auguravam uma tranqüilidade espiritual dependente de
um certo estado do mundo. A esse estado do mundo corresponderiam
formas poéticas claramente tipificadas (...). Bem:
a novidade dessas formas e sua carga crítica implícita
estão agora perdidas para sempre. (...) Na verdade,
o retorno às formas canônicas do passado, dado
a sua perda de atualidade, supõe uma a-formalidade
(...) que só é possível pelo estado atual
do mundo: perda da fé na história como motor
de mudanças, derrocada das utopias tanto estéticas
como históricas, o cessar do devir temporal".
Esta avaliação, feita por Milán no contexto
hispano-americano, aplica-se à perfeição
em nossas plagas, onde o establishment tenta impor como padrão
certo coloquialismo invertebrado, calcado em modelos do modernismo
tardio, deixando à margem as tentativas experimentais
que representam o sopro de renovação de nossa
poesia. O sucesso dessa empresa, porém, repousa em
pés de barro, dada a fragilidade e inconseqüência
de seus resultados. Por outro lado, os autores que apostam
suas fichas no trabalho mais consistente com a linguagem têm
obtido notáveis realizações; para citar
poucos exemplos: Grafias, de André Dick; Zona branca,
de Ademir Assunção; Fábrica, de Fabiano
Calixto; Trívio, de Ricardo Aleixo; Polivox, de Rodrigo
Garcia Lopes; e Animal anônimo, de Joca Reiners Terron.
Poderia citar outros títulos, dada a riqueza e diversidade
que caracterizam a nova poesia brasileira, em seus momentos
de maior consistência e densidade, mas esses poucos
nomes servem como amostragem do que está sendo produzido,
na contracorrente do discurso conformista. São estes,
para mim, os poetas e a poesia que apontam para o futuro.
*
Claudio
Willer: Linhas de força e linhas de fuga? Fiquemos
com tendências e influências. Continuamos dentro
da tradição da modernidade (e não em
uma suposta pós-modernidade). No caso brasileiro, daquilo
que foi inaugurado pelo modernismo de 22, em sua diversidade
(modernismo, aqui, foi muitas coisas, algumas delas não
tão modernas e certamente bem pouco transgressivas).
Existe uma corrente formalista, é claro, com um enorme
débito com relação à poesia concreta,
muito valorizada pela crítica e pelo ambiente universitário,
e também algo como uma tendência mais conteudista,
mais voltada para a mensagem que para o código; e muito
ainda daquela dicção coloquial, do informalismo
valorizado a partir dos anos 70 como poesia marginal, identificado
a uma criação underground. Hoje, tais tendências
em certo grau se combinam, confundem-se ou se sobrepõem
em vários autores. E há muitos poetas bons,
dos anos 60 para cá, escrevendo com imagens poéticas.
Já fiz listas de poetas que deveriam ser mais lidos,
e que não o são por não se enquadrarem
nas tendências e movimentos dos mapeamentos em voga.
Continuam valendo, essas listas. E há um pessoal bem
novo, semi-inédito, com posições e dicções
bem transgressivas, e com um interesse central em surrealismo.
É claro que acho isso muito bom.
Já
critiquei com muita ênfase - ou melhor, venho criticando,
desde 70 e tantos, uma certa precipitação ao
se escrever poesia brasileira, mapeando-a, estabelecendo topologias,
descrevendo-a como série cronológica um tanto
acelerada. "Dialética com taquicardia", já
escrevi em certa ocasião. Tem que haver distância,
para falar do hoje. Mas existe, sim, algo como uma "geração
90", marcada pela eqüidistância, maior pluralismo,
e, como já disse acima, imagens poéticas.
*
Rodrigo
Garcia Lopes: Passamos os anos 80 e 90 escutando a ladainha
de que a poesia brasileira contemporânea estava fraca,
que nada interessante estava acontecendo etc. Hoje não
há como negar que a situação melhorou
muito: há mais sites, revistas e, principalmente, poetas
de qualidade do que anos atrás. Ao invés de
apontar as linhas de força (mesmo porque muitos estilos
às vezes se aglutinam num mesmo poeta) prefiro listar
algumas tendências mais visíveis: uma neoconservadora,
que escreve como se estivéssemos no século retrasado,
quando não repisa o modernismo sem acrescentar nada
a ele. Nesta tendência estão poetas como Afonso
Romanno de Sant´Anna, Ivo Barroso, Ivan Junqueira, Bruno
Tolentino, Alexei Bueno, entre outros, que têm muito
poder junto a grandes editoras etc. Há também
uma certa linha que poderíamos dizer neo-modernista,
mas é uma poesia escrita por jovens que parecem escrever
como velhos, geralmente diluições pioradas e
sem visão de um Drummond, Bandeira e Cabral. Esta é
bastante tributária da "angústia da influência"
e se restringe, quase sempre, a um coloquialismo do cotidiano.
Do outro lado, pode-se apontar uma tendência pós-concreta
(com seus desdobramentos neobarrocos, neominimalistas etc).
O concretismo foi importante, e sua maior lição
para os poetas jovens foi apontar, de modo inequívoco,
a falácia da transparência da palavra, a importância
da materialidade da linguagem, vital para a poesia. Mas muitos
poetas estão ainda presos a seus postulados, e se recusam
a buscar outros processos de linguagem, referências,
outras tradições. Algo que tenho observado em
parte da poesia brasileira que tem sido publicada e em antologias
recentes é que ela, com felizes exceções,
está muito chata, livresca, literária demais.
