ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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VICTOR DA ROSA

 

 

 

 

para sérgio medeiros

 

sintaxe serpente interminável,
que pende mole

ou molhada
de uma árvore muito alta: tronco de água
ou um córrego que escorre da calha
não escolhe
cai espessa,
se espalha
e nada

 

para virna teixeira

 

luz fraca na boca
e branco, tudo
muito branco: os objetos,
a cortina, o céu, as mãos brancas
esticavam a saliva

- nunca estive tão perto, espere -
agulha mole na pele mas --- nenhuma dor
a pele morre aguda após
a primeira pergunta:
nós dois
vamos para o céu quando acabar tudo isso?


para cláudio trindade

 

um corpo cheio de água fria
transborda, diáfano
com palavras de vidro quebrado

é fio de luz: recortada faca,
agudo golpe
na manhã banca

 

 

DEZ

 

riquelme impõe com seu ritmo destro
o jogo morto ou túmulo – lento
e com um golpe preciso e certo
o seu silêncio decreta o outro.

contraste definitivo pelo vento
dois passos de monótono domínio
futebol sem sobra: lâmica, pouco
só permanece o olho em movimento.

se sua presença predomina o mínimo
ainda mantém o drama do barroco

 

QUANDO ME PERCO EM UMA CIDADE ESTRANGEIRA

quando me perco em uma cidade estrangeira
e olho para o mapa que é também uma cidade
inteira no bolso da calça
é como se a imagem do instante em que me perco
ficasse presa para sempre no papel

 

ESCRITURAS

 

 
I –

 

linhas de luz
escritos no ar

 

II –

 

palavras de arame
o peso de um poema
pendurado
no papel

 

III –

 

A última carta
esta página úmida
seu nome
em branco

 

 

QUADRILHA RELIDA

(preâmbulo para um triângulo amoroso improvável)

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava João ---

 

Cartas a F

 

7
Escrevo pra alguém que está indo embora. Receber notícias tuas, agora, é ficar ainda mais longe. Quando você diz qualquer coisa eu escuto tudo que você não disse. Você cortou mesmo os cabelos? Escrevo porque é tarde. Escrevo porque quase deu certo. Tua voz é metal e faca, mas não. Minha voz agora é um sopro fraco. Escrevo porque vejo uma sombra; é noite. De noite o quarto pesa as horas, então saio. Não é fácil sair do quarto quando você imagina tudo que está fora dele. Eu só me atraso para encontros de manhã, você sabe. Sento nas escadas e abraço o vento. Tenho todo o tempo do mundo pra permanecer repetindo as mesmas coisas. Não tenho mais nada pra dizer, me desculpe. Digo uma palavra só, a última. Tenho sono.

 

 

6
O banheiro fica molhado e você terá que aprender a controlar o peso do corpo. O segredo eu não sei, mas você pode começar andando pela ponta dos pés. Depois, há sempre os lugares secos. Não tenho nenhuma intimidade com a queda, você sempre soube. Não olho para o alto, concentro no chão. Faz muito tempo não sonho que estou voando. Acabei de lembrar de uma carta tua. A vida não é feita só de negativas. Tento esquecer as coisas que me esperam, não é fácil; só penso no fim em meus momentos de fraqueza. O quarto, por outro lado, passa a ter um gosto úmido que me agrada. Quando abro a porta, de fato, o quarto me entra pela boca. Toda a sujeira nos azulejos é minha. Deito no chão. Passo o dedo pela lombada dos livros, mas não escolho. Repito a mesma música durante horas, ninguém reclama. Apago e acendo as luzes rapidamente porque o quarto é meu, posso queimá-las. Janelas não me faltam.

 

 

5
Pronuncio várias vezes o teu nome até perder o sentido. Escrevo no espelho com vapor e apago. Teu nome parece que tem claridade, mas não. Tenho apenas o contorno do teu corpo. Poucas palavras já são suficientes pra que eu não tenha mais nada a dizer. Eu não seria capaz de falar durante tanto tempo; é desnecessário. Nada é pior do que escrever a segunda linha. Você escuta? Minhas mãos agora repetem um sopro fraco de vento e mesmo assim você escuta? Sempre gostei de ouvir a mesma música, você sabe, pois tenho a sensação de envelhecê-la como se faz com a roupa. Aliás, agora me ocorre, eu gostava de arrastar isopor no muro porque quando olhava pra trás via mil pedaços na calçada, era música. Às vezes me excedo, desculpe. Você não diz nada e então eu perco os parâmetros. E se eu passasse a escrever cartas falando de coisas ainda piores? Quanto mais ela me abraçava, vou dizer, mais eu tinha vontade de chorar.

