Pintar as cores do branco,
para esboçar a música do silêncio. Gestos mínimos, concisos,
de um artista japonês: traços rápidos do pincel no espaço
da tela, para iludir a idéia de tempo; para alucinar a consciência
da forma. Ausência de Lis, de Jorge Lúcio de Campos,
é um tratado lógico do delírio, uma construção rigorosa
do impreciso, que nos fascina e seduz com sua nervosa beleza.
O poeta ordena uma realidade recriada, ou paisagem onírica,
tirando os objetos de suas funções ordinárias para redesenhá-los,
realinhá-los como entes do imaginário, mas sem abdicar do
acurado jogo de linguagem e da pesquisa semântica. Assim,
por exemplo, no poema O Museu da Noite: "Esse o resto
/ de uma lua / entristecida - / já sem cor - / só maçã e
/ andaluzia", ou ainda em Paisagem Filosófica: "Um
só volume / de lábio e / montanha" (...) / "coisas que /
falam de um / sol quebrado". Os poemas desta coletânea notável
não formam um ciclo ou série, como a seqüência de fotogramas
em uma película ou a irrupção de ideogramas no haiku;
porém, há uma unidade consistente, sutil e inconsútil, nas
três seções que a formam - Desenhar, Ad Infinitum
e As Estações da Razão, que somam 30 poemas (número
que sugere a multiplicação do Três, a Trindade, pelo círculo
mágico, o Dez, numa aritmologia poética). A impressão inicial
que temos na leitura dessas miniaturas (ácidas e delicadas,
como flores do inferno) é que o poeta transtornou o olhar,
para ver as coisas pelo avesso da pupila. É o próprio autor
que nos diz, em Azul Frontal: "Há olhos que / nem
sei - / devoram toda / a realidade / De algum modo / há
olhos mais / agudos do que / um gesto atroz". Em outra peça
do volume, Variação de Cubos Incompletos, a mesma
referência à visão visionária: "Olhos que não / deixo de
vestir / sempre que posso / - o inverso de / um buquê de
crisântemos". O afastamento da lírica coloquial, centrada
no cotidiano, em sua banalidade castrada (canonizada), não
implica recusar o debate do estar-no-mundo, não foge à questão
do ser no tempo; ao contrário, em Jorge Lúcio de Campos,
a tensão entre arte e vida, pele e página ganha contornos
dramáticos, até expressionistas, como em King Kong:
"Naco de carne da noite / nesses dentes podres / que, afiado,
inflo / num bafejo intenso / de silêncio e dor". Poesia
como reflexão (fala) do corpo, da palavra e da mente, em
sua unidade (totalidade), em sua condição de cíclico sofrimento
e gozo, destino de fera entre feras, de reflexo no espelho
do lago (onde brota o lótus, entre água e lama). No final
do volume (virtual e onírico) encontramos (como Ulisses,
na Odisséia) os espectros de filósofos pré-socráticos,
como Heráclito e Parmênides, convertidos em personagens,
em sujeitos semânticos de um discurso amoroso cuja Vênus
(ou Sophia) é a linguagem, as palavras carregadas de informação
nova, de coração e cérebro ("No breu do éter / outro éter
se / dilata - em meio / ao mar um novo / mar já esquecido").
Em Ausência de Lis, Jorge Lúcio de Campos reafirma
a qualidade de seu trabalho anterior (o poeta tem já cinco
livros publicados) e desponta como um dos mais interessantes
nomes da poesia brasileira contemporânea.
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Ausência
de Lis, de Jorge Lúcio de Campos, está
disponível na Internet no endereço http://come.to/jorgelucio.
Leia
também os poemas
de Jorge Lúcio de Campos e um conto
do autor.
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Claudio Daniel,
poeta, tradutor e ensaísta, publicou, entre outros títulos,
A Sombra do Leopardo (poemas, 2001), Na Virada
do Século: Poesia de Invenção no Brasil (antologia,
2002, em parceria com Frederico Barbosa) e Prosa do que
Está na Esfera (traduções de Leon Félix Batista, junto
com Fabiano Calixto).