Muitas vezes tenho a impressão que os poetas estão
escrevendo um mesmo poema. Digo isso em relação
a um tipo de poema curto, levemente perturbado sintaticamente,
de ritmo sincopado, com cortes abruptos que muitas vezes apenas
mascaram uma seqüência, em textos que muitas vezes
que são fragmentos de descrições estilizadas.
Para mim, esses poemas são apenas aparentemente concisos.
Escondem, muitas vezes, uma falta do que dizer sob a camuflagem
de uma descrição fraturada, de anti-lirismo,
com uma citaçãozinha cult aqui e acolá
(de preferência em francês), mas que revelam uma
falta de plano e visão: poemas tipo "a avenca/
à janela/ embora/ caligramas, a/ paisagem." Ou:
"o gato, quer dizer/ embora nem tanto/ pisa pé/
ante pé (pétala)/ etc. etc". Concisão,
é bom lembrar, não é tanto uma questão
de quantidade mas de qualidade do dizer. Um haikai, mesmo
conciso, pode ser fraco e não dizer muita coisa, enquanto
um poema longo como Song of Myself de Whitman diz e diz muito.
Discursivismo não é verborragia. Muitas vezes
vejo poemas que parecem escritos por um mesmo poeta, como
se fossem imitações de Regis Bonvicino quando
ele dilui ou traduz Robert Creeley! Mesmo nos melhores poemas
concretos, que eram assumidamente antidiscursivos, era clara
a intenção, o dizer do poema (vide nascemorre,
do Haroldo). Quando a poesia vira mero trocadalho do carilho
ou "jogo de linguagem", quando ela parece estar
sendo escrita apenas para aplauso dos críticos ou de
outros poetas, quando ela fica artificiosa e chata, a qualidade
do dizer poético sai perdendo. Além do que,
costumam me proporcionar, como leitor, viagens muito curtas.
Este reducionismo de expressão é, em parte,
influência direta dos postulados concretistas, bem como
do poema-minuto revisitado pela poesia marginal. Não
que eu seja contra poemas curtos, eu mesmo os pratico muito,
mas creio que está faltando mais fôlego, mais
visão, mais contundência na poesia escrita hoje.
Há,
finalmente, os autores que se alimentam de tradições
diversas e a fundem de modo único. Há casos
em que várias categorias textuais convivem pacificamente
na obra de um único poeta. Há poetas idiossincráticos
e que não pertencem a nenhuma dessas tendências,
como um Roberto Piva, Waly Salomão, Glauco Mattoso,
por exemplo. No entanto, é meio inescapável
reconhecer que em todas essas tendências ainda domina,
mesmo subliminarmente, o lirismo romântico e modernista:
uma forma poética "em que o falante isolado (seja
ou não o poeta), localizado numa paisagem específica,
medita ou rumina sobre algum aspecto de sua relação
com o mundo exterior, chegando por fim a alguma sorte de epifania,
um momento de percepção com que o poema se encerra"
(Perloff). A explosão ou desconstrução
desse conceito de sujeito lírico é um dos desafios
do poeta hoje, propor outras subjetividades e conceitos, outros
modos de fruição poética. O poema tem
que chegar junto, converter o leitor à beleza e estranheza
da linguagem poética por si só. Se impor como
um ser de linguagem re-potencializada, re-carregada de sentido.
Ser crítica, exploratória, surpreendente, revelatória,
celebratória, ou tudo isso. Whitman: "O teste
de um poema é quão longe possa elevar, purificar,
aprofundar e tornar feliz os atributos do corpo e da alma
humana".
Para
não dizer que comungo com os pessimistas de plantão,
poderia mencionar poetas importantes e de relativamente diferentes
linhas discursivas poéticas hoje: Luis Dolhnikoff,
Josely Vianna Baptista, Sebastião Nunes, Régis
Bonvicino, Ademir Assunção, Claudio Daniel,
Marcos Losnak, Joca Reiners Terron, Claudia Roquette-Pinto,
Mário Bortolotto, Fernando Karl, Contador Borges, Jairo
Batista Pereira, Carlito Azevedo, Maurício Arruda Mendonça,
para citarmos apenas alguns. Não poderia haver poetas
de sensibilidades e linguagens mais díspares, com todos
os pontos geracionais, de contato e de leitura que possam
ter (modernismo de 22/concretismo/Leminski etc). Prefiro ver
essa configuração como indicando vetores em
transe e em crise, como todos nós, para com as potencialidades
e usos e conseqüências éticas e estéticas
da palavra. Eles têm linguagens que às vezes
se tocam ou se contrastam, cada um com seu próprio
repertório sempre em transformação. Juntas,
dão uma configuração interessante da
poesia hoje que está aí.
*
Donizete
Galvão: As linhas de "fuga" são
mais fáceis de serem identificadas. Acho que fogem
da poesia os editores, os livreiros e aquelas pessoas que
acham que poesia é coisa de gente meio maluca, romântica,
sem o mínimo senso de realidade.
