ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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ROBERTA FERRAZ

 

 

  

 “Tudo que fere Deméter também fere Dioniso”

      (Calímaco, Hino à Deméter)

 

 

 

I

SAPHO

                       

A  Sophia, à Dora

 

 

“... e perto dos templos derruídos,

a respiração do velho Mar...”

(Dora Ferreira da Silva, Hídrias)

 

 

Cabeça amendoada inclino-me ao seio

festejo silêncio e brecha

vento abrindo o véu que o guardava

pende o tecido em oferenda e eu

inclino-a e acendo

um riso ensimesmado

 

o que perturbaria?

o colar de ouro o colo

cravejado com juras e sinais

a serpente aninhada ao pulso

o gesto de estar

sedutoramente para dentro

sentada neste penhasco e tendo

a calda do tecido ventando em mim –

o mar

satisfeito

 

com lira ao lado

a antiga tartaruga de Hermes

o gozo fundo de Apolo,

Sapho

 

faixa nos cabelos, prensas

fivelas a deixar livre o pendor

de tecer sobre os ombros

costas delicadas seios

um coração dependurado em cada

escuta, e é em ti que movo

mar amante

 

dentro de mim entregue refeito

apareço a sorrir – e olho-te

não vês que olho

 

e diretamente só olho a ti

 

(ao redor da estátua

Outra mulher sedenta do contato

– primeiros olhos de ressaca –

fixa taxativa, a negação aos visitantes:

o pólen de guardar o tempo, dentro de caixas

brancas e ameaças

as substâncias incólumes

o interdito do tato

a macular as estátuas)

 

 

o rosto um triângulo

os cabelos trigais adocicados

e é em mim que me chamo

chamando-te mar

amante

leda mão absolutamente

em concha

sabe o fim das pernas

coleadas  em mel, hastes

de vime e vinha, urna ritualística

do desejo

 

ser este poço em perfeita calma

culminada de estratégia e de perícia

címbalo convulsivo, pedraria alva

serpente em  riste a untar um pulso

antes ou depois de cantar

antes ou depois que cante

canto azul marinho, pinheirais, distância

e clara

 

repousa a natureza a satisfazer-me em sono

 

repleta de iguarias

o olhar marmóreo o busto

ao contrapelo do tangível

lira cornucópia de um couro

exposto e esconso

feito para ti e de ti oculto

 

são sete as cordas da lira

e o labirinto no casco que

o colcheio do som abriga

 

invento

um rio com apenas este gesto

uma inclinação de cabeça, um Tejo

este aprumo de puro arder

 

estrondo mortalmente silencioso

dedico-te ou me olho

ao busto meu levemente ácido

no vento alto desta falésia

não saberás?

 

tem ainda a lira Dioniso

seus cachos rugidos escorrendo

pela lateral do leste

 

ergue firme mão direita e circunda

a taça a qualquer imagem que voe

e agrada sentar-se ali nos despojos

de uma cria de pantera, homens e mares

junto à mão, a taça

à cintura, dentro dela

bebendo

o pássaro entusiasmado

 

é esta a pureza das pombas

 

curvar-se alta para o poço

do que impele Baco

atrás de ti, Sapho

de mim, à frente

desmembrada a querela dos triângulos

nas noites quentes longas afiadas

nus em bosque indistinto

e sagradas

 

a taça de Dioniso o ventre

de Sapho a lira

de uma noite

inquebrantável

 

protejo, projeto, não saberás

se ajeito os olhos no colo do firmamento

ou se fito quão longe do mar

o repouso agitado de teus membros

 

não saberás, tenho os olhos claros

 

e este declive em minha face

 

enlaça dedicada maneira

de entoar a lira com a lira

deitada ao lado

 

 

 

 

II

OFÍCIO MÊNÁDICO I

 

 

Quando pões-te galgo ininterrupto

                        vigilância do corpo       

                        erodindo o corpo

teu olhar esférico rodeia meu flanco

enxaguado dos tempos

tu me banhas rodopiando

            os quadris siameses

e te arranho a órbita dos milagres

 

então o assomo

            o nunca pensado

chego em teu perto

e nos fitamos

 

                        quem é esse

                                   que é outro

                                   que me desce

                        absorto sem ciência

                        conduto doutro corpo

                                   ao corpo meu

                                   meu horto

 

                        então o assombro

                        luminescência do

                                               deus?

                       

no teu gozo

            reconheço-me

a outra ainda 

eu

 

 

III

SAPHO

 

 

O meu amor, quando é amor

é excesso

E morre

 

Um pé sobre o penhasco

abaixo todo o mar

centrípeto

 

sua sombra, volume

de pender o fundo

vermelhidão e escolha

 

Expande o delírio

feminino

ininterrupto

o mar de suas mulheres

seus ramos do escuro

 

Entre o lábio e a sola

a precisão do penhasco:

raja os amores

o sexo

o manto

 

meu amor, quando é amor

é excesso

E morre

 

 

 

IV

A SIBILA

                                     à Renata

 

 

Ali me retenho

talhe estendido e rente

um corcel roçado em novelos d’ouro

um casaco vermelho com capuz

líquido

passava

 

no ínterim

entre os mamilos

segundos

uma urze branca

violácea é coroada

- imagem de um intervalo

em ti deitado

nu retido lasso

 

Sobrevive uma espécie

obelisco das lendas

espécie hídrica dilatada

o teu rodar

destinado à crivação de ventanias

 

Ali me escuto estar

em harpas devotas

dos encaixes

encosto-me em tua sede

movo-me

já brota em meu segredo

uma asa fluorada na qual o escudo

revela o barco onde começamos

 

Água, ardente

 

 

V

SELO

 

Álamos brancos

Visto-os sobre a pele molhada

Enrolo nos cabelos

Tachos das figueiras e seus galhos

Seguram a vastidão

 

A tarde ficou fechada

Morta eu selo minha substituta

Onde reencontro

 

Uma luz de ouro fria

Pousa sobre o corpo recomposto

O amarelado sopro aquieta

O redor

Há o somente de uns pássaros

Já distância, piando

À transformada

Solar desço ao serviço

O bosque assemelha

A face de minha aparição

 

Eu

acompanho as lobas

e as esfinges

aplacadas

 

Eu retomo

o meu segredo

 

 

VII

CRETA

 

 

impresso em naus a mão e o selo, labirintos

a tinta, gramatura de vasos e carne o papel

para o registro de uma via irretocável

 

queimo pálpebras nos dedos, confuso

este sinal enrodilhado

 

calejo com verdes fôlegos o calcário

do segredo

 

e nem sempre, ao fim

me safo

 

 

 

 

*

Roberta Ferraz nasceu em São Paulo, em 1980. Estudou Letras na PUC-SP e História na USP. Publicou em 2003 seu primeiro livro, de contos, Desfiladeiro, pela Editora Nativa. É mestre em Literatura Portuguesa, pela USP. Ganhou em 2008, na categoria Texto, o prêmio do Programa Nascente da USP, com seu livro lacrimatórios, enócoas, publicado em 2009 pela Oficina Raquel. Atualmente, escreve, junto com Érica Zíngano e Renata Huber o livro fio, fenda, falésia, com apoio do ProAc 2009, que terá lançamento em dezembro. 

 

Leiam também um ensaio da autora sobre Ana Cristina César.

*

 

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