ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

ABRIR UMA PÁGINA BRANCA

 

Victor da Rosa

 

 

(...) e todas as palavras devem apagar-se.

Mallarmé

 

Para André Dick

 

 

Qualquer escrita dissimula outra – e todo processo extremo deve suportar o movimento para um segundo espaço: a abertura de um silêncio. Alain Badiou inicia seu ensaio sobre Mallarmé justamente com a seguinte afirmação: “Mallarmé indica sem rodeios que o seu método e a sua lógica são precisamente aquilo do que o poema inscreve a carência, ou o ‘calar’. Assim o poema é ‘escritura cifrada’ [chiffration]” i Tal procedimento, depois, será levado às mais variadas conseqüências. Com a elipse, existe uma linha invisível e provavelmente imprevisível que corre perto, outra escrita, mas permanece aberta, portanto. É quando a literatura torna-se número; desata uma constelação. O paroxismo estará na página branca, opaca: morta.

 

Imediatamente Badiou prolifera sua própria constelação que se movimenta em torno do silêncio de Mallarmé – desvanecer, subtrair, isolar: desaparecer. “Agora, a subtração refere-se à morte”, escreve Badiou. ii A primeira imagem: o naufrágio da sereia. De fato, da sereia afogada, desaparecida, restam sobre a água somente os seus cabelos brancos. A segunda imagem, no entanto, é tudo: nuvem, espuma. Em uma palavra, Badiou quer construir a idéia de que o poema, apagando a cena para sugerir sua ausência somente, ou reconstruindo o acontecimento através de sua própria falta, o poema nomeia o nome. Navio e sereia, rasurados, desde o início, estão perdidos. O acento acontece na ausência.

 

É no interior desta posição de leitura que Badiou descreve o que considera o método de Mallarmé: haverá ainda – e o extremo está nisso – uma segunda indecisão. Na medida em que a escrita se refere à sereia já enquanto desaparição, então a presença da sereia só pode ser colocada em dúvida. Sendo uma sereia, aliás, o que será um naufrágio? Haverá, portanto, para Badiou, uma segunda anulação. “Assim, o segundo termo evanescente inscreve-se na carência do primeiro, carência radical por referir-se não já ao termo (o navio), senão a sua desaparição (o naufrágio, o navio)”, escreve o crítico. iii Em resumo, se há um espelho, haverá também uma escrita que fala apenas de si mesma – ou falta.

 

Assim, o branco. Em suas anotações sobre o livro, Mallarmé não cansa de fazer retornar uma imagem que se torna talvez o maior fantasma de sua escrita: a página vazia. Trata-se então de um dispositivo de literatura imaterial, digamos, sem peso. Em uma carta de 1892, por exemplo, Mallarmé escreve sobre o livro de outro escritor: “Gracias, querido poeta, por estas páginas, en las que incluso el blanco final es precioso; pues la ensoñación las continúa largamente.” iv Em outra correspondência, agora de 1866 – quase trinta anos antes, portanto – Mallarmé escreve a seu editor: “Yo desearía unos caracteres bastante apretados, que se adaptaran a la condensación del verso, pero también aire entre los versos, espacio, a fin de que se destaquen bien los unos de los otros, lo que es necesario incluso con su condensación.” v

 

A metáfora do ar é repleta de desdobramentos. Marcel Duchamp, por sua vez, em 1919, presenteia a irmã e o recente marido com um readymade, digamos, bastante literário. Por carta, de Buenos Aires à Paris, não sem ironia, Duchamp sugere que pendurassem um livro de geometria no balcão do apartamento para que o vento, ao folheá-lo, fosse virando e talvez rasgando suas páginas. A inflexão é evidente – a forma da geometria e mesmo a forma do livro, compactas, se desfazem. Se a literatura moderna, que se repousa de modo fundamental sobre o conceito de autoria, pressupõe a estabilidade documental – em linhas gerais, o livro – então o jogo passa a se constituir no interior dos próprios mecanismos que definem o literário. Tal livro, de fato, jamais foi visto. Calvin Tomkins, biógrafo de Duchamp, escreve que existe apenas o registro de uma fotografia feita pela própria irmã; é ar, portanto, é poeira e desaparição.vi