Essa identificação
da poesia como uma coisa sentimental, cheia de uma ternura
untuosa, ainda persiste. Há quem faça esse tipo
de poesia e até os que a lêem. Sinceramente,
eu tenho enjôo dessa poesia que exala mais perfume do
que aqueles cartões natalinos. Prefiro ler dicionários,
história e livros de geografia. Para início
de conversa, é preciso limpar o terreno arrancando
todas essas banalidades de diário sentimental tidas
como poesia. Desbastado o cenário de todas essas mediocridades
que anualmente são lançadas, fica mais fácil
identificar algumas tendências poéticas.
Um dos grupos
mais atuantes são aqueles que beberam todas as teorias
dos concretistas, não se sentem na obrigação
de fazer poesia concreta, mas inegavelmente têm muito
a ver com rigor, concisão, experimentação
e a tal dança do intelecto. São poetas-críticos,
quase sempre com mestrado ou doutorado na área de Literatura.
Poderíamos chamar essa tendência de minimalista
apenas para colocar um rótulo. Há muitos bons
poetas nessa linha. Os principais problemas são a abstração
excessiva, um gosto pelo fragmento pós-moderno, uso
de flashes poéticos que não se articulam para
formar uma poética, sintaxe esgarçada num mundo
que já está fragmentado demais. Como qualidade,
além da erudição, acho que há
a disposição para dialogar com poesia de outros
países (Estados Unidos e França), envolvimento
com a tradução de poetas importantes. É
uma poesia cosmopolita, de metrópoles, que em certo
momento me parece sem chão.
Do lado oposto,
há uma espécie de nostalgia de retrocesso. Poetas
mais conservadores que são extremamente críticos
com relação ao modernismo e escrevem naquelas
revistas que jogam tomates em Oswald de Andrade. Há
uma nostalgia do apuro formal do parnasianismo, interesse
por formas fixas como o soneto e uso de um tom sublime um
tanto simbolista. Eu não tenho nada contra poetas de
tom elevado. Dora Ferreira da Silva, Ivan Junqueira e Hilda
Hilst são exemplos do que pode ser produzido com uma
dicção elevada, na tradição dos
grandes poetas da tradição ocidental. Acontece
de o tom sublime ser, em alguns um tanto exagerado, postiço.
O resultado pode ser uma poesia que soa anacrônica e
até mesmo kitsch. Cultivam uma visão extremamente
crítica do modernismo, que para muitos deles foi um
blefe.
No meio do
caminho, ficam aqueles mais ligados à tradição
modernista de Drummond, Bandeira, João Cabral de Melo
Neto, Murilo Mendes e Mário de Andrade. São
poetas que entendem que ainda é possível levar
adiante certas conquistas modernistas e que sentem que o diálogo
ainda não se esgotou. Este é um grupo muito
criticado por ambos grupos anteriores. Eu acho que estou mais
próximo dessa linha que ainda conserva, mesmo que forma
mais crítica e desencantada, um certo projeto cultural
para o país. Trata-se de uma poesia mais realista,
mais enraizada no chão e numa mitologia pessoal ou
familiar. Há o risco do auto-engano, da repetição,
de se estabelecer em um nível mediano.
Outra vertente
é a que busca um diálogo mais próximo
com a poesia hispânica, seja aquela de características
surrealistas ou com poetas do Neobarroco como José
Kozer ou Reynaldo Jiménez. Entenda-se que Neobarroco
é mais um rótulo para agrupar admiradores de
poetas como Lezama Lima ou Severo Sarduy do que uma escola.
Ultimamente, têm surgido boas traduções
da poesia hispânica contemporânea e poemas de
autores brasileiros são publicadas em revistas fora
do país e latino-americanos publicam em revistas brasileiras
e participam do conselho editorial de várias delas.
Para meu gosto, há artifício demais e uma linguagem
rebuscada que parece girar em falso.
O que expus
é quadro bastante simplista. A poesia não cabe
nesses compartimentos e os poetas circulam entre várias
dessas tendências. Nem vale a pena em louvar a multiplicidade
de vozes que já virou um lugar comum. Pode ser que
o que esteja faltando seja justamente um debate mais aprofundo
do que realmente importa , como resultado estético,
de todas essas linhas. Uma tarefa para a crítica sobretudo.
Muitas vezes o debate é substituído por louvores,
farpas, suscetibilidades extremadas. O debate precisa de um
distanciamento crítico e de racionalidade, sem aqueles
tons apaixonados tão comuns em polêmicas e discussões.
Uma das melhores coisa que li ultimamente foi um ensaio de
Eduardo Sterzi chamado O mito dissoluto onde ele investiga
essa dissolução do mito na poesia brasileira
até chegar a negatividade da produção
atual. Acho que é desse tipo de crítica de maior
fôlego que estamos precisando.
Para encerrar
esta questão, devo dizer que não acredito muito
em linhas evolutivas que progridem linearmente. Penso mais
em termos de vasos comunicantes. Não acredito em darwinismo
cultural. Todos os grandes poetas estão vivos e são
contemporâneos de cada geração que dialoga
e reinventa seus antecessores, constituindo sua família
espiritual. No meu tempo de criança havia um caderno
escolar muito comum em que um menino segurava uma bandeira
onde estava escrito Avante! Não acredito nessa caminhada
sempre avante. Os caminhos são mais tortuosos e circulares.
E muitos poetas que têm um discurso vanguardista, muitas
vezes até encantador, fazem poemas conservadores ou
mesmo ruins. Uma boa teoria não gera necessariamente
um bom poema.
