UM
ZOO DE SIGNOS
OS BESTIÁRIOS DE WILSON BUENO
Claudio
Daniel
"... ao modo de um
impossível lagarto transmutado em dragão, animal
transparente e da cor da água, a exibir, triunfante,
seja no fantástico vôo ou no mergulho ao fundo,
o seu esplendor de água-viva." Wilson Bueno, neste
curioso livro de relatos chamado Jardim Zoológico,
publicado em 1999, criou um catálogo composto de 34
seres inconcebíveis. São os ivitús, bestas
de garras retorcidas, capazes de mitigar, nos índios,
a dor da saudade; os guapés, microcães que fazem
ninho no oco das árvores; os giromas, criaturas esféricas
cheias de olhos, cuja cópula ocorre de maneira quase
miraculosa; os agôalumem, citados acima, raça
de monstros marinhos capazes de voar que despertavam a angústia
e o medo nos marinheiros, entre outras desconcertantes espécies
de alimárias (1). Como numa bizarra história
natural, o autor apresenta as criaturas teratológicas
descrevendo seu peso, altura e coloração, seus
hábitos sexuais, alimentares e capacidades físicas,
situando-as na província do Chaco e na Islândia,
nas florestas brasileiras e no Indostão, jogando com
o universalismo do imaginário. Nessas crônicas
do improvável, Bueno descreve suas feras com a ânsia
de um biólogo alucinado. Assim, por exemplo, ele nos
conta sobre os kwiuvés, habitantes do Alto Goiás:
"Medindo em torno de vinte centímetros de altura,
exibem contudo rotunda pança inteiramente pintada a
urucum. No lugar do sexo, os kwiuvés machos têm
um dedo e as fêmeas, uma pequena boca sem dentes".
A existência desses e outros seres é atestada
pela invocação apócrifa de autores como
Ovídio, Borges (autor do Livro dos Seres Imaginários),
Vallejo, Flaubert, e ainda pela citação de sonhos
bestiais registrados na história literária,
como o homem-tarântula gestado por Lautréamont
(2). No caso específico do kwiuvés, faz-se referência
a uma descrição do gnomo índio atribuída
ao "antropólogo brasileiro Sérgio Oliveira".
Já no relato sobre os dagdas, o autor diz: "O
último dagda foi visto por volta de 1895, ao sul do
Índico, na costa leste da ilha de Madagascar, pelo
zoólatra francês Charles-Henri Lebaut".
Ao longo do livro, encontraremos numerosas outras passagens
que parodiam o texto enciclopédico, o manual de zoologia
e a crônica de viajante. Apesar do pastiche desses códigos
estilísticos, o tom e andamento que predominam nessas
prosas é o da fábula, em busca do imprevisto
e do maravilhoso. Não por acaso, o autor cita como
epígrafe uma sentença de Augusto Monterroso,
que diz: "As novas gerações de escritores
deverão retomar, cada qual na medida de seu talento,
a inventiva tarefa que começou com Esopo, ou mesmo
antes dele, de reunir os animais que pela Terra andam e hão
de andar perenemente". Diferente da fábula tradicional,
porém, não está presente aqui a intenção
edificante, mas a relação simbólica entre
a "razão animal" (3) e a psique humana, seus
desejos, medos e frustrações, que se movimentam
num tabuleiro cada vez mais confuso e tortuoso. As feras desse
estranho Jardim Zoológico são entes metafóricos,
conceituais, que representam aspectos de nosso sentir e imaginar
("talvez acabe aspirando, en neste zoo de signos, a la
urdidura essencial del afecto que se vá en la cola
del escorpión", diz o autor em Mar Paraguayo)
(4). Os nuncas, por exemplo, deixaram de apostar na esperança;
ao contrário deles, os cordes estão "inteiramente
dedicados ao espinhoso ofício de amar neste nosso mundo
beligerante". Os êulikes, solitários, nunca
dizem a palavra amor, enquanto os tiguasús podem aliviar-nos
do problema da morte. O jaguapitã, por sua vez, é
"o alimento e o motor da Fé, pois só aparece
para quem está necessitado Dela, sobretudo aos índios
que, acometidos de irremediável engano, acabam abandonando
a tribo e se enfurnando nos perdidos da Floresta - batidos
de susto e grito".(5)
Podemos considerar este
livro de Wilson Bueno como um insólito conjunto de
fábulas, mas também como um moderno bestiário.
