TRANS
ALUCINAÇÕES
Márcio Almeida
Polissemia: como Minas são muitas, as palavras também se geram em seu próprio ventre de signos. Trans – para além do bem feito, do Benny Goodman, do Bem Falante, do Bem Me Quer, do Bem-Vindo, do Ben-Hur, do Bentinho, e do Mal larmé, do Mal Secreto, do Mal de Parkinson, do Mao Tse Tung, da Malvada da Pinga, do Mal Dizer, do Mal Encarado. Trans – a outra margem do rio à margem. Alucinar – superar a mesmice com a luz do incêndio que pensa. Percepção do outro que incomoda a razão de não ser mais. Ou de nunca ter sido. A ousadia de ousar traduzir para além das palavras da hora. Em que o método são os sentidos. Mais ou menos o que Elizabeth Bishop fazia com os poemas brasileiros. Transa com os significados que salvam para não deixar sucumbir à alucinação real.
Transalucinar – traduzir no alheio o que é próprio e necessário das convicções sobre a criação literária, sobretudo de uma poética que privilegia efeitos sonoros translúcidos mas não serenos, da fala (des)articulada, presto surreal, o engate de cabeça no que, antes de ser aquilo que denota, toca, comove belamente, gera alívios. Unheimlich – tudo que deveria ficar oculto, secreto e, no entanto, se manifesta, disse Freud. O horror feliz da consciência impotente diante do seu duplo...sentido. Se um texto não mostra o efeito do estranhamento, não há o poema, a produção literária, o próprio texto. Vivência subjetiva materializando o que deve ser sentido, e perseguido. Chlovski: toma as palavras como correspondentes a imagens. A memória do espelho vela o corpo sobre o berço. Lindura nobre, poderosa, com acesso a algo sagrado, epifânico. Uau! O procedimento da transalucinadora é buscar novas formas de violação da linguagem prosaica, o que a arte é para transalém de conceitos cristalizados. O que está trans já esteve aqui. O que subverte fronteiras tem no âmago seu porto. Em meio ao caos a luz do diferente.
A traduzibilidade se faz por sinestesia, por empatia, por poesia. O sempre visto em olhado de primeira vez (E. Fonseca). Transalucinar = desautomatizar a percepção. Lévi-Strauss: se não considerarmos a existência (ou a presença) de uma outra lógica além da de identidade, várias coisas que vemos ou sabemos, ficariam sem explicação, como os mitos, a arte, as neuroses, os sonhos. Orgasmo lingüístico. A qualidade do prazer do que provoca no leitor que o apreende. Muito mais dentro. Como sêmen, o que acorda estrelas, sacia o deserto. Busca sem fim que surpreende o nada. Difícil é fazer o fácil brilhar. Adriana Versiani faz.
SEGREDA-ME
Transalucinação uma fala de Yousef Komunyakaa
“ Você falando em outra língua enquanto me sufoca a fumaça do incenso e o cachecol de tricot.
Os dois são brancos, mas você, Você é preto.”
Eu sinto o que você precisa
meus olhos miram os seus
você ouve meu coração e
penso que ninguém me entende
Imagino um jarro de vidro e as flores
na água preenchendo o jarro,
transvestindo o vidro, imagino
Lanço flores sobre todas as pessoas
Exceto sobre as que amo
Flores são armas desafiando o ar
Sei os nomes dos que virão
Danço entre seus pés e os dedos das mãos
Entre os lábios, eu danço
Muitas vezes sigo calado na névoa das grandes cidades
Muitas vezes sigo colado aos canos de descarga dos automóveis
nas grandes cidades
Eu quero morrer como os passarinhos
Eu quero dormir junto à minha mãe em seu ninho
No mundo há mil casas
Suponho que cães escavam as paredes e borboletas encarnam suas asas
No mar, a garota nada
No nada a garota má revela-me seus segredos.
NOITE DE SOMBRAS
Transalucinação a partir de um texto de Carl Jung e photo de Nicolas Huges
Conheço a noite, pesadelo povoado pela Besta, terra onde ela aplica seus métodos.
Nós , de suas unhas compridas e sujas, vigiamos.
Conheço o pesadelo, noite povoada pela Besta, terra onde ela aplica seus métodos.
Nós , de suas unhas compridas e sujas, vigiamos.
Universo povoado pelas sombras,
conheço a escuridão de suas unhas.