*
Fabiano
Calixto: Há muitas linhas de força. Vejo,
em alguns autores contemporâneos, uma qualidade muito
grande e é muito bom poder notar também a multiplicidade
de escolhas estéticas dos mesmos, ou seja, há
várias poéticas em ação e isso
é ótimo, afinal, vivemos num país de
dimensões continentais, quase 200 milhões de
pessoas, seria ridículo, portanto, se tivéssemos
apenas um modo de fazer poesia. Viemos de uma tradição
fortíssima, de poetas como Sousândrade, Cruz
e Sousa, Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, Carlos Drummond
de Andrade, Murilo Mendes, João Cabral de Melo Neto,
entre outros. E temos o privilégio de ter alguns autores
vivos entre os melhores do mundo! Leia-se: Augusto de Campos,
Décio Pignatari, Manoel de Barros, Ferreira Gullar,
Armando Freitas Filho - note-se, também nestes nomes,
a diferença de opções e isso não
anula, de forma alguma, a qualidade de um ou de outro (como
quer, aliás, uma parcela fascista do critiquês
tupiniquim).
Falando
dos autores mais jovens, que estrearam há mais ou menos
uma década, uma década e meia, há, como
disse acima, um trabalho fortíssimo em construção.
Poetas como Carlito Azevedo, Claudia Roquette-Pinto, Claudio
Daniel, Frederico Barbosa, Ricardo Aleixo, Arnaldo Antunes,
Ronald Polito, Antônio Moura, Eucanaã Ferraz,
Ademir Assunção, me interessam muito. Há
também os que já publicavam entre as décadas
de 60 e 70, como é o caso da divina trindade formada
por Paulo Leminski, Torquato Neto e Ana Cristina César,
que já se foram e estão tendo uma atenção
maior da crítica mais consciente, e os que vêm
do mesmo momento e continuam produzindo poesia high quality
em nossos dias, como é o caso de Glauco Mattoso, Júlio
Castañon Guimarães, Horácio Costa, Duda
Machado, Waly Salomão e Régis Bonvicino. E há
ainda os novíssimos, os nascidos nos anos 70, como
André Dick, Eduardo Sterzi, Kleber Mantovani, Micheliny
Verunschk, Virna G. Teixeira, Tarso de Melo, Marcelo Montenegro,
que têm trabalhos extremamente interessantes. Destes
nomes que citei (e é apenas uma parte, pois há
alguns outros nomes muito bons) pode-se perceber a já
dita multiplicidade de direções. E todos têm
em comum dois característicos que os torna fortes:
a busca da elaboração da linguagem e a do entendimento
do estar-no-mundo. Essa é para mim a linha de força
da poesia brasileira e é por aí, acredito, que
ela caminhará.
*
Fabrício
Carpinejar: Grandes poetas estão produzindo sem
medo do futuro, muito menos rancor do passado. O que aconteceu
foi uma mudança de mentalidade, a poesia perdeu a influência
social que tinha antes, as tiragens estão menores,
o círculo mais restrito entre os próprios críticos,
a rede mais fragmentada devido ao bombardeiro de informações
e expansão de sites e revistas digitais. Mas, de qualquer
forma, a poesia brasileira soube produzir seu próprio
espaço de interlocução. A falta de lugar
é também um lugar. Aprendeu com a rejeição,
alcançando novas formas e estabelecendo uma mestiçagem
de vozes que singulariza seu papel multicultural. O caminho
pressentido é de um barroco diferenciado, com despojamento
formal e excesso de conteúdo. Dificilmente, encontraremos
esse alto grau de invenção em outro país.
Na última metade do século XX, subestimamos
o barroco sensual executado por Jorge de Lima (nosso Heitor
Villa-Lobos do lirismo) em nome de uma poesia crítica
e social, mas ele voltou. Nossa marca é a exuberância,
os contrastes, a superação dos gêneros,
a pujança de cores, inscritas na música popular
(Caetano Veloso) e no romance e no conto. Hoje a poesia está
extremamente narcísica. O passo seguinte será
transformar a conjugação da primeira pessoa
do singular para o plural. Haverá o desejo de corporificar
as cidades, mapear os conflitos de início de século
e falar em nome de uma coletividade.
*
Floriano
Martins: Embora os termos não me agradem em nada,
o que cabe definir antes é a extensão dessa
atualidade. Tratamos de poetas vivos e atuantes, independente
da idade? Ou tratamos apenas das vozes mais jovens, que começam
a despontar? Como é sempre prematuro, quando não
de todo ingênuo, falar do que está a surgir,
melhor que pensemos no primeiro parâmetro. Temos ainda
bastante misturado um universo de tendências que se
repetem ou tateiam à procura de algo ainda por ser
vislumbrado. Em texto de abertura que preparei para uma edição
especial da revista mexicana Alforja, edição
inteiramente dedicada à poesia brasileira, comentei
que o "abismo entre o falante e sua condição
existencial é um dos dilemas mais freqüentes na
poesia que se tem escrito no Brasil". Reproduzo a seguir
uma breve passagem desse texto, o que me parece sugerir alguns
pontos para essa discussão:
"O coloquialismo
buscado pelo que se poderia chamar de uma pós-vanguarda,
aquele momento centrado nos anos 70 - onde se confunde o entoar
de cantos contraculturais com a erva acesa em nome de nada
-, raramente atinge uma carga de vivência que se misture
a uma expressão poética consistente e renovadora.
