MICHELINY VERUNSCHK
Traz o teu encanto
de cidade perdida
junto ao meu peito
pois nos meus mapas e manuscritos
não te encontro.
E talvez só no teu corpo
exista a chave
que te decifre
– ou me devore.
TRÓIA
Toda saudade
repousa nas palavras,
tem cheiro de pinho
e ossos muito brancos.
Toda saudade:
velas arriadas
dos mastros dos batéis,
última visão da chama apagando,
canção de helenas nuas
perdida nos lábios de Ílion.
Em tudo,
o teu nome de pedra,
Saudade,
cadela morta.
ARRECIFE
Desse ponto
partem distâncias imaginárias
que contam
das reais distâncias entre nós.
Um homem posto
à frente de uma janela
é o fantasma de si mesmo
suspenso por linhas
e cores improváveis.
Somos ele
e ele é todos nós
como se não fôssemos
(ainda)
a cidade
em seu entorno.
Somos ele
e seus ombros caídos.
Somos ele
e seu rosto roído pelos peixes.
Somos ele
e as ruas estreitas
que o cortam
e que nele se impalam
como postes
travas
e outras saudades sem sentido
(como qualquer outra saudade).
Uma estátua
observa
a constelação das águas.
Sua roupa cinza
se agita
e veste por um instante
a pele nua do rio.
O homem se agita
e com ele
a cidade costurada
em nossas carnes.
Tudo cabe num selo
ou num trago de cigarro.
Tudo cabe no verde
mais próximo do branco.
Tudo brada:
relógio ensadecido.
Somos o real
e nada somos.
E isso é tudo.
COLISEU
Os carros rugem.
Espera de arenas, o círculo das batalhas.
A cidade se oferece: carne.
Abre a sua guarda
e os leões colidem,
esfomeados.
Hostes e dentes,
o seu nome é Legião.
O MURO
No muro de pedra
a pedra
o lodo
a hera.
O muro:
um ovo que se quebra
um touro na arena
um livro contra a tarde.
O muro:
a pedra contra a face.
BIOGRAFIA
Nasci de um abismo
e nele me equilibro.
Tudo desmedido.
Tudo voraz.
Tudo a boca de uma grande loba
[estrela em pêlo de caranguejeira].
Tudo essa teia
de saliva e luz negra.
Tudo esse uivo de danceteria
viaturas
bairros sujos.
Tudo um delay de mim
multiplicado por mim.
Tudo esse tiro
[um ou dois estampidos?]
esse giro
essa queda
esse fim.
O LEÃO
Flor carnívora
ele aquece a paisagem:
sol sobre cinzas
sal
sugem.
Apenas uma carícia
cabe no seu nome,
faro aceso
a contrapelo,
e uma mulher de luz
chupa-lhe o mastro.
Simétrico e circular,
o seu rugido
fere tulipas,
pequenos coleópteros,
enche copos, cálices, calas.
Ácido e doce
amamenta todas as suas fêmeas.
Depois dorme,
cidade inexistente.
*
Micheliny Verunschk, poeta e historiadora, nasceu em Recife (PE), em 1971. Publicou os livros de poesia Geografia Íntima do Deserto e O Observador e o Nada, ambos de 2003. Tem inédito A cartografia da noite, que será publicado na coleção Caixa Preta, da Lumme Editor.
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