ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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MARCUS FABIANO GONÇALVES

 

 

 

 

Quamquam ridentem dicere verum quid vetat?
Horácio

 

 

MEMORIAL DOS MUITOS DESCENDENTES DE DOM BIBAS, BUFÃO NA CORTE DE AFONSO HENRIQUES NO CASTELO DE GUIMARÃES, DURANTE A BATALHA DE ALJUBARROTA, SEGUNDO ALEXANDRE HERCULANO

 

caçoar é lançar a isca sem jamais içar o ranço, um ranger de roldana entre os ramos. de uma árvore multifrutífera, moída pela polia presa a um gancho. caçoar semelha um canto. às vezes estridente e lúgubre, aparelhado a guizos, áspero de ferrugem e nervosismo. e entretanto lindíssimo. caçoar dissolve o mau jeito no disfarce do embaraço de quem pela vitrine atalhe. caçoar incomoda aborrecidos e covardes. e os bajuladores mais convictos. caçoar sugere o indizível entre sorrisos (ridentem dicere verum): caçoar consagra os tolos mais espertos.

 

é ministério reservado às almas finas, ansiosas pela aparição da quarta crítica, a de um Kant à maneira bizantina. caçoar procura ser suave, doce água de melissa, dolência aparentemente inofensiva. mas de aniquilação célere e mortífera, embora suas armas até pareçam impróprias: a criadagem e a galhofa. caçoar prodigaliza a causa nobre, sem medo do ridículo e seus escroques. a graça do grotesco é o favorito esporte: do humorista, do palhaço, do truão, do saltimbanco e do comediógrafo que tem Aristófanes por decano. mas há quem só veja na sátira o satânico, uma caldeira sobre flamas. no fundo, ledo engano: o cômico é o riso e o brinquedo da criança.

 

caçoar distribui a merenda de Momo na farra dionisíaca, o hidromel e a olímpica ambrosia. porém quem caçoa sempre se arrisca ao evitar censores e listas proibitivas. caçoar envolve a sagacidade de uma arte que pode virar fardo. é sabença dos homens de índole indomável, aqueles que só se curvam sabendo-se mais altos: o curinga (carta 13  do baralho), o homem que ri de Victor Hugo, o bobo da corte, o mímico mudo, o enforcado ou o louco com chapéu de asno. com todos eles, cuidado.

 

 

 

 

 

 

O VERSO (ANDAR)

 

contra o fluir da frase

o verso é a volta

 

à outra ponta onde

a ideia se forma

 

não (só) da história

que se conta

 

como da estrofe

que se canta

 

o verso é contra

e contudo anda.

 

 

 

 

 

 

A RIMA (FICAR)

 

o erudito sema

ou sua roça: semente

 

flor que o verbo vivo

enterrado esplende

 

espargido em sopro

o grão aflora no retorno

 

e outra vez germina

determinando um ciclo

 

a rima inventa o ritmo

eco e cio dos interstícios.

 

 

 

 

 

 

OS NOVOS BROQUÉIS

 

dito um certo oblíquo

de requintes despojado

sem as maneiras finas

do nu e do calvo

libidinoso e dissoluto

feito um fauno

ou antes mesmo um tarado

que se apresenta inconveniente

(de pau duro e pelado)

que atinge de través

como a cilada inevitável

que não é de quina perfeita

como o canto do esquadro

que chega bicudo e hostil

como o cotovelo do gaiato

que alvoroça e aterroriza

a sentinela em sobressalto

que brandindo seu escudo

enfim revida o atentado

 

mas não um escudo muro

dos de imenso anteparo

e sim um bem pequeno

a bem dizer discoide ou ovalado

um escudo então redondo

(sem as coberturas do biombo)

que para se exprimir corretamente

remove o pó da palavra broquel

– a mesma dos Broquéis de Cruz e Sousa:

um escudo ágil e de estreita loisa

que traz no centro de sua calota

uma ponta muito aguda

(por isso dita broca)

recurso derradeiro de quem

surpreendido sem seu gládio

conserva na própria defesa

o rechaço do adversário.