Ao contrário, foi dar em uma junção de
grandiloqüência e maneirismo que exacerbava a mais
lastimável de todas as vertentes estéticas até
então cultuadas.
A falta de
analogia, uma das características essenciais da poesia
desde quando entrada na modernidade, nos deixou primeiramente
a fazer graça (sem graça alguma, diga-se), concluindo
por uma ironia estéril, onde o objeto do riso não
pode contestar por ausência total de diálogo.
Toda perspectiva de analogia foi convertida em imposição,
assimilação fácil da colonização
de origem, identificação com um cartesianismo
escolástico, onde a teoria define a prática,
em cumplicidade com as evidências de poder.
Certo é
que as vozes mais substanciosas permanecem, em grande número,
subterrâneas. Não se trata de uma etapa, em meio
a uma plataforma de superficialidade em que se constitui a
presente época. Estamos sempre descobrindo com atraso
nossos grandes valores poéticos do passado, quase sempre
defasados em relação a nós mesmos. Padecemos
de uma ignorância que nos é praticamente inata.
Desconhecemos o mundo que levamos dentro de nós, no
caso da grandeza indiscutível de uma tradição
poética, o que se traduz em um comportamento deslumbrado
diante de fogos pirotécnicos dentro e fora do país.
Em face
disto, acabamos difundindo a produção de uma
poesia de duvidosa qualidade, repleta de ornamentos (uma irreverência
atônita, um frívolo orientalismo, um grafismo
inócuo, um devaneio sub-filosófico etc.), onde
não há um mínimo contato com a visceralidade
da existência humana. Apesar de tudo, essa é
a poesia que se mostra, ainda que não seja a que verdadeiramente
temos. Como o país vive em perene descompasso entre
a vertigem do dia e um prazer ilusório, prevalece toda
forma de facilismo formalista, desde o desenho aleatório
(com ares de uma equação matemática)
de palavras na página, até a mera descrição
de cenas, flashes de uma paisagem onde a pessoa é nada.
Enfim, não há uma contribuição
de sentido nessa linguagem poética." (Alforja
# XIX, México, 2001)
*
Glauco
Mattoso: "Linha de força" para mim é
fio elétrico, e "linha de fuga" equivale
a uma saída de emergência. Se isto sugere que
a poesia brasileira entrou num curto-circuito e que precisamos
duma escapatória, eu diria que concordo, mas apenas
em parte. O impasse acontece se o poeta pretende vincular-se
a alguma corrente ou escola, mas a escapatória neste
caso é apenas provisória: trocar de camisa,
despindo a do time campeão do ano passado e vestindo
a do campeão deste ano. Como os campeonatos são
cíclicos e rotativos, esta solução meramente
prorroga o impasse. Parnasianos que viraram modernistas voltarão
ao parnasianismo na geração 45ista para, mais
tarde, voltarem ao modernismo, seja através do concretismo,
seja através do marginalismo, dependendo do grau de
formalismo ou informalismo de seu background ou underground.
Drummondianos que viraram cabralinos amanhã poderão
estar combatendo a escravatura como Castro Alves ou defendendo
a independência como Gonzaga, dependendo do engajamento
mais momentoso. Já para o poeta cuja cosmovisão
é menos relativista o impasse se reduz a um pêndulo
bem mais
universal à história da poesia: oscilar entre
o heroísmo e o humorismo, entre o épico e o
epigramático, entre Camões e Gregório,
caso em que me coloco. De onde viemos? De Portugal, portanto
de Camões. Para onde vamos? Para Pasárgada,
ora! Ou então para Maracangalha, como Caymmi, aliás
conterrâneo de Gregório, de quem, aliás,
Bocage é póstero. Quero com isto dizer que os
poetas não-alinhados e inenquadráveis (tipo
Augusto dos Anjos ou Zé Limeira) nunca dependeram nem
dependerão de "linhas de força", assim
como poetas cotucadores de onça com vara curta (e grossa)
e mexedores em casas de marimbondos (de fogo) (tipo Gregório
ou Emílio) nem têm para onde nem por que fugir,
dispensando portanto as "rotas de fuga". São
estes, os não-alinhados e os cotucadores, personalidades
individuais demais, portadores, por si mesmos, de tanta complexidade
e tamanha problemática que passam ao largo dos impasses
sazonais do revezamento escolástico, com ou sem diluição
pós-isto ou pós-aquilo. Pensando nos alinhados,
nos desalinhados, nos deselegantes e nos absolutamente desleixados,
fiz o seguinte soneto recapitulando alguns momentos dessa
trajetória da poesia local:
SONETO
394 BELETRISTA
Na história
da poesia brasileira
Gregório, como um sátiro, desponta.
Dirceu canta Marília, que não conta.
Gonçalves Dias trepa na palmeira.
Rabelo é
Zé, não tem eira nem beira.
Escravo, ao Castro Alves, vira afronta.
Bilac eleva e leva a lavra em conta.
Delfino é preso ao pé, mas mal o cheira.
Augustos
são vanguarda: Alguém os siga!
Oswald e Mário apupam: Pau no apuro!
Drummond, Bandeira, ombreiam, bons de briga.
Cabral
é cabra cru, cerebral, duro.
