AMAR-TE
A TI, NEM SEI SE COM CARÍCIAS
(Prólogo e capítulo inicial)
Wilson
Bueno
- Wilson
Bueno -
À MANEIRA DE PRÓLOGO
Na recente
demolição de aristocrática casa no bairro
de Botafogo, no Rio de Janeiro, os manuscritos deste Amar-te
a ti nem sei se com carícias ( note-se - um decassílabo
perfeito...), protegido por uma capa de couro, gravada com
as entrelaçadas iniciais L.P., que faz supor seja o
monograma de Leocádio Prata, mas também o de
Lavínia Prata ou mesmo, cruel coincidência, não
se descarte, o de Licurgo Pontes, vieram dar às mãos
deste vosso escriba, conhecido cultor de prosa antiga.
O manuscrito,
- novo e intrigante dado - , pela caprichosa caligrafia e
higiene geral do texto, leva a crer seja uma cópia
do verdadeiro original. Contudo, em nenhum momento de suas
exatas 200 folhas, ostenta a indicação de autoria.
Depreende-se, pela leitura, pertença a Leocádio
José de Azeredo Prata Filho, o L.P. das iniciais gravadas
à guarda de couro, mas não vai aí nenhuma
certeza e nem há como provar, sob qualquer hipótese,
constitua mesmo produto de sua pena ou engenho. Quem, em sã
consciência, poderia desprezar a possibilidade de que
tudo não passe de mais um ardil do cínico Licurgo
Pontes, fraudando à posteridade as confidências
de um seu caríssimo desafeto? A epígrafe machadiana
, no livro desde o começo, parece dizer mais do que
simplesmente comunica.
Isto
posto, não hesitei em oferecê-lo ao primeiro
editor, não sem antes proceder a uma reescritura em
diagonal do texto. Miúdas emendas, um que outro detalhe
de somenos importância. Dono de estilo correto ainda
que preciosista, um maneirismo de época, consideramos
quase um dever ético dar a público a uma legítima
voz do século XIX brasileiro. Para que lance, quem
sabe, alguma luz sobre o desde já tumultuário
início deste nosso terceiro milênio.
Agradeço
à colaboração da família Souza
Mello de Miranda, proprietária, em terceira ou quarta
mão, do palacete recém desaparecido da bucólica
rua Dona Mariana, a quem devemos, a rigor, a posse do manuscrito,
e, por extensão, sua publicidade.
Em vão
buscou-se algum descendente de Azeredo Prata. Não o
encontrando em nenhum logar, houvemos por bem tornar suas
reflexões, mais que públicas, notórias;
e, bem mais ainda, notáveis, pelo que esbanjam em gozo
literário insubstituível.
W.B.
GENTES
D'ANTANHO
Eglaê
Medeiros e Vaz, aonde você? Aonde você, Aparícia,
de mimosos olhos azuis contrastando a tez porcelana, alheia
ao sol e aos desejos dos homens, um sol em si de rara cornucópia?
E tu, bazófio Goes Alencastro Guimarães, produto
feliz do casamento entre sciencia e arte, e de todos quantos
existiram um dia, o nosso melhor e mais afoito habitante da
"ilha excelsa da poesia", como o classificava o
também saudoso Ascenso Motta, poeta decadentista? Aonde
você, bazófio, e suas farfalhices hibernais?
Cadê você, seus sonetos e suas botânicas?
Mal o primeiro frio que nem frio era, só um frescor
de entardecer e já os extravagantes capotes? Nesta
cidade do Rio? Que de ocultações, meu nunca
esquecido Goes? A alma não há quem a guarde
consigo para sempre. Que de solução esconder-se
atrás do capote ou da capa byroniana? Nada encobre
o medo de viver e se o tinha à muita não seriam
lá os panos que o preservariam do que na vida é
exposição e vigília. Se nada mais fica,
ficou-lhe a completa catalogação de uma espécie
rara de flor - Eburnea fustigata brasiliense e, claro, a sonetaria
luxuriante, os caprichosos quartetos e tercetos, os imprevistos
fechos d'ouro, o spleen, os poemas feridos de amor e morte,
oh vate oscilante sempre entre a nevrose e a doudice mais
douda.
As recordações
são bastantes e igual a saudade de Capistrano. Ah,
Dr. Capistrano Souza, especialista em moléstias epidêmicas,
pioneiro na especialidade cá neste burgo de São
Sebastião... O saber scientifico não logrou
livrá-lo de nossa crua impermanência. Há
esta superstição esquiza que nos faz supor um
médico ao largo das insídias da indesejada das
gentes, como bem a classificou o admirável Machado.