 

 

 

AS FALOFÓRIAS

aquela era uma outra pele que ao toque dissesse

é de carne o que guardam esses segredos que ardem

duas garras no dorso quando aos gritos tudo se parte

são as ganas do mais quando mesmo tudo já tarda

e não temas: essa carne já alimentou outras almas

                                                                                    

eram refregas de Baco pela Pérsia e savanas da Ásia

ditirambos entoados por faunos com pés de cabra

eram ninfas sorvendo um rebanho de Almateias

todas ansiosas por Dionísio surgindo das selvas

 

e Dionísio enfim aportava com seu toque de tirso

espargindo o mesmeriano néctar do seu prestígio

eram as falofórias, festejos proibidos a eunucos

as festas da fertilidade celebrando seus frutos

os rebanhos e as vinhas e os favos melífluos.

 

 

 

 

 

 

O JOVEM PENSADOR

 

meditando

um vetusto

palimpsesto

arrebatara

o seu conceito

e qual inseto raro

demonstrava-o

na polpa do dedo

dizendo ei-lo

 

e por saber

(embora efebo)

de certos hábitos

do escaravelho

reclamava-se

peripatético

ao desdenhar

do pensador

de cotovelo

no joelho

e mão direita

sob o queixo

 

dizia-o à espera

de um laxante

fazer efeito.

 

 

 

 

 

 

 

TELEJERICÓ

 

belzebus

sulfúricos

e pragas

egípcias:

ameaças

horríssonas

arrepiando

pela espinha

 

todas elas

reforçadas

por prédicas

rebarbativas

adaptadas

aos tempos

da brilhantina

 

novos óvnis

para ovinos

de inapetência

soporífera:

Hades dessas

e de outras

cercanias.

 

 

 

 

 

 

A FALA E A FOLHA

 

a fala exala, a folha fixa

o som sepulta, o livro ressuscita

 

a escuta deduz, a leitura explica

a conversa à-toa, a carta suicida

 

a eloquência alarga, a letra limita

a verborreia evacua, o conto constipa

 

o arauto proclama, o in-fólio publica

o adágio sugere, o compêndio doutrina

 

o branco olvida, o pergaminho eterniza

o dialeto meteco, a tradução peregrina

 

o depoente alega, o escrivão certifica

o tribuno improvisa, o assessor requinta

 

a voz abafa, o símbolo designa

o belo timbre, a letra na linha

 

o papo rola, o ponto pinga

o que se perde, o que se pagina

 

a lenda reza, o papiro decifra

o dito adeja, o volante aterriza

 

o repente inventa, o cordel sextilha

o rumor inocula, o jornal dissemina

 

o eco repete, a traça aniquila

a pronúncia elide, a correta grafia

 

o senhor & o escravo, a casta do escriba

o Minotauro do ouvido, o Teseu da pupila

 

a testemunha jura, o falsário assina

quem se degola, o que vira cinza

 

o sermão prega, a bula pontifica

o comentário tece, a crítica desfia

 

a língua lambe, o texto mandíbula

o lábio sibila, o acento na sílaba

 

o chinês diz, o ideograma imagina

o primata grunhe, a gruta se pinta

 

o papagaio imita, a prensa procria

o palato impele, a cunha na argila

 

o sertão gera, o Rosa ajardina

o verbo tricota, a escrita escumilha

 

[ou quando a folha e a fala:

 

a pauta prevê, o cantor modifica

a lauda calcula, o locutor recita

 

a glosa aclara, o narrador neblina

o pasquim revela, o porta-voz ludibria

 

a gramática arruma, o povo rebuliça

o que leva aspas, o que se vernaculiza

 

o cego apalpa, o surdo fita

o braile perfura, a mão pantomima

 

a tinta mancha, o silêncio faxina

a tábua manda, o pastor homilia

 

a regra depura, a babel mestiça

o suposto luxo, a dita pacotilha].

 

 

*

 

Marcus Fabiano Gonçalves é gaúcho e mora no Rio de Janeiro, onde é professor da Universidade Federal Fluminense. Em 2012 publicou o seu segundo livro de poemas, ARAME FALADO (7Letras). Mantém o blog Arame Falado no endereço marcusfabiano.wordpress.com.

 

Leia outros poemas do autor.

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