PALHAÇO DA BOCA VERDE
esqueci de perguntar
o que há entre você e o medo
entre o medo e eu
há duas décadas
entre o medo e eu
uma parábola
entre o medo e eu
duas almôndegas
entre o medo e eu
partículas sólidas
entre o medo e eu
dois nomes, a custo ditos
entre o medo e eu
tocar a própria carne
(não vê? duas personagens
- o palhaço, a puta – refratam-nos
que borra será de nós
mais tarde ou cedo?)
entre eu, o medo e o sol
o radioso cometa
de teu sorriso
descreve a elipse
BACH
no mangue, mais perto do fluxo do rio
das estrias nas conchas, da pinga
de chuva sobre a areia das dunas
—translúcida água de restingas
com lodos, seixos tal qual ou o pavio
das estrelas na lua nova ou na tuna
as aquosas rubras flores em agosto—
assim a música de joão sebastião
luz não sobre vidro, mas sobre rosto
de água, espelho que olhar só convém,
a saber, porque nada pode ser mais irmão
de tudo que é mundo a despeito do homem
DEPOIS DE CELAN
Tempo depois tempo,
A traça roeu a grua:
Se os dois, em banimento,
Os retalhos da charrua
Não sulcam a terra do tempo.
Ou colam o halo da lua.
DOIS HAIKAIS E UM EPIGRAMA DISFARÇADO DE HAIKAI
só se pode atar
o antes ao depois, se o fio
do afeto luzir nos dois
a lua-cheia sobre
as dunas flutua:
qual das du(n)as é mais lua?
o único problema quando
estamos sós
é que não há nó maior que nós
SOBRE UMA FOTO DE F. AOS VINTE ANOS
O mar, o píer, a moça e seus descalços,
Na luz da tarde que brota de seus olhos,
Seus pés pisando as tábuas em falsos
Passos: ela flutua acima dos abrolhos.
Tudo converge para o xis dos braços
Onde de novo o dia nasce em portefólio—
Como se conseguisse os próprio traços
D'água da tarde, ganhados de espólio.
Ela está onde a cidade se equilibra
Sobre o mar com um petroleiro à deriva
Num sem andar que move mais que a vida—
A resolução da foto não retem sua fibra.
Nela, tudo balé, milagre, céu, saliva,
E, atrás, o Atlântico é só sua jazida.
UMA IDÉIA
[PASTICHE MODERNISTA]
Passei a noite pensando uma idéia.
Era tão obsedante que eu não ouvia
o rumor do vento nos galhos da goiabeira.
Não tinha mais filhas.
De uma prece, não lembraria.
Ou se lembrasse, a prece cairia
no fosso, antes de atravessar a muralha.
Fiquei nu com essa idéia.
Ela roubou meu corpo.
Retirou minha necessidade de água.
Fumou todos os meus cigarros.
Ocupou meu sono como
uma girafa chama o olho da criança no zôo.
Pus-lhe sob vários prismas.
Olhei-a com as pernas presas ao trapézio.
Mas ela revidava lá, abaixo
e engolia fogo.
Tentei em vão extingui-la;
cresceu, labareda.
Retorceu o meu passado
e dele coou café e insônias.
Mas quando pensei tomá-la na mão
—como se toma o lápis ou a seda—
ela me disse que não, sem rastros.
Então, a borra da noite cedeu à luz inevitável.
A clara manhã é bem-vinda. |