ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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ANDRÉIA CARVALHO

 

 

 

 

«os poemas hão-de permanecer fechados após todas as desocultações e hão-de ser abertos para quem neles entre como numa casa oferecida» (Herberto Helder)

 

* alraune

 

simulando um ritual de inseminação artificial, deposita com letra areia, versos enforcados no livro mandala. o dedo fálico do vento semeará sua beatidude de shiva dançarino sobre as linhas.

 

pai,     

            não preciso mais de ti. tua voz bíblica é abafada pelos jogos de hecatombe, nesta metrópole     com torres de maisena, onde o mais rápido dos corpos planetários é apenas um cisne opaco,   com seu balé sacrificado pela sinfonia das bigornas. nascem múltiplas e ruidosas vênus     ginóides na sopa plástica que reveste teu oceano antiquário. não há mais acústica de prece no     coalho das manhãs, só eminências pardas de terremotos despertadores. teu verbo se    amplifica na carne dos auto-falantes. e na maioria das horas, trata das profecias de             nostradamus, teu filho lunático. o outro? disse que voltaria, mas até agora, nada.

 

* água rasa

 

plongée:

a cesta de frutas

sua digestão de cera na colméia do zoom

 

poderia pintar

azul da prússia e amarelo sião,

os frutos alinhados:

soldadinhos de chumbo entre budas de bamiyan

 

poliglota,

não sabia

 

o pincel batizaria a moldura de uma ceia santa,

doze signos em comunhão

cromática

 

eremita,

não sabia

 

com a face contorcida de visões

rasgava o linho cru

da mordaça sobre os dentes

e sigilava o alvoroço de uma outra horta

criando raiz

letra sobre letra

 

uma árvore nova

edificada sobre a renda branca

e seu vinho farto de luz

uma árvore de rosas gigantes

abocanhadas de nuvens

suas imensas gargantas

desdenhando a fome no umbigo

acrílico

do mundo

uma árvore estilhaçada

 

diria, sem pincéis.

 

* a copista de fósseis imaginários

 

moira cataléptica, zigoto de vestal

 

apenas desmagnetiza o espírito

da página

quando a parafina expira

a auto-combustão

do despertador

 

a fogueira de savanarola

no bom dia mundial

 

fecha o ecrã

e segue muezzin a ordem de abraxás

 

cerra as cortinas

sonâmbulas

 

o corpo cripta

exausto de caligrafias

não a deixa

 

* encarnada pietà

 

sou o corcunda de teus megatons

 

meu vulto atrofiado pela acústica de 11

estopins

 

curva é minha coluna

nos braços armados da matéria escura

 

ah vigília dos ciclopes

ah coragem dos abissais

ah dimensões

 

se elevasse sobre 11

minha artilharia

(endiabrada sístole)

seria um mártir

simetricamente orquestrado

na guernica

de tuas têmporas acuadas?

 

* pantagruel

 

cismo do decaído

não te canses do ofício

de salgar a minha boca criptogâmiga

 

que meu cordão umbilical só se rompa

no salitre de uma viajem espacial

 

quando o sal for imerso

na solução de uma tarde fecundada

de tarefas concluídas

 

quando o fermento me encher o bolso

para apenas um trago

revigorante

anestésico

apaziguador

 

nesta densidade

infinita de singularidades

 

* ötzi

 

dize-me
faca

cirúrgica superfície
de ônix & ferida
com punhos de benjoim
no abdômen escuro

digo-te
anzol

ferrão de apis
na profundeza
dos humores

choro. saliva, gozo
medúlico
selvagem

sorrimos
foice
flecha
fúnebre

dramatizam
setas de saint sebastian

eis o gume de nossa
gravura
exposta
em precisa punção


no pulso
do meridiano
congelado

57 tatuagens azuis
na physis de uma efêmera
cartografia

 

