LEONARDO GANDOLFI
Desaparecimento de Agatha Christie
Quando descobrir o que seu suspeito vai fazer
é sua obrigação se antecipar a ele,
chegar ao local antes que o crime aconteça.
Se quiser descobrir o que ele está tramando
ou pensando será melhor persegui-lo.
Se possível entre o repetido
e o simultâneo.
Por terraços,
esquinas, destroços, seguir e
seguir até que não exista diferenças entre
vocês, dizia meu avô, inspetor de polícia.
Pistas falsas, velocidade, solidão. Atrás dele
não para pensar como ele, mas por ele –
me perder onde se perdeu, parar onde
parou, ver o que viu. Ah os dias
– todo o nosso esforço resumido
nessa idéia da sombra, salvo
engano, seu sentimento de
pertença. Um peso, duas
medidas, quantas
desculpas.
Nessa hora
quando tudo parecer sem razão
ou regresso, quando a procura
não for mais que descompasso e divisão,
nada de espanto. A telepatia, como se vê,
limita-se às bebidas mais baratas,
conduz ao amor, às suas cidades.
As estrelas no céu não querem dizer
nada para você, elas são um espelho
Martin Rivera segurou o tenente
pela gola da túnica e, mão direita,
empurrou o canivete rins adentro.
O jovem oficial soltou um grito, largou
a pistola, mãos trêmulas, à altura do peito.
Cada um abandona o que pode e as horas
se descolam por generosidade ou fastio.
Rivera arrancou o objeto e logo tornou
a cravá-lo. As pernas do tenente vergavam,
ainda estava caindo de joelhos quando
recebeu o terceiro golpe enfim nas costas.
Talvez não passasse de uma coincidência
e então a balança que decide de que lado
estamos – o dos que perderam quase tudo
ou o dos que apenas perderam muito – opta
pelo empate, o resto são só frases feitas.
Martin Rivera soltou o oficial que caiu
para frente, cara enterrada na areia.
Já agachado e olhando-nos pela primeira
vez, limpava a lâmina no uniforme da vítima.
Impressionante, a espionagem tinha ensinado
muito àquelas quatorze pessoas. Se alguma
coisa sentiam, só mesmo elas poderiam dizer.
Até porque a partilha, essa inquietante
precariedade, com certeza não explica
o rastro em que se assentam nossas vidas.
Depois de levantar um pouco o homem pelos pés,
Rivera em vão o arrastou pela a areia, iria deixá-lo
próximo da água. A dignidade das imagens,
sabíamos, crepita num lugar de difícil localização
entre o passado e os dias futuros.
É claro, naquela noite não seria diferente.
Na luz que a lua permitia, consultou o relógio:
tinha ido se sentar nas pedras quando
finalmente compreendemos o que estava em jogo.
O espião janta conosco
Como os antigos, mas sem sua elegância
a coisa começa bem na metade. Zé Ramalho
fez a canção que talvez seja a canção mais
Roberto Carlos que já ouvimos, Aquelas Ondas.
Quanto tempo temos antes de voltarem? Pelo sim,
pelo não, Roberto acabou deixando-a de lado.
O mesmo aconteceu com Gilberto Gil,
Se eu quiser falar com deus também não fez
a cabeça do rei – folgar os nós dos sapatos
e da gravata não acontece da noite para o dia.
Ano, 1976, contracapa do disco San Remo 1968:
O Show Já Terminou da dupla Roberto e Erasmo
esconde uma historinha particular só agora
revelada por RC, diz Big Boy. Então sobre a que talvez
seja sua mais bela canção assim fala Roberto:
Sou fã incondicional de Tony Bennet – quando
fiz essa música, eu já imaginei inclusive a versão
dela em inglês com Tony Bennet cantando... e
comecei a fazer a música especialmente para ele
– é lógico que depois eu cantei do meu jeito... mas
ela começou de uma ideia pensada na voz do Tony,
que na minha opinião é o maior cantor do mundo.
Também acho Tony Bennet o maior cantor
do mundo. E, embora bem menos do que gostaria,
acredito também na possibilidade de uma ideia
pensada na voz do outro, mesmo que do nosso jeito.
Não importa quem gravou o quê nem para quem
fazemos o que fazemos. Que bom que uma ideia
pensada na voz de outro ainda é uma ideia pensada
na voz do outro. Aliás, uma vez me disseram,
não lembro quem, que vítima e carrasco disputam
o mesmo tempo. Pouco importa, queridos fantasmas,
dezembro está aí e evitar mal-entendidos é que é bom,
venho repetindo isso para mim mesmo todos os dias,
embora eu ainda não consiga abrir mão de duas
ou três segundas intenções, que até hoje, acho,
nunca fizeram mal a ninguém. Muito pelo contrário,
é justamente isso o que mais tem nos aproximado.
*
Leonardo Gandolfi nasceu em 1981 no Rio de Janeiro, onde trabalha como professor. Publicou os livros No entanto d’água (7letras, 2006) e A Morte de Tony Bennett (Lumme Editor, 2010). Participou das antologias Tránsito de Fuego (Venezuela), Poesia Brasileira do Terceiro Milénio (Portugal) e Tigertail Brasil Issue (EUA).
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