Segundo nos informam os dicionários, bestiário
(do latim bestiariu) é um livro com descrições
e histórias de animais, reais ou imaginários,
geralmente com ilustrações. O gênero,
popular na Idade Média, pertence a uma longa tradição
da zoologia fantástica, que começa talvez com
os relatos mitológicos e avança na linha da
história, abarcando os romances de cavalaria da matéria
bretã, com seus gigantes e dragões, os relatos
de navegantes europeus, na era dos descobrimentos (que usavam
mapas decorados com imagens de monstros marinhos) e até
tratados científicos medievais, inspirados em obras
clássicas da cultura greco-romana, como os 37 volumes
da História Natural de Plínio, o Velho, e a
História dos Animais de Aristóteles. Wilson
Bueno atualiza o gênero pela paródia e humor,
despindo-o de sua mística e investindo na carga erótica
da metáfora animal, onde prevalecem as razões
do corpo em sua violência e delicadeza. Conforme diz
Maria Esther Maciel, este Jardim Zoológico "pode
ser descrito como um catálogo ficcional de animais
híbridos, fronteiriços (porque muitas vezes
marcados pelos cruzamentos transnacionais advindos do contato
entre os países do continente sul-americano) e dotados
de uma espécie de saber poético sobre a vida
humana e sobre o próprio território que habitam".
(6) A mescla de referências culturais heterogêneas
de diferentes tempos e espaços citada por Maciel estimula
a invenção ficcional para além da representação
de uma suposta realidade, e ainda instiga o leitor a uma visada
simbólica mais ampla: cada um desses monstros é
mais do que chifres, pêlos e escamas, é também
arquétipo, mito, construção semiótica,
como o Cérbero ou o Minotauro, seus parentes distantes
em outra curva do espaço-tempo.
Grafias de esmeralda viva
Publicado em 1991, o Manual
de Zoofilia é um conjunto de trinta narrativas ou poemas
em prosa. Estas breves composições, que fazem
uso da metáfora, do ritmo e do paradoxo, falam de seres
como a cadela e o anjo, o dragão e o polvo, a criança
e o cisne, sem fazer distinção entre o real
e o imaginado (como se o autor nos dissesse que tudo é
real, tudo é imaginário, logo, tudo é
literatura). Ao contrário de Jardim Zoológico,
onde há um discurso descritivo linear, parodiando o
estilo didático das obras taxonômicas, como os
dicionários e enciclopédias, aqui predomina
certa obscuridade nas paisagens verbais, na construção
musical das frases e na fratura sintática. Esse desconcerto
verbal cria peças de estranha beleza, com o emprego
de um vocabulário luxurioso (asdrôbel, solferina)
e imagens poéticas construídas pela associação
de termos sem uma relação evidente entre si
(recordando Pierre Reverdy). Tal método compositivo,
que altera a percepção habitual do referente
e a lógica discursiva, articula inusitadas definições,
antiverbetes de um glossário labiríntico, monstruoso,
onde lemos que os dragões são "cactos arrancados
vivos", e os camaleões, "fragmentos pré-históricos
emplumados para a vitória". Pequenos paradoxos,
figuras de palavras ou "juegos-de-jugar" que evoluem
em curiosas não-histórias - ou desistórias
- que com dificuldade incluiríamos no gênero
ficcional, que pressupõe um grau mínimo de mímese.
