ZUNÁI - Revista de poesia & debates

[ retornar - outros textos - edições anteriores - home]

 

 

ADEMIR ASSUNÇÃO

 

 

 

 

O PÂNTANO

 

Há uma serpente enrodilhada nas ramagens

do poema:

 

cauda verde-turquesa, escamas

mitológicas, cabeça

de névoa.

 

Há um cemitério de aviões de caça da Segunda Guerra:

fuselagens corroídas

por vermes replicantes, ranhuras

de ferrugem,

pontas preparadas para rasgar a carne

dos incautos.

 

Há um piloto kamikase e uma mulher seduzida

pelas palavras mágicas do Talmud,

 

uma rainha louca que trepa

com o próprio filho,

 

uma princesa lasciva,

cuja diversão é dizimar exércitos mouros

 

e praticar fellatio

no irmão mais novo.

 

Há prostitutas chinesas

exímias na arte secreta dos punhais.

 

Há ciladas, armadilhas, areias movediças

no pântano, entre raízes,

do poema.

 

Há um monstro de folhagens

e couro cru de crocodilo

pronto para emergir

ao simples toque

da sineta de Pã.

 

11.06.2008

 

A NOITE DAS BRUXAS

 

agora o espelho reflete nada, corujas

chiam na noite nenhuma, vozes distantes

ecoam na praia, navios fantasmas

deslizam na bruma, agora escuto

os blues das baleias, asas negras voam

bem longe, o mar bravio espanca as

escarpas, cavalos escapam do curral

das sereias, agora todas as tevês

estão desligadas, o céu cobriu-se com

um manto de nuvens, corsários

atracam no cais tenebroso, cachorros

malucos uivam pra lua, agora rolam

cabeças no morro, piratas atacam

sem dó nem piedade, todas as leis

estão revogadas, não resta nem sombra

da triste cidade

praia brava, 30.05.2008

 

ORFEU NOS QUINTOS DOS INFERNOS

 

pra saber quem eu sou

preciso descer até o inferno

 

lá encontro o Homem do Nariz de Ferro

o mais tenebroso dos internos

 

jogo pôquer com o rei das profundezas

e com o escroque especialista em safadezas

 

vejo o velhaco encurralando a vil marmota

e o desespero do banqueiro em bancarrota

 

lá eu vejo a queda do império de ilusão

quem banca esperto logo sai sem um tostão

 

e quando volto do inferno, quase em farrapos

sou invencível, sou fogo sobre a relva

 

eu sou o matrimônio da luz e da treva

 

eu sou o barco e o barqueiro

o alvo, a flecha e o arqueiro

 

eu sou a mandíbula do tubarão

e o grito de dor do surfista

 

a mentira na manchete do jornal

e a bomba do atentado terrorista

 

eu sou a faca que atravessa

o peito do político traidor

 

e as ruínas queimadas do templo

do vigarista mercador

 

eu sou poeta e sigo em frente

em linhas tortas

 

eu não lido com palavras mortas

 

19.julho.2007

 

A CANÇÃO DOS PEIXES

 

submersos

nas funduras

 

(de onde

alma alguma

retorna)

 

entre algas

rochas e restos

de naufrágios

 

cegos

e sem memória

 

os peixes

cantam

seus blues

 

canções inaudíveis

de um tempo

sem tempo

 

que ninguém

(nem coltrane

nem hermeto)

pode ouvir

 

em lugar algum

 

8.6.2008

 

JACK KEROUAC NA PRAIA BRAVA

 

sonhei com jack kerouac

sentado na varanda da casa

de waldemar cordeiro. eu acabara

de acordar e dei de cara

com aquele vulto imerso

na neblina. bem acima da copa

das árvores a lua cheia ardia

entre nuvens espessas, com sua

cara de gângster. eu disse: “ei, man,

onde é que vamos parar?” jack

deu uma longa tragada

no cigarro, fumaça branca na névoa

branca, e me estendeu

o copo de uísque.

continuou encarando a lua, pálido

como um fantasma. disse

que estava a bordo de um navio

mercante da marinha americana na costa

da indonésia até a semana passada.

perguntou se ainda havia hippies

nas ruas, feministas queimando sutiãs

em praça pública e negros

enforcados nos galhos de grossos carvalhos

no novo méxico. “oh, não, jack, isso

faz tanto tempo. agora eles mandam os jovens

negros pobres para a guerra no iraque.”

descemos até a mercearia da praia brava

atrás de umas latinhas de cerveja

e de uma garrafa de conhaque. no caminho

contei-lhe que leminski e itamar assumpção

estiveram nesta mesma casa no carnaval

de 1988. “oh, yeah”, disse jack. “os grandes

poetas são como as marés: engolem os

barcos dos imprudentes e lançam os destroços

na praia”. quando voltamos da mercearia,

minha filha de 16 anos lia jorge luis borges

e meu filho de 13 lia david goodis. nina

simone cantava just call me angel of the morning.

jack abriu uma lata de cerveja, bebeu

um longo gole olhando as folhas da mata

e disse a eles: “não deixem que os idiotas

calem sua voz. aquela voz que vem lá do fundo

de vocês mesmos. contem comigo

pro que der e vier”. minha filha

sussurrou no meu ouvido: “quem é esse

cara?” “jack kerouac”, eu respondi. “uau”,

ela balbuciou. meu filho levantou os olhos

do livro e gritou: “eddie acabou de acertar um

cruzado de direita na cara do leão de chácara”.

eu olhei para jack e em silêncio

fizemos um trato: “deixe-os viver. ainda é cedo

para contar-lhes sobre as mentiras do mundo”.

jack jogou pra dentro um bom gole

de conhaque e assentiu com a cabeça. a noite

estava fria. a lua continuava socando as nuvens

com sua cara de gângster mal-humorado.

 

praia brava, 23.01.2008

 

O FIM DA HISTÓRIA EM GOTHAM CITY

 

gatos pardos gatos negros

gatos loucos e bêbados

 

atacam o bando de João

Bafo de Onça: urros uivos gritos

 

e jatos de sangue

na Noite das Estrelas Dopadas

 

gatas-polaroides cheiram flocos de nuvens

nos banheiros nas lixeiras

 

de Japatown: batuque de giletes

em tampas de ferro enferrujado

 

miados miasmas palavras que se derretem

na bruma dos cigarros

 

caos e crime cheiro de sexo e ruína

nos becos nos moquifos nos cortiços

 

entre o fog e a fumaça das pastelarias chinesas

 

bichas assassinas afiam navalhas

e treinam golpes mortais de tae kwon dô

 

trens abarrotados de linguistas e filólogos

chocam-se contra o muro de vidro do real

 

o céu-holograma desaba em pedaços

sobre as cabeças dos passantes

 

enquanto Coringa injeta no braço esquálido

a última gota da ampola

 

e Batman se retorce como uma cobra

picotada pelas garras das Iguanas de Hong Kong

 

28.08.2008

 

Poemas do livro A voz do ventríloquo, publicado em 2012 pela editora Edith.

 

 

*

 

Leia outros poemas de Ademir Assunção e um ensaio sobre o autor escrito por Fabrício Marques.

*

 

retornar <<<

[ ZUNÁI- 2003 - 2012 ]