Se Piva quer viver na Grécia antiga,
Mattoso, em trevas, vive no futuro.
*
Jorge Lúcio de Campos: É da ordem do
sensus communis que a sofisticação tecnológica
crescente dos meios informacionais coloque em questão
os códigos, digamos, mais "tradicionais"
de percepção-concepção do real
circundante. Se, de fato, os poetas ainda buscam (porque,
de um modo imponderável, necessitariam) imitar esse
real, ou afundam numa faina paradoxal que os leva a diferentes
níveis de mudez (considerando-se os muitos pios, murmúrios
e gaguejos com que nos deparamos, em sua produção,
amiúde como modalidades de dissimulação
dessa mudez) ou, simplesmente, se deixam levar pelos meios-tons
do jogo simulacional, o que os levaria a um comportamento,
sob certa ótica, bastante questionável. A instrumentação
crescente da própria poesia a partir de outras dicções
poéticas, seria, atualmente, uma de suas mais marcantes
características. O problema é como, no caso
da tradução de versos, normalmente apenas os
bons poetas tem se mostrado capazes de nutrir-se criativamente
(e ao seu texto) com a experiência do alheio, estabelecendo
esgarçamentos semióticos que poderíamos
considerar válidos e enriquecedores. Em torno dessa
vertigem intersemiótica, típica, principalmente,
das últimas duas décadas, é que transitariam
- num primeiro plano de visibilidade - de forma quase indiscernível,
a competência e a incompetência de nossa produção
atual. Afinal, citar criativamente ou criar através
da citação não é tarefa das mais
fáceis comparativamente ao citar por citar, caracterizado
pela gratuidade aparente que esse ato revela. Os possíveis
malefícios causados em um ou por um corpo possuído
não devem, necessariamente, ser atribuídos aos
aos quais se atribui a fragilidade da cultura simulacional
"pós-moderna" fantasmas que nele se instalaram.
Os equívocos
advém quase sempre das carências discursivas
e do pouco amadurecimento simbólico dos que a produzem.
Os pré-modernismos, o modernismo de 22, a geração
de 45, o concretismo e a poesia-práxis têm sido
apontados como alguns desses fantasmas que "assolariam"
a nossa (anti)produção atual. Contudo, a geração
poética do "neo" (genealogicamente enfileirada
em termos das décadas de 80 e 90) vem apenas acompanhando
uma tendência típica de nosso Zeitgeist. Importaria
muito mais, no caso, avaliar a sua capacidade de lidar, gerenciar
os códigos deste espírito que assola, segundo
alguns (ou abençoa, segundo outros), o nosso momento
histórico.
O romantismo
pôs no colo de seus escritores e pintores um desafio
tão árduo quanto o de agora: buscar a originalidade
pela originalidade em nome da genialidade pela genialidade
e somente alguns deles (é claro que o número
dos que tentaram e falharam decerto foi maior do que o dos
bem-sucedidos) conseguiram, com efeito, processá-lo
com eficiência. Hoje pode-se dizer que, se não
ocorre o mesmo fenômeno, as diferenças também
não chegam a ser tão decisivas. Diante da disseminação
repertorial, cabe a cada um de nossos poetas decidir, sempre
da maneira mais criativa possível, o que fazer com
(e não estou me referindo à turba infinita das
fantasmagorias de menor porte) os megaespectros de Pessoa,
Oswald, Cummings, Cabral, dos irmãos Campos ou de quem
quer que seja. Importa saber, como corretamente afirmou Ivan
Junqueira, que "é no equilíbrio alcançado
por uma coisa e outra (forma e conteúdo) que se revela
o grande poeta". Um dos equívocos da poesia de
participação social é justamente este:
em nome de uma utopia humanitária desdenha-se da forma
e, a partir daí, compromete-se a possibilidade de transmissão
artística ou de fruição do objeto estético.
Enfim, se somos artistas, não podemos jamais renunciar
à beleza em que consiste o matrimônio indissolúvel
entre forma e fundo.
Do período
paleolítico ao theatrum pós-moderno, de estrito
servidor da sociedade (cf. figuras do artista-feiticeiro,
do artista-sacerdote, do artista-cortesão e do artista-funcionário,
entre outras) ao confortável status de franco-atirador
ou de usufrutuário-manipulador de simulacros lúdicos,
o artista continuará sendo ainda assim, segundo Jean
Cassou, "já alguém em que se apercebe uma
singularidade específica e a obra que produz pode(rá)
ser por nós (de algum modo) desembaraçavel de
significados e intenções para nos aparecer como
uma obra de arte". A fuga da estandardização
seria, portanto, um critério consistente para avaliar,
em termos qualitativos, a atual produção poética
brasileira. Não são muitos os que tem demonstrado
esse dinamismo em suas coletâneas. Como não poderia
deixar de ser, a maioria, numa condição in progress,
esbarra em suas próprias indefinições,
desinformações e mesmo em arroubos esteticamente
inócuos. Não são muitos também
os que ousam, optando pelas vias da transgressão e
da transcendência, ou melhor, pelas vias da densidade
transgressiva e, algo paradoxal (mas apenas à primeira
vista), da positividade transcendental. Afinal, estas vias
estão entre as mais árduas e, ainda por cima,
as próprias idéias de transgressão (assim
como a de experimentação) e transcendência
se viram anodinizadas pela de seu simulacro e hoje transgredir
e transcender são, com freqüência, no mínimo
práticas vazias e gratuitas e, no máximo, algo
vetusto e enigmático aos olhos mais jovens.
