Poética
de impossibilidades:
sobre os filmes de Werner
Herzog
Claudio
Daniel
A jornada
visionária em busca do que é inusitado, paradoxal ou inverossímil
é o signo que rege os filmes do cineasta Werner Herzog,
um dos principais diretores do cinema alemão dos anos 70,
ao lado de Wim Wenders e Rainer Werner Fassbinder. Sua poética
de impossibilidades tem uma dupla estratégia: por um lado,
questiona a idéia convencional do que seja realidade,
essa musa que inspira boa parte da produção cinematográfica
contemporânea, baseada na estética ficcional do século XIX;
e por outro abre novas perspectivas para a linguagem do
cinema, compreendido como arte da ilusão, fazendo uso dos
recursos sonoros, visuais e de representação numa espécie
de gramática alucinatória. Realidade e ilusão, aqui, não
devem ser considerados como antinomias absolutas; aquilo
que consideramos real, como pensavam os vedantistas,
carece de uma verdade absoluta, por sua efemeridade. Um
evento "real" não é constante, mas sujeito a incessantes
metamorfoses, não tem permanência e por fim se dissolve
e nulifica. O ilusório, por não pretender nos convencer
de sua "verdade", mostra-nos justamente o caráter enganoso,
contraditório e por fim irrreal de todos os fenômenos. Podemos
considerar estes conceitos não apenas à luz da doutrina
indiana sobre maya, mas também a partir da própria
história da cultura alemã, e em especial do barroco, do
romantismo e do expressionismo, que não por acaso são as
referências básicas do diretor de Nosferatu. Em sua
releitura do romance de Bram Stoker (e do filme homônimo
de Murnau), Herzog encena alguns temas tradicionais da mitologia
romântica, como a renúncia e a redenção pelo amor
(tão caros ao drama musical wagneriano), explorando contrastes
de sombra e luz, movimento e repouso, som e silêncio, desejo
e horror. Essa aparente reencenação da lenda romena, porém,
é carnavalizada pelo humor caricatural, quase grotesco de
elementos deformados, burlescos ou excêntricos que deslocam
qualquer ilusão de beleza harmoniosa ou sublime (o próprio
conde vampiro possui um aspecto menos sedutor que repugnante,
e a entrega amorosa de Mina possui um sentido quase religioso,
de sacrifício e expiação). Na filmografia do diretor, aliás,
não é raro encontrarmos anões, gigantes, deficientes físicos
ou mentais ocupando a posição de protagonistas. O filme
Também os Anões Começaram Pequenos, por exemplo,
relata uma rebelião na colônia de anões criminosos na ilha
de Lanzarote, que perpetram toda sorte de iniqüidades. A
um crítico que escreveu sobre essa curiosa película, chamando-a
de "um filme sobre gente anormal", Herzog defendeu-se com
as seguintes palavras: "Não há gente disforme em meus filmes.
Os anões, por exemplo, são bem proporcionados. O que está
deformado é o normal: os bens de consumo, as revistas, uma
cadeira, um trinco de porta... e o comportamento religioso,
as boas maneiras, o sistema de educação... Essas são as
monstruosidades, não os anões. Os anões representam uma
síntese do humano, de uma humanidade que se rebela ou quer
rebelar-se contra a sociedade, que, esta sim, é anormal
e não lhe permite espaço". Já em Terra do Silêncio e
da Escuridão, a heroína é uma mulher de 56 anos, Fini
Straubinger, cega e surda devido a um trauma de infância,
que se dedica a ajudar pessoas com a mesma enfermidade.
O ponto mais alto dessa representação do disforme (ou antes,
da diferença) é O Enigma de Kaspar Hauser, narrativa
de um jovem doente mental que sonha em ser cavaleiro e é
assassinado por um desconhecido, de forma misteriosa (lenda
também abordada, na poesia, por Georg Trakl).
