ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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JOSELY VIANNA BAPTISTA

 

 

 


foto ©Nego Miranda

 

 

exercício espiritual

 

Aqui poucas letras bastam,

pois tudo é como papel em branco.

Manuel da Nóbrega. Carta 8 (1549)

 

risco

no portulano

da areia

o roteiro do error

(do latim errore):

viagem sem rumo

e sem fim,

como a dos ascetas

e dos apaixonados,

fadados ao êxtase

e ao naufrágio

 

 

 

dois rios

 

espatas de palmeira

de borco sobre a terra

que llueva, que llueva

la virgen de la cueva

 

chove forte

nos barrancos,

entre o roxo

dos torrões,

sobre os seixos

e o musgo

do veio do rio

expulsos

(gume que o limo

recobre

de um visco frio –

pedregulho)

chove no fundo

barrento

repleto de pigmentos

que os pingos

trazem à tona

em diluídos vermelhos

 

chove forte

(como ontem)

no fluxo escuro

do rio

 

– seu curso

um leito

de troncos lisos,

crivo de tocos

pretos, restos

de ossos toscos,

esqueletos

– rentes frisos –

(terror)

de silêncio

 

 

ostro

 

[…] recorremos aquel lago bermejo,

de condenados sitio doloroso.

Dante, via Roa Bastos

 

sigo o trilho estreito

entre verdes e pretos

que o escuro confunde

no arvoredo

 

vejo, entre os tufos

o rio turvo, seu rumor

salobre entre arbustos

o leito fundo

que desce

lento

 

insetos secos

e gravetos

 

no veio brusco

em que os juncos

emboscam

ciscos e detritos

de novo encontro

(sono sombrio)

os círculos de lodo

em teus olhos

o contorno tosco

 

de teu corpo

sem nome

 

(o rosto

um esboço fosco

de barro e emplastro

de borra e mosto

– hibiscos

murchos

estames

hematomas)

 

 

coix lacryma

 

sobre o sisal

um corpo nu entre

fieiras de esferas

lisas – frutos cinzas

que o sol enegreceu

em lágrimas-denossa-

senhora, contas

-de-santa-maria–:

breve rosário de biurás,

tesouro fúnebre

de urubus

 

os frutos duros

com que os dedos

grão a grão

sangram no corpo

o luto, o rosto

mudo sobre folhas

murchas (lágrimas),

miúdas, rubras,

úmidas

 

 

roça barroca

 

As almas são visíveis em forma de sombras.

Da religião Guarani, via Schaden

 

viu o primeiro sol

depois do inverno

desembrulhar, folho por

folho, os rebentos

 

em cada greta

e grumo

do terreno

foi descobrindo

grelos

e vergônteas,

ocelos verdes

e outros

arremedos

 

no alfobre

farto de bolor

e mofo,

sobre os sulcos

cheios

de refolhos

– em cada covo

um eco de silêncio,

a própria sombra

um paroxismo

de roxos

 

o sebo

que acende

o lume

é o mesmo

que unge

as mãos

que abrem

sulcos

entre raízes

e restolhos,

tegumentos

de mudas,

cogumelos

no estrume

 

(Poemas do livro Roça Barroca. São Paulo: Cosac&Naif, 2011.)

 

 

*

 

Josely Vianna Baptista, poeta e tradutora, nasceu em Curitiba (PR), em 1957. Publicou os livros de poesia Ar (1991), Corpografia (1992), Outro (em co-autoria com Arnaldo Antunes, no álbum de arte homônimo de Maria Angela Biscaia, 2001), Sol sobre nuvens (2007) e Roça Barroca (2011). Em 2002, seu livro infantil A Concha das Mil Coisas Maravilhosas do Velho Caramujo (Mirabilia, 2001; ilustrações de Guilherme Zamoner) recebeu o VI Prémio Internacional del Libro Ilustrado Infantil y Juvenil do governo do México. Em 2005, lançou Terra sem Mal: com rolanças e mergulhos pelos divinos roteiros secretos dos índios Guarani (Mirabilia; ilustrações de Guilherme Zamoner). Uma coletânea de seus poemas, On the shining screen of the eyelids, foi premiada em 2001 pelo Creative Works Fund, de San Francisco, e editada nos EUA em 2003 (Manifest Press, tradução de Chris Daniels). Os poros flóridos foi lançado no México em 2002 (Los poros flóridos,  Aldus, com tradução de Reynaldo Jiménez e Roberto Echavarren) e nos EUA, em 2006, em 1913 - A journal of forms (Roanoke, tradução de Chris Daniels e R. Alfarano). Em 2004, publicou Musa paradisiaca: antologia da página de cultura 1995/2000 (Mirabilia), coligindo parte de seu trabalho em jornalismo cultural. Josely publicou traduções de importantes autores latino-americanos, como Jorge Luis Borges, Lezama Lima, Cabrera Infante, Alejo Carpentier, Coral Bracho e Juan Filloy, entre outros.

 

Leia outros poemas da autora.

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