A questão
que ora parece se impor, de maneira imediata - quase premente
e por dentro - na poesia brasileira contemporânea, é
a mesma que se pretende também urgente fora dela: na
prosa, no pensamento, nas falas, nos hábitos... Importa,
enfim, decidir logo entre duas estratégias de deslocamento
(não implicando nenhuma delas o que, no caso, deveria
ser levado em conta, ou seja, o afrontamento). Boa parte de
nossos poetas mais jovens vem se embaraçando com um
penoso dilema: recuar ou avançar? Poucos são
os que se colocam a hipótese mais "inteligente"
de vencê-lo, permanecendo no código, retomando-o
com paciência - aos poucos, mas sempre - na medida de
suas necessidades intrínsecas de (re)dinamização;
(re)operando-o no presente, na potencialidade inesgotável
do agora.
Em verdade,
não são muitos - nunca foram ou deverão
ser - os poetas que podemos considerar excelentes. Se fosse
possível definir o lançar poético como
um risco (assim como todos os demais lançares discursivos,
aí inclusos os escritos e os não-escritos) -
um que envolveria o descortinamento dos próprios mistérios
pessoais mediante a via equilibrante do rigor - então
não poderia restar dúvidas quanto a isso. Se,
por um lado, é alto o número dos que se arriscam,
irresponsavelmente, na gratuidade do gesto de quem apenas
pensa porque pensa ou anseia porque anseia fazer poesia, expondo-se,
amiúde, ao ridículo e ao rebaixamento, pelo
outro, são raros, felizmente, os que se arriscam no
sentido proposto e é mais do que normal (e saudável)
que assim ocorra.
Como já
tive a oportunidade de externar, numa outra ocasião,
penso que o processo criativo (não só em termos
poéticos) não pode, sob pena de se autodesqualificar,
deixar de marcar uma invariável positividade, sendo
criativo o artista que consegue conceder (direta ou indiretamente)
à sua obra a capacidade de afirmação
e instauração do sentido. Por detrás
da complexidade da fatura da boa poesia (assim como da boa
pintura etc.), estão dois agenciamentos mínimos
fundamentais: a intuição (o bom poeta é
sempre aquele bem-sucedido na extração-captura
ordenadora do sentido bruto-caótico das coisas) e a
expressão (o bom poeta é sempre aquele que sabe
expressar, adequadamente - de forma a torná-lo esteticamente
compartilhável - o resultado "concreto" daquela
extração-captura). Dentro de tal contexto, a
valoração de um poema se mostra, então,
muito relativa. Depende, enormemente, dos elementos mínimos
disponibilizados, no ato do encontro, pelo poeta e pelo leitor-avaliador
de sua poesia. Isso sem contar com os aspectos psicológicos
que, inevitavelmente, interferem no processo, acelerando-o
ou estancando-o. A grande arte nunca foi e ainda não
é da ordem das multidões, pois sua universalidade
não pode ser "fabricada", apesar do esforço,
cada vez mais agressivo, dos meios de comunicação
e dos agentes do mercado. A grande poesia é da ordem
solitária dos indivíduos-neles-mesmos e de suas
clandestinas partilhas interpessoais.
A meu ver,
nas duas últimas décadas, algumas dicções
iniciaram, em nosso país, a gestação
de um instigante savoir-faire poético. Não costumo
citar nomes e, portanto, não vou fazê-lo aqui,
pois isso importará pouco num diagnóstico tão
breve como este que proponho. Nomear, segundo o gosto, os
meus "bons" e "maus" poetas, meus "eleitos"
e "desafetos", meus "parceiros" e "êmulos"
de nada serviria: antes soaria como um ato adicional de hipocrisia
e amadorismo. Estou certo de que os "competentes"
tem percepção disso, assim como, quero crer,
os "incompetentes"... Sendo minimamente espertos,
eles não deverão se iludir com a marcha oscilatório-impressionista
da crítica constituída que, com freqüência,
se verá tentada a manipulá-los e reterritorializá-los
a seu bel-prazer.
Também
não gostaria de recorrer a categorias ou, o que é
bem pior, a rótulos. Muitos já o fazem, professoralmente
ou não - bem-intencionadamente ou não - visando
dotá-los, diante das massas, de uma visibilidade, aqui
e ali, desnecessária, mesmo venenosa... Em minha opinião,
falar de uma geração 80, ou de uma geração
90, não ajudará em nada, visto que concordo
com a aferição, já feita por alguém,
de que "os poetas em questão não constituem
nada parecido com uma geração - se é
que isso, num tempo fragmentado e veloz como o de hoje, ainda
pode existir. Existem laços pessoais, encontros em
revistas e coleções, mas no geral o trabalho
é solitário, como, aliás, deve ser mesmo".
