ZUNÁI - Revista de poesia & debates

[ retornar - outros textos - home ]

 

 

SÉRGIO MEDEIROS

 

 

 

 

O NORTE DA ILHA

 

O primeiro a emergir

Alguém vê o mar

Cada vez que Alguém se senta para olhar o mar, chove

Gotas

Depois, aguaceiro estrondoso

No céu nuvens espessas

Um azul claro ocasional

 

Alguém senta-se e levanta-se

Foge lépido

Ao longo do dia

E à noite também

 

Vence

Sentava-se no banco antes da chuva cair

Ela cai...

Atrasada

 

Outra chuva

Cones se afundam em si mesmos

Ao redor, pontos mínimos

Correm para todos os lados

Voam como pó

Pó que os cones de água, caindo, levantam

 

Na chuva, a lona alaranjada parece dura como pedra

Inteiramente amassada, as arestas afiadas

 

A água equilibra-se na amurada

Pequena lagoa, estremece sem parar

 

Som de papel seco que se amassa

 

O mar se afunda na chuva

Efervescente, desce

 

A baía escurece

 

O primeiro, numa pesada capa, aproxima-se

Em pé num barco

Como num andor em ombros parelhos

Oscila levemente

 

O segundo

O segundo maneja duas pinças

Puxa folhas secas na grama

De repente ergue no ar uma pinça

Penetra um galho de árvore

Derruba folhas murchas

Ou colhe frutas maduras

 

O terceiro

Luva carcomida

A ponta visível de um dedo

Pele clara

Manchada como a lua

 

No pescoço uma trouxinha

Como uma garça voando 

Levemente empoeirado

 

Prepara o jantar

Cogumelos na água fervente

São tartaruguinhas antigas, secas

De repente os cogumelos se mexem

São velhas frutas do conde, pequeninas

De casca dura, explodem

Espojam-se numa poça de líquido escuro

 

O cogumelo se revira, sua haste para cima

Tira solta de uma sandália

Uma coisa redonda, de fibra

Miniatura apodrecida

 

O terceiro vira-se rápido

Sua sombra longa se afasta lentamente

Como um líquido que a terra sugasse

Mastiga cogumelos fumegantes

 

O quarto

Seria um rito

O quarto se transfigura no raso  

É aranha

Chuta a si mesmo da teia, teatralmente

 

Dá coices na espuma

Uma vedete no mar

 

Suas patas se trançam firmemente

Anula-se a insinuação de qualquer separação  

 

Algas rudes lhe fazem cócegas

 

O quarto finge-se de morto na lâmina da água

Esconde as longas antenas

Ou as torna transparentes

O corpo se imobiliza

Ou se enrijece facilmente

 

O quarto volta à vida

Desloca-se de antenas em pé, altos estalidos

 

O quinto

... encontra o quarto

 

O quinto sai de uma caixa d’água com calça tremulante

 

Em pé no alto de outra caixa d’água, muito magro, o quarto

Veste camiseta azul frouxa

Parece imerso até o pescoço em água efervescente

 

O cavalo puxa uma carroça abarrotada de lascas de madeira

A madeira escura parece rabos endurecidos ou pernas ressequidas

A carga é leve e o cavalo avança garboso

Um deles, o magro, vai de costas, sentado

 

Um bem pequeno, de um branco sujo, no mato

Parece iluminado por um holofote focado só nele

 

Sentado entre sacos, cartões e folhagens, o magro viaja calado

 

Vasta pincelada de tinta amarela cruza o asfalto

Como um reflexo trêmulo, esfiapado

 

Um cachorro acompanha a carroça

Corre ao lado

 

Carroças abarrotadas de papéis e latas, puxadas por cavalos

Vão e vêm pela estrada

Tão velozes no viaduto

 

A carroça vazia é uma caixa alta à beira da estrada

O cavalo pasta

O condutor está dobrado no capim, suas antenas vão para a frente e para trás 

 

