JORGE ARRIMAR
DOZE (RE)CANTOS DO POEMA
1.
são estas as mãos por onde correm
linhas de água pura, líquidas
sonoridades duma flauta débil que chora.
amortalhados em resina de papoila
jazem teus dedos brancos e finos
como bicos de cegonha
e na clepsidra continuam a gotejar
teus versos escritos ao vapor do vinho,
teus versos embebidos no vermelhão dos lábios
ó peipa-chai da rua desabrochada
a barca de flores continua a navegar
em lençóis de alvo linho
2.
borboletas de luz voam na noite tépida
trazendo o brilho da manhã. sei que foste uma
das que se retirou mais cedo, ainda a claridade
não rosava o pavilhão de mármore
onde te encontras à espera. mas somos
nós que esperamos por ti na rota
das lamparinas de ópio por acender.
por entre venezianas vi ana
colher pirilampos nas cerejeiras
3.
de sépia se tingem já as folhas
dos teu livros, com o suor oxidado
do velho aparo com que aparavas os ramos
e defendias as raízes: macau sã assi, de
pegadas leves no oblíquo rasgão do tempo.
só o eco continua a ouvir-se, percutido no tímpano
das ilhas. os panchões soam com fragor, as
montanhas abrem-se com outras vozes, mas
ainda badalam os sinos a orientar os passos
de quem procura o senhor dos passos
da jinéla vérde dum casarám antigo
alguém continua a vigiar o caminho dos peregrinos
4.
ave de aventura, por(a)ventura te deste
ao mundo, um voo quase solitário por entre
brumas e luzeiros. o temporal das naus afundadas
voltou e camões triste
a oriente foi náufrago de regressos adiados. sei
que estavas só na tormenta, mas
salvou-se o poema
5.
ardem os pulsos abertos e no sangue que jorra
há uma pedra de sal, a bóia facetada de um diálogo
de silêncios. nós sabemos porque calámos a voz,
quando a palavra pesava como uma cabaia de jade.
antes foram tantas as angolas suspensas
na conversa dos finais de tarde, quando o cantar
das cigarras era o mesmo, lá e aqui. mas a morte
é o lume que aquece o rosto invisível dos poetas, a
lareira de um tempo de angustia onde se moldou
um esqueleto (con) sentido.
nesta margem esperamos por ti, um seixo
a brilhar na madrugada
6.
secretas rotas rasgam-se nas planícies
iluminadas pelo fogo da giesta. a trajectória é
oposta à do sol, o líquido leito onde viajas
e adormeces. embalou-te a voz suave das crinas brancas
com que se remendavam os buracos da noite. por eles
se esvaía o rio e se adensava a mágoa. a sede
eras tu própria
embebida num erhu de água
7.
mergulhaste a alma na brisa de uma tarde
em que indo te deixaste ficar, com as raízes
a baloiçar entre o ocidente e o oriente. se alguém
te perguntar onde moras o que dirás?
que te passeias todas as tardes no jardim
do guardião da memória.
um tufo de lírios é regado todas a tardes
com poemas em patoá
8.
amagao envelhecido nas fachadas, mahjong
de bambu e seda nas balaustradas. a ode
já se ouviu e se perdeu entre fumos de incenso, ali
ao virar da esquina,
num recorte de igreja e de pagode
9.
a ostra deu à costa mas o pescador
foi atrás do peixe. perdeu a pérola mas ganhou
a prata das escamas. pescador de margem
num rio de pérolas a correr para o mar. a rede
é uma teia de aranha entre as banianas
da praia grande
10.
primeiro era o pátio das palavras, o das vozes
ensombradas, depois o lugar dum poeta só,
com a voz presa em tiras de papel. mas sei
que a chácara da música sobrevive
ao passar ácido das horas
e que a chama teatral que acendeste
nas acácias verdes do lou lim ióc
ainda salpica as pedras gastas
do pavilhão vermelho
11.
tinge-me com as pegadas de tinta
com que pintaste a frontaria do velho templo,
num tempo tecido de sedas e lacas. muitas vezes
desci a rua do chunambeiro para te encontrar
mas a direcção era outra. oferece-me, mais
uma vez, o aroma das rosas passadas
quero como tu sorver as translúcidas pétalas de lichia
e perder o sentido da eternidade.
12.
vou nas asas de um vento cego, de um vento matinal
que sopra do norte. nem os vendavais quebram o hábito
de voar, mesmo quando a luz do farol se apaga e nos guia
um sopro salgado que vem do mar. em hac-sá
as casuarinas secam de um silêncio novo. dos seus
troncos de madeira macia liberta-se um junco,
e são de promessas as suas velas
*
Jorge Manuel de Abreu Arrimar nasceu em Chibia, Huíla (Angola), em 1953. Na década de 1970, criou com amigos o Grupo Cultural da Huíla (Grucuhuíla). Estudou na Faculdade de Letras da Universidade de Luanda, tendo concluído a licenciatura em História e especializando-se em Ciências Documentais. Foi professor de português em Açores, onde dirigiu, com Carlos Loureiro, um suplemento literário chamado Página Africana. Publicou, entre outros títulos, Ovatylongo (1975), Poemas (1979, em parceria com Eduardo B. Pinto), 20 Poemas de Savana (1981), Murilaonde (1990), Fonte do Lilau (1990), Secretos Sinais (1992) e Confluências (1997, em parceria com Manuel Yao). Em 1985 radicou-se em Macau, onde ocupou o cargo de diretor da Biblioteca Nacional. É colaborador do Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, organizado pelo Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro e prepara uma Antologia de Poetas de Macau em parceria com Yao Jingming. Reside hoje em Portugal.
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