Entretanto,
em momentos como estes, de crise e impasse criativos, é
que os rótulos costumam proliferar, inevitavelmente,
ao sabor dos consensos plantados pela mídia. Neles,
o prefixo "neo" é usado a rodo. Fala-se,
por exemplo e muito, de uma vertente neoconservadora (ou "metafísico-formalista"
ou "clássico-revisionista", como alguns preferem,
ou, ainda, de tudo isso ao mesmo tempo, num corpo único
de idéias e efeitos), espécie de monstro de
mil braços que, brandindo todo tipo de signos historicamente
registrados, grita: "eles ainda estão aqui; é
preciso considerá-los sempre, respeitar sua longevidade";
fala-se muito também de uma vertente neoconstrutivista,
atrelada ao epigonismo do som e da imagem, dos jogos da materialidade
significante, intrinsecamente sectária do impacto das
novas tecnologias da comunicação visual sobre
a sensibilidade pós-moderna; e de uma vertente neotropicalista
(ou "dionisíaca", como querem outros), comprometida
com a liberdade do traço e com o delírio da
composição, que trataria a cultura como um farto
mosaico a partir do qual sempre seria possível extrair
fragmentos-cacos e rumar para novas (nem tanto assim) bricolagens
poéticas, para nomadismos simbólicos em cujas
deambulações, muitas vezes, dar-se-iam antes
tropeços que achados; e, ainda, de uma vertente acadêmico-culturalista,
mais atrelada a discussões conceitualmente setorizadas
(como seria o caso, hoje, da questão dos gêneros,
das etnias, do feminismo, do homoerotismo etc.) do que ao
fato poético em si, e que o ultrapassa, seguidas vezes,
sobrelevando-o, ao tratá-lo como um mero veículo
de expressão de tratamentos temáticos; fala-se
ainda dos neomalditos, dos neo-engajados, de uma (com freqüência,
não intencional) "má poesia", antes
envolvida com uma agressiva predisposição psicológica
frente ao social do que com qualquer outra coisa e, dos seus
antípodas naturais, os neo-esteticos, marcamente envolvidos
com uma tentativa de preservação do "museu
imaginário", da perícia formal, enfim,
da belle poésie...
Por conseguinte,
no calor da construção desta fala, me permito
dizer que a poesia concebida hoje, no Brasil, a exemplo do
que ocorre em várias outras paragens, tem sido recorrentemente
marcada pelo que chamaria, em caráter provisório,
de fenda da indecidibilidade. Se como outros ainda afirmam,
a criação poética envolveu sempre - e
continuará a assim fazê-lo, em maior ou menor
grau - um certo desejo de imitação da realidade,
é natural que a fatura contemporânea reflita
os percalços de um momento sociocultural simbolicamente
tão marcado, como o nosso, por uma crise de percepção-concepção
que, por sua agudeza, traz no bojo uma grave e inevitável
crise de identidade.
*
Luiz
Roberto Guedes: Viemos, en masse, da Semana de Arte Moderna,
do versolibrismo, dançarinos de corda bamba, batizados
por Manoel Bandeira e "desasnados" por Drummond,
com seu garimpo diamantino do tempo presente. A esse ovo partido
- que nos eximiu de ler Bilac ou estudar versificação
-, seguiu-se a revolução verbivocovisual do
concretismo, produto intelectual state-of-the art engendrado
em país agrário, quando na América do
Norte, àquela hora, os poetas retornavam ao verso longo,
whitmaniano, e à poesia discursiva, prosaica, talvez,
mas não "pedestre". Imagino que esse aparente
paradoxo se deva a alguma lei histórica de ação
e reação, uma pendularidade, em que vamos buscar
o que nos falta. Pois Pound e Eliot não deram as costas
à wilderness norte-americana em troca da tradição
européia? Voltando ao nosso latifúndio poético,
João Cabral também projeta sobre a terra sua
grande sombra, com seu cante seco, staccato, despoetizado,
demiurgo do cão sem plumas e engenheiro da ponte Recife/Sevilha.
Contudo, em que pese o tal pendor "rupturista" de
nossas belas artes, em que um acervo dito passé é
atirado à lixeira da história, penso que já
houve tempo para uma acomodação de camadas geológicas,
e hoje temos uma diversidade de dicções e incorporações
de repertórios. Como já apontou o poeta Reynaldo
Damázio, hoje em dia, nem os founding fathers do concretismo
fazem mais poesia "concreta". Os dados foram rolados,
e cada poeta tentará sua sorte com quanto puder apreender
e destilar. Questão de fogo criador, de "duende",
como disse Lorca. Há muita poesia invaginada, prospectiva
dos limites da linguagem, gemidos terminais eliotinos, e poetas
que ainda lutam com as palavras, em busca de dizer ou descobrir.
Um hipotético concurso de poesia, neste momento, revelaria
ainda neodrummondianos, pós-cabralinos, transvanguardistas,
alquimistas herméticos, criptosurrealistas, neomanoelistas
(não o Bandeira, mas o de Barros), pós-marginais,
cultpunks, transgressores programáticos etc. São
linhas de tensão, como cordas de arcos. Cada um que
atire a sua flecha. A linha de fuga eu creio que é
a busca de sentido, tocar o mundo de passagem e vislumbrar
nosso próprio estranhamento. A poesia seria talvez
o último reduto da transcendência em nossa era
de tecnobarbárie. Quando a primeira bola de fogo explodiu
no céu de Bagdá, na manhã do ataque,
a telejornalista global analisou: "Foi a melhor imagem
até agora". Haja poesia nesse mundo condicionado
pela Deusa Técnica.
*
Leia também:
Poesia
e Agoridade I
Poesia
e Agoridade III
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