UMA
BREVE HISTÓRIA DA PINTURA MODERNA
Primeira versão
a Mark Tansey
O jato insiste
em correr pela vidraça, livrando-a de todo tipo de
sujeira contida na manhã nascente: fiapos, asas de
coleópteros, o pó falido da noite vencida pelo
sol contrito.
A parte externa
já rebrilha graças à ação
da água cristalina. Por algum tempo, à janela
é devolvida a condição de visibilidade
ampla, assim como às árvores, por ela vistas,
as de borrões pintados, e às colinas distantes,
por ela devassáveis, de objetos moldados.
As nuvens
voltam a ter um aspecto gráfico, ao menos até
que o conflito entre o puro e o impuro, outra vez protelado
para o dia seguinte, volte a fazer sentido.
UMA
BREVE HISTÓRIA DA PINTURA MODERNA
Segunda versão
a Mark
Tansey
Trata-se
de um retângulo de concreto armado, estrategicamente
posto à frente de algo. É preciso haver um motivo
para derrubá-lo e esse motivo não tardará
a aparecer para alguém. É claro que, sem um
domínio completo da situação, esse alguém
encostará a cabeça em sua tessitura pardacenta,
passando, então, a fazer força.
Das duas
uma: ou a pressão psicológica reduzirá
a cabeça a um amontoado de pedaços - sem trazer
luz alguma ao ritual - ou, obscurecido pelo descaso e pela
impossibilidade a priori da tentativa -, o sujeito sairá
de cena, levando consigo sua crença numa presença
ou em 'algum lugar lá fora' tridimensional.
De qualquer
modo, o retângulo de concreto armado ficará ali,
estrategicamente posto à frente de algo, desafiando
quem estiver disposto a pagar por ele.
UMA
BREVE HISTÓRIA DA PINTURA MODERNA
Terceira versão
a Mark Tansey
Sob hipótese
alguma, o animal poderá ser responsabilizado. A galinha
é também um ser que observa. Principalmente
quando pressente que algo demanda que assim o faça.
Reconstituamos a cena: uma pequena rampa, e, ao fundo, alteado
por uma caixa de madeira, um espelho oblongo. Pelo caminho,
espalhados - apenas para garantir que a experiência
seja bem-sucedida - alguns grãos de milho servirão
de engodo. Bicando-os ou não, ela subirá a rampa,
pois, ali, na posição em que se encontra, descer
é um ato impossível.
Cedo esbarrará
com o seu próprio reflexo. Após segundos de
embaraço, paralisar-se-á, atiçando a
imaginação. Mas, então, 'pensará'
o que? Que se trata, talvez, de um pôster afixado, pelos
granjeiros, em sua homenagem? Transportar-se-á, no
caso, para algum lugar fora do espaço-tempo, de certo
modo, 'raciocinando' sobre as intenções da experiência?
Ou, o que é provável, tudo aquilo lhe parecerá
estúpido demais, de modo que, adiante, descendo a rampa,
sumirá num matagal - que tampouco possuirá mistérios
- apenas por não ter opção?
*
Jorge
Lúcio de Campos nasceu no Rio de Janeiro (RJ),
em 1958. É autor dos livros de poesia Arcângelo
(1991), Speculum (1993), Belveder (1994),
A dor da linguagem (1997) e À maneira negra
(1998), além de volumes de ensaios.
Leia também os
poemas de Jorge Lúcio de Campos e
um ensaio sobre o autor.
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