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NUNO JÚDICE

 

 

ESCRITA

Num verso começo o que o verso
acaba; e no seu reverso acabo
o que ele começa. Mas se o verso
se prolonga para onde não acaba,

é noutro verso que começo o que
o verso não disse. De um verso
a outro é outro o reverso do que
diz o verso, e quando acabo de o

dizer é já noutro verso que acabo
o que num verso começa. Por isso,
sem verso nem reverso, o poema

passa por cima de cada verso, e é
ele que acaba o verso quando, no
seu reverso, se vê o fim do verso.

 

O PÃO DO TEMPO

Diziam-me que amanhã seria o primeiro dia
depois de amanhã em que não seria preciso
pensar no que há para fazer, nem em fazer
o que há para pensar. Deixei correr o tempo; e
as coisas avançaram sem que amanhã chegasse,
e sem que depois de amanhã me pudesse
lembrar que tinha de pensar no que havia
para fazer. Juntei todas estas coisas no alguidar
do poema, onde a massa dos instantes
fermentava. O que eu tinha de fazer
era pensar em metê-la no forno da eternidade,
depois de bem amassada; mas esqueci-me
de o fazer, e quando voltei ao poema
a eternidade estava cheia de um musgo feito
das horas e minutos que eu perdera a pensar
noutras coisas. Ainda espreitei o forno:
mas a lenha ardera até se transformar em
cinza, e um fumo efémero dissipava-se
no céu estranho desta memória de amanhã.

 

FIM DE ANO

Na aldeia deserta, à noite, à porta
de uma taberna onde não havia ninguém,
a mulher nova procura uma luz que a
abrigue. Está imóvel, como se pelo rosto não
passasse mais do que a sombra que
nem a manhã irá dissipar. Os braços
caídos dão-lhe uma aparência de pose
para uma estátua que se poderia chamar
angústia, ou indecisão; mas a boca
cerrada tem uma força que afasta
essa primeira imagem, e me leva a
perguntar por que é que não sai
dali, da aldeia deserta, e não entra
na taberna para se libertar da noite,
ou não segue o caminho dos homens
que procuram a cidade. A mulher nova,
porém, não sabe que eu penso no seu
destino; e limita-se a procurar uma luz,
com os olhos, para se libertar da sombra
e afrontar a vida com o seu rosto
de lábios cerrados no segredo que
adivinho.

 

POEMA A UMA NOITE

Empurro a noite para o lado, tiro-a da minha
frente, e ela insiste em não sair; mas encosto-a
contra  a parede, e a noite começa a desaparecer,
sugada pelo branco da cal, até nada ficar dela senão
um fantasma de lua no azul deste céu que
ocupa todo o espaço sobre a minha cabeça, e
cujo peso me empurra para o chão. Tento
levantar-me; mas os meus braços não resistem
ao peso do azul, e dobram-se, enquanto a terra
se abre para me oferecer o seu refúgio. Porém,
que irei eu fazer no interior da terra, por entre
vermes e raízes? E deslizo entre o céu e
a terra, em busca da noite que fiz desaparecer.

 

*

Nuno Júdice (1949) é poeta e ensaísta. Publicou seu primeiro livro, A noção do poema, em 1971.

 

Leia mais poemas de Nuno Júdice e uma entrevista com o autor.

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