 

Por outro lado, ainda, há um poema de Mallarmé intitulado justamente “Petit air”, um poema evanescente, aliás, como muitos outros: ciel, oiseau – e que Augusto de Campos traduz por “Pequena Ária”, enfatizando mais a relação com a música e menos com o ar. De qualquer modo, nas mãos de Mallarmé, a escrita torna-se imaterial, leve: infraleve – torna-se um aspecto, portanto, ou um espectro, mesmo, e não mais uma definição, tampouco uma mimese. A página vazia de Mallarmé torna-se talvez o espaço privilegiado da escrita virgem e nua – ou o resumo de tantas superfícies vazias que também retornam em seus poemas. Em “Brise Marine”, talvez um de seus poemas de maior impacto, nada ilumina – “ni la clarté deserte de ma lampe” – o papel vazio e seu anseio. Já em “Salut”, é possível imaginar o desespero do escritor diante da dificuldade do primeiro verso: “Rien, cette écume, vierge vers”. vii

 

A página branca, por fim, é o maior testemunho da esterilidade de Mallarmé: o poema inacabado, a produção intensa porém mínima. O poeta, como se sabe, permanecia um verão inteiro alterando meia dúzia de versos – até o limite da recusa, até o encontro com uma “arte de recusas”, como quer Augusto de Campos, segundo Valéry. Em sua Carta sobre Mallarmé, Valéry acentua uma relação entre recusa e ética: “O rigor das recusas, a quantidade de soluções que são rejeitadas, as possibilidades que o escritor se proíbe, manifestam a natureza dos escrúpulos, o grau de consciência (...). É nesse ponto que a literatura atinge o domínio da ética.”viiiA página branca encontra assim um enlace forte do político com o estético na literatura de Mallarmé.

 

Em poucas palavras, depois de Mallarmé, a escrita deve encontrar sua saída inevitável, sua maior inflexão, assim, no ato de se voltar contra si própria; ou, o que é quase o mesmo, no ato de se lançar para fora de si. De fato, a construção de uma escrita vaga, indeterminada, inapreensível – e poderíamos, em vão, multiplicar os termos: branca, vazia, estéril – organiza talvez seu espaço mais extremo na imagem de uma página branca. Desespero de todo o começo; destruição de qualquer fim. Neste ponto é possível estabelecer um lugar de indecisão entre escrita e imagem. Livros, talvez assim, serão espelhos.

 

 

NOTAS

 

i BADIOU, Alain. O método de Mallarmé: subtracción e illamento. Tradução: Emilio Araúxo. Santiago de Compostela: Amastra, 2004, p. 5.

ii Idem, p. 20.

iii Idem, p. 11.

iv MALLARMÉ, Stéphane. Fragmentos sobre el libro.  Tradução: Juan Gregorio. Valencia: Colección de Arquilectura, 2002, p. 91.

v Idem, p 90-91.

vi TOMKINS, Calvin. Duchamp - uma biografia. Tradução: Maria Thereza de Rezende Costa. São Paulo: Cosac & Naify, 2004, p. 238.

vii CAMPOS, A. de, PIGNATARI, Décio e CAMPOS, Haroldo de. Mallarmé. São Paulo: EditoraPerspectiva, 1991.

viii VALERY. Carta sobre Mallarmé. Apud: CAMPOS, Augusto de. Via Linguagem. São Paulo: Cia das Letras, 1987, p. 14.

 

 

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Victor da Rosa é ensaísta, mestrando em Literatura pela UFSC e autor das narrativas de Piano e flauta – fragmentos de um romance (Lumme Editor, 2007). Outros de seus textos podem ser lidos em www.literaturamenor.blogger.com.br.

Leia também os ensaios do autor sobre Roland Barthes, León Ferrari, Claudio Trindade, Baudrillarde Joan Brossa.

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