 

 

4
Você acha que estou representando bem? Hoje em dia todos querem ser ator, você sabe. Eu dizia, não sinto nenhuma vontade de escrever pelas manhãs. Quando escurece é pior, não teremos mais tempo. Acordo limpo, olho as paredes do quarto, mas nada é branco o bastante. É fácil encontrar manchas, rachaduras, sinais do passado. Em todo lugar há memória. A existência de manchas e rachaduras já é motivo para o desespero? Até mesmo no calor da coberta há memória. Então eu aproximo a minha mão da parede. O vento testemunha que não é mais possível dormir com a janela aberta. Meu maior medo é que o chuveiro queime. Só a minha mão precisa de luz agora. Esqueço de tudo quando toco na parede fria. Meu corpo ainda permanece quente, espero. Há algo que nos separa. A parede é você.

 

 

3
Gostaria mesmo de tomar um café, mas não vou insistir. Faria bem caminhar um pouco. Preciso do livro do Perec. E você não precisaria falar nada, pois prefere assim. Nos entendemos em silêncio até no telefone. A questão não é o entendimento, você está pensando agora. Eu me sinto menos só quando adivinho o pensamento das pessoas. Aliás, não te dá a impressão de ouvir a voz das pessoas nos chamando quando toca o telefone? Parece que não é o toque, é a voz. Meu aparelho começa baixinho e vai aumentando com o tempo, talvez seja por isso. Depois, há sempre uma expectativa. Faz dois dias que não toca, tocou agora. Não é incrível quando toca, mas ficar o dia inteiro sem ser lembrado por ninguém também não é nada bom. Hoje de manhã eu saí pra tomar um pouco de sol e fiquei pensando sobre a memória. Eu vi um carro cinza igual o de meu pai e anotei uma frase, talvez você ache um pouco presunçosa. O esquecimento é uma felicidade improvável.

 

 

2
Ficarei mais um tempo com o teu cachecol. Ele fica bem com várias de minhas roupas, você mesmo disse, é quente e mais bonito do que o meu. Você está precisando? Não gostaria que você passasse frio por uma vaidade minha. Acho ele um pouco grande pra você, não combina. Percebi que você comprou um cachecol novo e posso garantir que ficou muito melhor. Não sou a única pessoa que está dizendo isso. Na verdade, vou dizer de uma vez, pensei em não devolvê-lo mais. Talvez você não tenha percebido, mas nas últimas duas vezes em que nos encontramos eu estava com o cachecol que ganhei de minha mãe. Foi uma escolha absolutamente calculada, agora posso dizer. Não que eu imaginasse que você, com todo aquele frio, iria pedir o cachecol de volta na frente de todo mundo. Pensei, isso sim, que você pudesse se acostumar aos poucos com a falta. E eu gosto mais do que você da cor azul. Sabe aquela conversa que iniciei no café sobre a relação de Wim Wenders com o vazio? Meu único objetivo era mostrar a você o quanto sou apaixonado pelo azul. De resto, já dormi duas vezes com o teu cachecol e ele está cheio de bolinhas. Gostaria por isso que você me desse de presente, o que acha? Só assim as coisas poderiam continuar amenas entre nós.

 

 

1
A tua voz, assim, tão longe, ainda chega como metal, mas não sei. Falar sobre nossa situação não deixa de ser um desejo de dominá-la, você sabe. Daqui em diante passarei a escrever algumas cartas pra você. Chamaremos assim, soa falso. É necessário ver a paisagem de um ponto de vista mais extremo – pra cima ou pra baixo, pouco importa – e já faz horas que estou neste mesmo lugar. Há muitas coisas que percebemos quando fechamos os olhos. Darei um exemplo, não se ofenda. Depois que passei a pagar aluguel, você sabe, não tenho mais dinheiro pra nada. Dia destes, já era fim do mês, fiquei sem shampoo. Não precisava sair de casa, a princípio, e então não fazia tanta falta, quis economizar. Não se trata de um item, digamos, essencial para a sobrevivência. Com o tempo fui percebendo que os cabelos, quando ficam realmente sujos, vão se comportando segundo um modo possível de moldá-los, algo parecido com o gel, mas muito melhor. Olhava com cuidado no espelho a cada dia. Depois disso, mesmo com shampoo em casa, passei a deixar meus cabelos mais sujos. Fazia a barba pra compensar, ficava com o rosto absolutamente branco, limpo. A esta hora você já entende onde quero chegar. Talvez já tenha percebido há horas. Você sempre foi mais rápida do que eu.

 

 

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Victor da Rosa, poeta e ensaísta, é mestrando em Literatura pela UFSC. Autor de Piano e flauta – fragementos de um romance (Lumme, 2007) e organizador, com Ronald Polito, de 99 poemas de Joan Brossa (Demônio Negro e Annablume, 2009). Mantém o blog www.victordarosa.blogspot.com

Leia também os ensaios do autor sobre Roland Barthes, León Ferrari, Claudio Trindade, Baudrillard, Joan Brossa e Mallarmé.

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