Transalucinação sobre poema de Josely Vianna Baptista
RIO
A água e a dimensão do tempo.
No princípio a explosão do verbo ilumina o céu
Arraias mutantes invadem o barco( anjos flutuam
na nave central);na hora da expiração chovem
rochas em brasa nos pulmões do caos.
As papilas gustativas desconhecem os limites da língua.
Um universo irradia o outro.
Anatomia do horizonte, janelas abertas
CISMA
O menino sufoca enrolado ao cortinado
móbiles de nuvens assombram seus olhos no convés;
tenta alcançar os fios de prata que fazem gelar seus dedos.
escapa-lhe o ar,
bóia à deriva no mar deserto onde almas líquidas
resplandecem quando tocadas pelo sol.
No meio do rio, no rio nenhum, o limite do sonho – sufoca
Nuvem de água, mar deserto, o limite do rio por um fio
RÉSTIA
Velas içadas. Quem navega o vento, o remo, o mar?
o sol beija o madeirame da proa durante o sono das partículas
de pó que dançam inconscientes nos restos de luz
o silêncio e o balanço das águas move
os objetos sobre a cômoda
olhos abertos secam com o sopro de ar que invade a câmara.
O fio de ouro pende um anjo do teto
A memória do espelho vela o corpo sobre o berço.
VELUDO
Cruz de cobre no colo do útero,
placenta enterrada na areia do deserto.
Sangue vivo escorre entre as pernas
e encharca as tábuas do chão.
Cacto, flor de espinho, brônquios abertos,
oxigenação.
Sete anjos nus ,sobre cavalos, respiram pela boca
Não há gravidade no limbo.
Caderno de Desenho
Transalucinação de uma nota e de um desenho de Ana C.
Represento a revolução nestes traços incertos
que insistem em matar três figuras.
Asas se movem e um baseado queima
ao som de Corcovado.
AS COISAS
Transalucinação sobre texto de Mark Strand
Sinto medo,
me abstenho
do medo.
Essa é a história:
para sempre
eu sou
a falta.
Quando eu ando,
uma parte do ar
se dissipa.
Eu movo o que
no espaço existe
enquanto é.
Nós somos
a razão do movimento.
Eu mudo as coisas.
As coisas mudam de lugar.
BONS AMIGOS
Transalucinação de uma letra de Amy Winehouse
Eu não posso mais esperar por você
amo quem me odeia e canto
quando preciso voar
Ainda somos bons amigos,certo?
Você pressente o risco
Eu me desmancho no ar
Agora você quer um aero plano
enquanto viajo na noite
Continuaremos bons amigos, certo?
Você é Stephanie e eu Paulette
Você conhece todas as minhas caras
E é fácil fumar um, esquecer
Nada acontece entre mim e você
Nick estava lúcido quando disse:
eu não posso mais, eu não quero mais saber.
Não sei o que você tem por dentro
Como você se sente quando eu transbordo
Mas você é meu melhor amigo, certo?
Eu não gosto do modo como você diz meu nome
Você está sempre olhando para outro lugar
agora eu quero que você surfe em mim
que nasça das minhas asas
Pois sou sua melhor amiga, certo?
Você é Stephanie e eu Paulette
Você conhece todas as minhas caras
E é fácil fumar um, esquecer
Tudo acontece entre mim e você
Então nos amamos até as 4 da manhã
e não existe mais ninguém com quem eu queira estar
Agora à tarde sou a seringa e você a droga
Porque somos grandes amigos, certo?
AS UNIÕES POSSÍVEIS
Transalucinação de trechos da prosa de Alejandra Pizarnik
Tenho visões de palavras escritas que se movem, combatem, dançam, sangram. Habitam um alfabeto de misérias e crueldade.
Aquela que devo cantar se enche de silêncio, murmura, sopra na pele um lamento.
Sou essa pequena que sorri na janela.
A boneca de tranças que nada se assemelha a mim.
Sou nome que me trás lembranças.
Disseram-me das flores. Segui olhando as flores.
Meu amor, dentro dos tímpanos, dos olhos, do sexo,
ferve a feroz nostalgia dos anjos.
Dentro dos gemidos, dos gritos
há um querer do outro que não é o outro.
Desejo um olhar que demore o tempo
de uma mão escrevendo meu nome
em uma folha de papel.