São prosas poéticas, "orquestrações
para príncipe e viola d'amore", onde as frases
se desenvolvem como acordes de uma peça de concerto,
fazendo uso de todo o colorido de uma floresta de timbres:
"pode que as lagartas ondulem sobre a pauta do silêncio,
se é madrugada e convencionamos linhas que cruzem o
espaço do quarto, métricas, assimétricas".
O curioso é que neste livro tão abstrato e metafórico
ouvimos em contraponto um discurso de amor e ódio,
ciúme e vingança, presente em pequenas inserções,
colocadas no final dos textos como um canto paralelo e dissonante.
(7) Após o delírio imagético urdido em
torno de animais sonhados como desenhos de Bosch ou Arcimboldo,
lemos boleros ou guarânias como esta: "Se te amo
é assim hidrófoba a nossa paixão-fim-dos-infernos:
se você me falta, vampiro de saudade, pela casa vampiro
e pelo vento, se você me falta. Entre o grotesco e o
sublime, só atravessando você inteiramente nua".
Essa segunda voz evolui num crescendo, do início ao
fim do volume, elevando o tom sádico, o desejo de posse
e destruição do ente amado, num descontínuo
e fragmentário monólogo amoroso, povoado por
imagens desordenadas onde os animais são talvez apenas
estelas simbólicas de um íntimo e misterioso
labirinto.
Uma escrita chuvosa
"O mais lindo nesta
história, contudo, é o dia em que os chuvosos
sobre a Terra caem... múltiplos, gasosos, incessantes,
transformados na névoa que deste lado se vê e
que, feito um encanto, coroa os postes das madrugadas bêbadas
de neblina..." (8) Em Os Chuvosos, livro publicado em
1999, Wilson Bueno apresenta um poema narrativo sobre os seres
que habitam o interior das nuvens, numa linguagem lúdica,
de aparente singeleza ou suavidade, que parodia o estilo ficcional
dos contos infantis (na linhagem dos Irmãos Grimm,
Andersen, Perrault). (9) Ao criar personagens a partir de
elementos inanimados da natureza, o autor utiliza o recurso
da prosopopéia, assim definida pelos dicionários:
"Figura pela qual se dá vida e, pois, ação,
movimento e voz a coisas inanimadas, e se empresta voz a pessoas
ausentes e mortas e a animais". Incluir Os Chuvosos no
ciclo de bestiários de Wilson Bueno pode parecer arbitrário,
mas o autor permite essa aproximação, nas primeiras
linhas do relato, onde diz: "Estes animais, eu vos convido,
era uma vez". Lendo as páginas dessa quase cantiga
de roda ou história dançante, ficamos sabendo
que essa misteriosa raça de seres conhece a vida em
família e o pavor dos raios e trovoadas; sabemos ainda
que, precipitados sobre o solo, eles se revelam "numa
festa de luz e passarinho", quando a névoa é
dissolvida pelo primeiro sol da manhã. De todos os
relatos de Wilson Bueno, este é talvez o mais sutil,
de ação mínima, transparente, quase reduzida
ao precipitar das águas sobre as lonjuras de nossa
sombria terra. Um outro aspecto dessa desistória, analisada
pelo crítico José Castello, no posfácio
ao volume, é o da impermanência das coisas, seu
fluir e refluir em ondulação, como no rio arquetípico
de Heráclito e Kung Fu Tsé, dança das
coisas no tempo, nesse contínuo vai-e-vem do samsara.
Diz Castello: "mais que a chuva, o personagem de Wilson
Bueno é o transitório: esse senhor esfumaçado,
sem rosto, figura brevíssima que transita de um lado
para outro, surgindo abruptamente e desaparecendo quando menos
se espera". Com arte inusitada, própria de um
artista japonês, o autor de Os Chuvosos faz o registro
inusitado desse trânsito de imagens no mundo flutuante,
numa delicada cantiga ou "juego de jugar", conseguindo,
nas palavras de Castello, "reter faíscas, atá-las
em novelo para fazer do passageiro, paisagem". E toda
paisagem, como sabe o autor, é passagem, miragem, viagem
da linguagem.
