Quamquam ridentem dicere verum quid vetat?
Horácio
MEMORIAL DOS MUITOS DESCENDENTES DE DOM BIBAS, BUFÃO NA CORTE DE AFONSO HENRIQUES NO CASTELO DE GUIMARÃES, DURANTE A BATALHA DE ALJUBARROTA, SEGUNDO ALEXANDRE HERCULANO
caçoar é lançar a isca sem jamais içar o ranço, um ranger de roldana entre os ramos. de uma árvore multifrutífera, moída pela polia presa a um gancho. caçoar semelha um canto. às vezes estridente e lúgubre, aparelhado a guizos, áspero de ferrugem e nervosismo. e entretanto lindíssimo. caçoar dissolve o mau jeito no disfarce do embaraço de quem pela vitrine atalhe. caçoar incomoda aborrecidos e covardes. e os bajuladores mais convictos. caçoar sugere o indizível entre sorrisos (ridentem dicere verum): caçoar consagra os tolos mais espertos.
é ministério reservado às almas finas, ansiosas pela aparição da quarta crítica, a de um Kant à maneira bizantina. caçoar procura ser suave, doce água de melissa, dolência aparentemente inofensiva. mas de aniquilação célere e mortífera, embora suas armas até pareçam impróprias: a criadagem e a galhofa. caçoar prodigaliza a causa nobre, sem medo do ridículo e seus escroques. a graça do grotesco é o favorito esporte: do humorista, do palhaço, do truão, do saltimbanco e do comediógrafo que tem Aristófanes por decano. mas há quem só veja na sátira o satânico, uma caldeira sobre flamas. no fundo, ledo engano: o cômico é o riso e o brinquedo da criança.
caçoar distribui a merenda de Momo na farra dionisíaca, o hidromel e a olímpica ambrosia. porém quem caçoa sempre se arrisca ao evitar censores e listas proibitivas. caçoar envolve a sagacidade de uma arte que pode virar fardo. é sabença dos homens de índole indomável, aqueles que só se curvam sabendo-se mais altos: o curinga (carta 13 do baralho), o homem que ri de Victor Hugo, o bobo da corte, o mímico mudo, o enforcado ou o louco com chapéu de asno. com todos eles, cuidado.
O VERSO (ANDAR)
contra o fluir da frase
o verso é a volta
à outra ponta onde
a ideia se forma
não (só) da história
que se conta
como da estrofe
que se canta
o verso é contra
e contudo anda.
A RIMA (FICAR)
o erudito sema
ou sua roça: semente
flor que o verbo vivo
enterrado esplende
espargido em sopro
o grão aflora no retorno
e outra vez germina
determinando um ciclo
a rima inventa o ritmo
eco e cio dos interstícios.
OS NOVOS BROQUÉIS
dito um certo oblíquo
de requintes despojado
sem as maneiras finas
do nu e do calvo
libidinoso e dissoluto
feito um fauno
ou antes mesmo um tarado
que se apresenta inconveniente
(de pau duro e pelado)
que atinge de través
como a cilada inevitável
que não é de quina perfeita
como o canto do esquadro
que chega bicudo e hostil
como o cotovelo do gaiato
que alvoroça e aterroriza
a sentinela em sobressalto
que brandindo seu escudo
enfim revida o atentado
mas não um escudo muro
dos de imenso anteparo
e sim um bem pequeno
a bem dizer discoide ou ovalado
um escudo então redondo
(sem as coberturas do biombo)
que para se exprimir corretamente
remove o pó da palavra broquel
– a mesma dos Broquéis de Cruz e Sousa:
um escudo ágil e de estreita loisa
que traz no centro de sua calota
uma ponta muito aguda
(por isso dita broca)
recurso derradeiro de quem
surpreendido sem seu gládio
conserva na própria defesa
o rechaço do adversário.
AS FALOFÓRIAS
aquela era uma outra pele que ao toque dissesse
é de carne o que guardam esses segredos que ardem
duas garras no dorso quando aos gritos tudo se parte
são as ganas do mais quando mesmo tudo já tarda
e não temas: essa carne já alimentou outras almas
eram refregas de Baco pela Pérsia e savanas da Ásia
ditirambos entoados por faunos com pés de cabra
eram ninfas sorvendo um rebanho de Almateias
todas ansiosas por Dionísio surgindo das selvas
e Dionísio enfim aportava com seu toque de tirso
espargindo o mesmeriano néctar do seu prestígio
eram as falofórias, festejos proibidos a eunucos
as festas da fertilidade celebrando seus frutos
os rebanhos e as vinhas e os favos melífluos.
O JOVEM PENSADOR
meditando
um vetusto
palimpsesto
arrebatara
o seu conceito
e qual inseto raro
demonstrava-o
na polpa do dedo
dizendo ei-lo
e por saber
(embora efebo)
de certos hábitos
do escaravelho
reclamava-se
peripatético
ao desdenhar
do pensador
de cotovelo
no joelho
e mão direita
sob o queixo
dizia-o à espera
de um laxante
fazer efeito.
TELEJERICÓ
belzebus
sulfúricos
e pragas
egípcias:
ameaças
horríssonas
arrepiando
pela espinha
todas elas
reforçadas
por prédicas
rebarbativas
adaptadas
aos tempos
da brilhantina
novos óvnis
para ovinos
de inapetência
soporífera:
Hades dessas
e de outras
cercanias.
A FALA E A FOLHA
a fala exala, a folha fixa
o som sepulta, o livro ressuscita
a escuta deduz, a leitura explica
a conversa à-toa, a carta suicida
a eloquência alarga, a letra limita
a verborreia evacua, o conto constipa
o arauto proclama, o in-fólio publica
o adágio sugere, o compêndio doutrina
o branco olvida, o pergaminho eterniza
o dialeto meteco, a tradução peregrina
o depoente alega, o escrivão certifica
o tribuno improvisa, o assessor requinta
a voz abafa, o símbolo designa
o belo timbre, a letra na linha
o papo rola, o ponto pinga
o que se perde, o que se pagina
a lenda reza, o papiro decifra
o dito adeja, o volante aterriza
o repente inventa, o cordel sextilha
o rumor inocula, o jornal dissemina
o eco repete, a traça aniquila
a pronúncia elide, a correta grafia
o senhor & o escravo, a casta do escriba
o Minotauro do ouvido, o Teseu da pupila
a testemunha jura, o falsário assina
quem se degola, o que vira cinza
o sermão prega, a bula pontifica
o comentário tece, a crítica desfia
a língua lambe, o texto mandíbula
o lábio sibila, o acento na sílaba
o chinês diz, o ideograma imagina
o primata grunhe, a gruta se pinta
o papagaio imita, a prensa procria
o palato impele, a cunha na argila
o sertão gera, o Rosa ajardina
o verbo tricota, a escrita escumilha
[ou quando a folha e a fala:
a pauta prevê, o cantor modifica
a lauda calcula, o locutor recita
a glosa aclara, o narrador neblina
o pasquim revela, o porta-voz ludibria
a gramática arruma, o povo rebuliça
o que leva aspas, o que se vernaculiza
o cego apalpa, o surdo fita
o braile perfura, a mão pantomima
a tinta mancha, o silêncio faxina
a tábua manda, o pastor homilia
a regra depura, a babel mestiça
o suposto luxo, a dita pacotilha]. |