Nem sciencias nem filosofias, nada nos defende do certo fim.
O Dr. Capistrano,
ao menos uma vez, revelou-nos, ardente, na roda vespertina
do Café Leme, no Largo do Machado, que inda alcançava
o Bromelius Citricus, a panacéia quase alquímica
que promete aos humanos viver para além dos cem. Que
um homem da rua, de baixo estrato, venha a crer em semelhante
parvoíce, é o certo, mas que o Dr. Capistrano,
scientista e homem versado em humanidades, o creia, causa
espanto. Toleremos - quem não há de apostar
em qualquer cousa, desde que esta mantenha em si a ilusão
de nossa imortalidade? O Bromelius, nos explicava, cheio de
dedos, entre um croissant e outro, pego com as finas mãos
e levado à boca a movimentos medidos, explicava-nos
a nós o Capistrano, há de livrar a Humanidade
de tantas e tão várias enfermidades, justo as
que mais matam, tardia ou precocemente, que não será
impossível levar alguém adeante dos 120...
Pobre Capistrano
que foi-se dessa depois de uma gripe fortíssima complicada
em pneumonia, com menos de quarenta. Levou consigo os sonhos
vãos do Bromelius Cítricus e outros sonhos que
não convém expor aqui neste caderno de notas,
reflexões de um velhusco que já se entende com
a Morte feito ela fosse uma lamentosa vizinha, e que se avém
com a escrita movido quiçá por outra utopia,
talvez mais vã e mais debalde - a utopia de aprisionar
não o futuro, mas o passado que já se nos fugiu
como um doudo foge nos dramas musicados do Varella, pontuais
pelas sextas-feiras nos teatros da cidade.
E você,
amigo velho, compadre depois, antes colega das noites pândegas
do Largo de São Francisco, você, meu bom Vaz?
Aonde você, Américo Coutinho Vaz que tão
cedo nos trocou pelas leis que regem o silêncio dos
campos santos? Tinhas um brilhante futuro no Cível
mas quis o destino poupá-lo das leis cá dos
homens para em troca oferecer-vos as jurisprudências
do céu.
Ah, meu
bom Américo Vaz - vale a pena ser aqui, nesta noite
do Majestic, tão e só o sobrevivente? Que de
solidão mais látego! Daqui desta secretária
postada à janela do 302 deste hotel debruçado
sobre o morro de Santa Tereza, ao longe vislumbro a cidade
esparramando-se, o casario do centro, e um pedaço do
porto. Vez em vez um vento insistente mexe-me os papéis
sobre a mesa e se apuro ouvidos capaz ouça os roncos
infames do Villaça que cedo dorme e cedo acorda para
tornar a dormir, larga parte da manhã, nas chaises
longues da varanda do hotel. Diz que sonha com os mouros,
o professor Villaça; só não nos diz que
mouros são estes os de suas viagens oníricas.
Se convertidos à fé do Cristo ou ainda maometanos...
Os mouros do Villaça, pensando melhor, são só
a velhice...
Ficaria
horas desta noite do exangue mil novecentos e treze a nomear
e a perguntar por todos os que já partiram, nenhum
deles, creiam, capaz de se nos apertar num abraço de
despedida para dizer que iam. Foram-se; só isso - foram-se
e nos deixaram, além do estupor renovado de que morremos,
a saudade que muita vez não sendo melancolia, é
pura aflição e o desespero medido de minhas
noites de agora. E cá não refiro os íntimos,
os muito íntimos, que a partida destes são mais
que saudades, são o aguilhão na carne de alguém
que mesmo sem haver tomado o Bromelius Citricus sobre a soturna
Terra insiste. Vá lá também as dores
do sobrevivente, e a desonra de estar vivo, assim aqui inteiramente
confessadas...
(Fragmentos
do romance Amar-te-ia a ti nem sei se com carícias,
publicado em junho/2004 pela editora Planeta.)
*
Wilson Bueno, poeta e ficcionista, nasceu em Jaguapitã
(PR), em 1949. Publicou vários volumes de contos, novelas
e poemas em prosa: Bolero's Bar (1986), Manual de
Zoofilia (1991), Ojos de Agua (Argentina, 1991),
Mar Paraguayo (1992), Cristal (1995), Jardim
Zoológico (1999) e Meu Tio Roseno, a Cavalo
(2000), além de um volume de poemas breves, o Pequeno
Tratado de Brinquedos (1996).
*
Leia também
três
contos de Wilson Bueno, e um ensaio
sobre o autor escrito por Claudio Daniel.
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