São Paulo, 27 de outubro de 2004
Post scriptum: não poderíamos finalizar
este breve ensaio sem fazer uma referência ao cãozinho
Brinks, personagem de Mar Paraguayo, que passa por uma curiosa
metamorfose: seu nome vai aumentando ao longo da narrativa,
por meio de sucessivos sufixos guaranis (Brinks'michimira'ymi),
enquanto o animal vai diminuindo de tamanho, até ficar
quase invisível.
Notas:
(1) Conforme analisa Maria
Esther Maciel, Wilson Bueno faz uso de uma "razão
animal", da qual "extrai um saber que tem no corpo
a sua expressão mais viva e um olhar que traz, ao mesmo
tempo, todos os afetos e sentidos" (in A Memória
das Coisas, Lamparina Editora, Rio de Janeiro, 2004).
2) O homem-tarântula
é citado por Lautréamont nos Cantos de Maldoror.
Conferir, a esse propósito, as Obras Completas
do autor francês, traduzidas por Claudio Willer (editora
Iluminuras, São Paulo, 2002).
3) Ver nota 1.
4) Mar Paraguayo,
de Wilson Bueno (editora Iluminuras, São Paulo, 1992).
5) Jaguapitã,
diz o autor, significa "cachorro vermelho" em tupi-guarani.
É também o nome de uma cidade do interior paranaense,
situada a 50km de Londrina, cidade natal do escritor.
6) Ver nota 1.
7) A esse respeito, o
próprio Wilson Bueno declara, em entrevista concedida
a mim e publicada na edição de fevereiro/2001
do Suplemento Literário de Minas Gerais: "Eu
sempre desejei fundir, num mesmo espaço de reflexão,
a 'grafia' animal e a paixão erótica humana.
Em Manual de Zoofilia fica evidente o quanto de irracionalidade
comporta nosso discurso amoroso. E, para dar viva voz a esta
racionalidade, fui buscar nos bichos encantos e sordidezas,
grandezas e patifarias para transubstancia-los - usemos este
verbo pedante - a partir do tesão, da cópula,
da paixão viciosa e viciada em que, humanos, nos amamos,
muitas vezes, no mais escuro ódio".
(8) O autor abordou esse
tema em outra narrativa, intitulada As Chuvas, que a princípio
iria integrar o Manual de Zoofilia mas que permaneceu inédita
até sua publicação no site de Sara Fazib,
http://www.sara.fazib.nom.br/wb.htm.
Ver, a propósito, o fragmento inicial dessa prosa:
"Bicho líquido de fiel transparência, as
chuvas chovem no zinco de nosso teto humilde com a graça
quase invisível de ariscas lagartas, e mínimas,
muitas, coleantes, uma vez que cândidas."
(9) A paródia do
estilo narrativo dos contos infantis está presente
em outras ficções do autor, como O sapo papudo,
que saiu no n. 3 da revista Monturo, de Santo André
(SP), em 1999, e O lobo sutil, publicado no n. 0 da
revista Sibila, de São Paulo (SP), em 2001.
Estas e outras histórias foram incluídas no
volume Cachorros do Céu, a sair em julho de
2005, pela editora Planeta.
*
Claudio Daniel,
poeta, tradutor e ensaísta, é autor dos livros
A Sombra do Leopardo (poesia, 2001) e Romanceiro de
Dona Virgo (contos, 2004), entre outros títulos.
*
Leia três
contos de Wilson Bueno e um fragmento
do romance Amar-te a ti nem sei se com carícias.
Leia também poemas
de Claudio Daniel e um ensaio
do autor sobre Jorge Lúcio de Campos.
|