Insetos correm no asfalto, puxados por formigas

As carroças transportam aparelhos velhos

Invadem a manhã

 

O sexto

O sexto retira fitas adesivas de caixas empilhadas na calçada, abertas

Como se arrancasse a  pele de animais mortos

 

Uma moça caminha como cega, mordendo um copo de plástico

Pequena tromba branca

 

Alguém zumbe

 

O sétimo

Um barco marrom, inseto eriçado, morto

Vai embora de costas, as pernas para o alto

 

Uma canoa negra se balança como a perna solta de um inseto

A água leva também

 

A cauda incolor de um avião corre entre os barcos

 

A baía é grande teia estendida entre os morros

Uma vela  sem cor, asa solta, escapa

A vela tomba, presa

 

Na tarde fria, uma escuna sem música entra na enseada

É coelho imenso, as orelhas em pé levemente inclinadas para trás

 

O saco de plástico verde vem voando

Sobrevoa a água e pousa

Equilibra-se como uma vela, depois cai

Fica boiando como um chinelo sem tiras

 

Deitada de costas na praia, a barata move as patas

Sobre a barata, em pé, um galão de água vazio, gordo

Galão claro, com grãos de areia por fora

 

Lançará talvez para cima com as patas o galão vazio

Que rolará depois ao sabor do vento

 

A oitava

Os adesivos solares colam e se descolam quase imediatamente

Saem dos corpos e deixam neles sua marca

Ela dura no máximo até o anoitecer

 

Adesivos desaparecem, mas são compridos

Falta-lhes insistência

 

Nos galhos os adesivos colam melhor

Mas sombras, inquietas, arrancam pedacinhos deles aqui e ali

As sombras surgem de dentro dos galhos

Ou vêm de cima, sobre os galhos e as antenas paradas ao lado dos galhos

 

Nas pedrinhas desordenadas, quase claras, o adesivo não cola o suficiente

Nem nas escamas pousadas nas pedrinhas

O adesivo debate-se ali

 

Uma sombra tenta polir o adesivo solar

Passa nele incessante

Como um ferro gigante

 

O olho distingue em tudo marcas de adesivo solar

 

Nublado, o sol cola nas esteiras podres grandes adesivos foscos

A sombra umedece os adesivos

Os adesivos, porém, não franzem

 

A oitava tira e repõe um adesivo

Pendurada num galho que quase toca o chão

 

A oitava faz o som do adesivo se descolando

A oitava cantarola baixo

 

O adesivo solar parece novo e velho

Seco quase, e embolorado

 

A  nona

No olho da gata se espessa o mel

Aproxima-se uma barata da cor desse mel

É observada pela gata sentada

 

O recheio da folha enrolada é a nona de cabeça para baixo

Negra, com manchas amarelas no abdome

Quieta, com a extremidade das patas saindo do casulo

A fim de agarrar as margens verdes

Como se se enrolasse num cobertor

 

O décimo

Caem meteoros na ventania

 

O décimo, obeso, amarra juntos vários galões vazios

Ele tira fácil do chão essa imensa flor de plástico, incômoda e translúcida

Carrega-a diante de si como uma sombrinha aberta na barriga

 

Não a ergue mais do que isso

 

Um meteoro aproxima-se de um prédio envidraçado

Desce ao longo de sua alta parede sem roçá-la

Conduzido por algum fio manobrado por peões invisíveis

E expertos

 

 

*


Sérgio Medeiros, poeta, tradutor e professor de literatura na Universidade Federal de Santa Catarina, nasceu em Bela Vista (MS), em 1960. Publicou o livro de poesia Mais ou Menos do que Dois (2001) e organizou a antologia de mitos amazônicos Makunaíma e Jurupari (2002).

 

Leia outros poemas do autor.

*

 

retornar <<<

[ ZUNÁI- 2003 - 2009 ]