Entrego-me, levito enquanto você me segreda a estranha ordem das coisas.
Há meses agonizo nesta espera e quando inicio o gesto tremo.
Existe amor da mesma maneira que na noite existe o vento.
Em um claro jardim ali estou dona dos meus quatro anos.
Dona dos pássaros celestes e dos pássaros roxos.
A rainha louca é minha professora de canto.
Obscenidade em alguns instantes do dia compartilhado
e da noite que é só minha.
Algo tênue como uns dedos abrindo minha memória ardente.
O peso fatal do triste e delicado perfume da açucena.
DIFICULDADE BARROCA
Transalucinação de trechos da prosa de Alejandra Pizarnik
A consciência do fogo apagou a da terra e minha visão do mundo se resume a um adeus duvidoso e a um promissor nunca.
Tudo vive no interior, portanto um poema é incapaz de aludir à sombra visível.
Língua visceral, contadora dos fantasmas e das aparências:
Escrever não é para mim. Só de pronunciar a palavra álcool, me embriago.
Eu, tão estrangeira, tão sem pátria, sem língua natal!
Há palavras que em certos dias não posso pronunciar.
Ah, esses dias em que minha língua é barroca e formulo frases intermináveis para sugerir palavras que se negam a ser ditas.
A pouco, quis dizer a D. :
- Se é que você morre de desejos por mim, venha, venha agora.
Porque talvez consiga com a língua do corpo dar a ele algo parecido a palavra escrever.
Então, chorando em seus braços, acariciando-o como se o houvesse ofendido mortalmente saberei que na verdade não o compenso, que na verdade continuo devendo.
APRENDIZADO OU A VIAGEM AO CENTRO DA TERRA
Transalucinação de trechos da prosa de Alejandra Pizarnik
- pegou o pote onde estava escrito:
“Beba-me e verás coisas cujo nome não sonha o silêncio”.
A linguagem é um vácuo onde nenhum objeto parece ter sido tocado por mãos humanas.
Falo com a voz atrás da voz e com os mágicos sons da língua encantada.
Embriaga-me a luz que transforma minhas palavras em um esplêndido castelo de papel.
Permito-me visões e figuras pressentidas segundo os temores e os desejos do momento.
Sobrevoa-me a morte. Busco a saída.
Volto a mim e vejo uma dor que não acaba.
Luz estranha a todos nós. Em mim, tudo se diz com sua sombra.
Azul é meu nome.
Sou capaz de morrer por uma palavra mal pronunciada.
Os sofrimentos me dispensam de dar explicações.
Já não significa para mim a língua que herdei dos estrangeiros.
Sei bem que minha ferida não deixará de coincidir com a de alguma “supliciada”, que um dia me lerá com fervor por eu ter deixado de dizer que não tinha nada a dizer.
Eu falo a partir de mim.
Para sempre em meu ombro direito dois êxtases poéticos.
EXERCÍCIOS SOBRE O TEMA DA INFÂNCIA E DA MORTE
Transalucinação de trechos da prosa de Alejandra Pizarnik
Eu estou sentada na cozinha com um fósforo queimado entre os dedos.
De novo o medo de dar vida a um adjetivo.
Hoje à noite dormirei com minha boneca, a de olhos azuis que é linda como o poema e sua sombra.
A pequena marionete da sorte que bate na minha janela ao sabor do vento.
No inverno ela bate no vidro com seus pezinhos azuis e dança. Dança de frio, dança de alegria, dança para acalentar seu coração, seu coração de madeira, seu coração da sorte.
Ao entardecer ela ergue seus braços suplicantes e inventa a lua.
Visto tranquilamente o hábito da loucura
Encontrei um lugar solitário, próprio para chorar.
*
Adriana Versiani dos Anjos (Ouro Preto – MG,1963) tem quatro livros de poemas publicados, entre eles, A Física dos Beatles (2005) e Conto dos Dias (2007) e o virtual Explicação do Fato (2008 – Germina literatura – Revista Virtual). Integrou o Grupo Dazibao de Divinópolis/Belo Horizonte. Foi co-organizadora da Coleção Poesia Orbital e do Jornal Inferno. É editora do Jornal DEZFACES. Faz parte do conselho editorial da Revista de Literatura Ato. Lançará em agosto de 2009 o “Livro de Papel”.
Leia também poemas I e II de Adriana Versiani. |