A
paixão pelo irrealizável
Coração
de Cristal,
cuja trama é encenada numa aldeia bávara do século XVIII, aprofunda
a mescla entre o alto romantismo e os elementos cômico-satíricos
estudados por Bakhtin em seu trabalho sobre a cultura popular
na Idade Média. Nesse filme, porém, Herzog não se contentou
com a paródia, o feísmo e a bufoneria, filmando os atores hipnotizados,
talvez para realçar a idéia de limite, de fronteira entre a
consciência ordinária, base do princípio de realidade, e o clima
de sonho, de alucinação, mais adequado à representação arquetípica
(a esse respeito, convém citar a afirmação do cineasta, segundo
o qual "a verdadeira força do cinema reside em trabalhar com
a realidade dos sonhos"). Se em Nosferatu temos a busca
insensata pela imortalidade e a não menos insensata idéia de
redenção pelo amor, o tema de Coração de Cristal é
o capricho de um jovem aristocrata que deseja produzir o vidro-rubi,
após a perda de sua fórmula secreta, chegando a seduzir e assassinar
uma criada, para utilizar seu sangue, inutilmente, nessa absurda
indústria. De todos os filmes de Herzog, esse é talvez
o mais ambicioso, como pintura fílmica, estudo do imaginário
romântico e também como mergulho na obsessão narcisista, com
sua loucura e fatalidade. Os protagonistas de Herzog, em geral,
são visionários que se lançam a concretizar seus desvairados
projetos contra todas as evidências em contrário. Em Aguirre,
a Cólera dos Deuses, temos o relato do colonizador
espanhol que busca no Novo Mundo a sua Eldorado, unindo-se à
própria filha para gerar uma estirpe de reis semidivinos; em
Cobra Verde, a saga de um traficante de escravos nascido
no sertão brasileiro que procura a riqueza na África, obtendo
em troca a violência e a loucura. O tema da obsessão prometeica
chega a um ponto de ebulição em Fitzcarraldo, que narra
a epopéia de um aventureiro irlandês para a construção de um
teatro de ópera no meio da floresta amazônica. Com a inabalável
convicção de um missionário religioso, o protagonista dedica-se
às mais insensatas tarefas para obter os recursos suficientes
a fim de realizar o seu sonho, como fabricar gelo para vender
aos índios (antes disso, projetou construir uma "ferrovia transandina").
Por fim, Fitzcarraldo ouve a sugestão de sua amante, proprietária
de um bordel, e resolve explorar a extração da borracha, adquirindo
um navio e contratando uma tripulação de capacidade duvidosa
(cujo cozinheiro é um caboclo bêbado que vive com duas mulheres,
e o mecânico, um índio que espiona sua jornada para um poderoso
local). Para atingir a outra margem de um rio, onde supostamente
encontraria novas terras para a extração do látex, Fitzcarraldo
faz o navio ser conduzido através de uma montanha, içado pela
força de centenas de aborígenes que se juntam à expedição, considerando
aquele europeu louco como o deus previsto em suas profecias.
A aventura, obviamente, fracassa em seu objetivo comercial,
embora, com a venda da embarcação, o irlandês tenha realizado
parcialmente o seu sonho, contratando uma companhia italiana
para um recital operístico sobre o rio Amazonas (trazendo uma
cadeira de foyer como assento de honra para o seu porco
de estimação). A demanda do inútil, do absurdo ou insensato,
nos filmes de Herzog, é uma metáfora de nossa própria condição
e trajetória, no mundo de "normalidade" burguesa, onde nos sacrificamos
e sofremos por fins bem menos nobres. Um
último aspecto que gostaria de registrar é o espaço ocupado
pelo trabalho manual nos filmes de Herzog. A jornada laboral,
longe de ser ocultada pela excentricidade fabulatória, é apresentada,
inclusive, em detalhes: em Coração de Cristal, vemos
as oficinas onde é produzido, industrialmente, o vidro; em Nosferatu,
conhecemos o trabalho quase escravo dos ciganos que servem ao
conde, e em Fitzcarraldo sobressaem os marinheiros, seringueiros
e prostitutas (sem esquecermos do músico ambulante Bruno S.,
protagonista de Stroszek). Um olhar mais atento
à miséria humana é registrado em Woyzeck, adaptação da
tragédia de Georg Büchner que conta a história de um soldado
que é oprimido por seu superior, submete-se a experiências médicas
em troca de dinheiro e por fim envolve-se no homicídio da mulher,
por infidelidade conjugal. Uma anti-epopéia quase realista,
distinta da maioria dos filmes do diretor, com o brilho de Klaus
Kinski no papel central (este, o ator favorito de Herzog, que
também estrelou Nosferatu, Aguirre,
Fitzcarraldo e Cobra Verde. A relação de conflito
intenso entre o ator e o diretor foi registrada posteriormente
no filme O meu melhor inimigo). Se as delimitações entre
o real e o imaginário, o normal e o anormal, o popular e o aristocrático
são questionadas, numa deliberada operação dessacralizadora,
a prevalência da cultura européia também é subvertida pela irrupção
de citações de lendas indígenas e africanas, ampliando a narrativa
fílmica a um caráter universalista. Essa simbiose, tão cara
à pós-modernidade, pode ser observada inclusive na trilha sonora
das películas, que mistura as vozes do grupo andino Popol Vuh
às harmonias de Richard Wagner, revelando o caráter enciclopédico,
ensaístico de uma obra cinematográfica que só encontra paralelos,
hoje, na produção do inglês Peter Greenaway.
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Leia também: Um
poema de Werner Herzog,
Filmografia
de Werner Herzog, e conheça a
iconografia
de seus trabalhos.
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