* screen saver

 

a mãe

esverdeada

apagava a luz

com seu parto escuro

na trava das portas

 

aguardava

temor-esperança

a dança dos espectros

abaixo da cama

a infância perpétua

os entes sem avós,

sem batismo, sem eu

 

o mar de campânulas

com seres de lugar nenhum

soava dentro da harmonia negra

abafando a metálica

voz

da catedral

sempre exorcizada

 

mãe, fantasmas,

e o combustível

do espetacular

no limbo do sono reparador

 

o dia, apenas uma metáfora luminosa

no olho do grito fechado

 

* pleroma de baal

 

incomunicáceis

trocamos confissões

dois vasos de trincada

porcelana

no mesmo enquadramento da luz

dois receptáculos que acolhem

as dez sefirot

âmpolas que aguardam

o hálito de fogo

da grande a s m a d e d e u s

 

* maria centrômera

 

enjaulada

na avenida

 

colada ao

perfil de cubos

das infinitas janelas

 

tantos ossos tantos mundos tantos

vasculares

 

pelos quais poderia

libertar

os 47 fetos de símios

diamantes

 

que arrasta

transgênica

na pulseira algema

do braço direito

o braço do santo ofício

 

* octovisão de tesla

 

me fito

mefisto luciferino

nas anáguas de abbadon

 

faraó em transe

risco na pálpebra

ondulatória

linha

lápis lazúli

 

e um universo

desaparece

no cerne da

maquiagem

 

* pai nosso das neves

 

o pão de água

dura

o pão oleoso

da pedra

dilata o dia

abrasa a noite

com o cio dos semáforos

 

as frutas apodrecem

nos jardins suspensos de rankine

 

e lá

longe, muito perto

uma nova terra

artificial

com ânforas de nosso

mastigado

dna

 

a terra prometida

a planície criogênica

e o berço de uma maçã

gestante, cornucópia

estéril do pecado

dos homens

 

* o evangelho segundo olympia

 

uma rosa de ventos , palma de uma mão

e o livro a ser escrito

iniciado

na tinta fresca de uma víscera

na pele salpicada de rios subterrâneos

 

a câmara mortuária

de um caçador

que a si mesmo

assim não se nomeava

 

o livro dos abismos

o grande manuscrito das rotas marítmas

das rotas hereditárias

no tumor desenfreado de um deus

vertido de águas curativas

 

seus sinais binários

suas mensagens cifradas

na frota do homem escafandro

meio mago,  meio abutre

meditando a angústia de um planeta varrido

pelo sopro austero da matemática

 

para onde irás sem esta câmara, sem este livro

soterrado?

 

ancore na bagagem

os guarda-chuvas para neutrinos

mesmo inúteis

chuviscarão belezas flutuantes

no picadeiro dos antigos palhaços,

dos vernáculos

e dos leões.

 

* a dieta das estrelas

 

eis a terra cantando

festa de migalhas

poetas, poemas

surrealidades

reclusa na própria hemorragia

entre a lepra e o pão

das conjugações

 

eis o sangue nutritivo

das freiras palavras

bebendo no claustro

escondidas

de si mesmas

sem nervos  sem padres

sem a métrica desnutrida

dos sonetos

 

eis a mesa magra, mirabilis, mirabilis:

 

as cinco sementes cítricas de santa

verônica

explodem um sumo milagroso

dentro das chagas do cristo

verbo

crucificado

 

o jejum pelas imagens

prodigioso

como um século de ervas

na farta comida

das feridas anoréxicas

 

catarina, angela, margarida,

columba, marie, beatrice,

gavita

 

no estômago do criador

 

um banquete radioativo

entre a terra galatéia

e nós

 

 

*

 

Andréia Carvalho é poeta curitibana. Escreve o blog "O Hábito Escarlate". Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Zunái, Germina e Eutomia e na revista impressa Polichinello. Seu primeiro livro “A Cortesã do Infinito Transparente - Lumme Editor - Série Caixa Preta (Poesia)” foi lançado em maio de 2011, no evento literário ZOONA, em Curitiba. O segundo livro de poesias “Camafeu Escarlate” também será lançado pela Lumme Editor, em 2012.

 

Leia outros poemas da autora.

*

 

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