ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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  ONZE ELEGIAS PARA UM TEMPO SEM ELEITOS

 

 

Ruy Vasconcelos

 

Por referência àqueles que se encontram separados de nós pelo abismo da morte, a elegia assumiu, no Ocidente, um tom de transcendência incomum. O gênero parece aglutinar alguns dos poemas mais subversivos, no sentido de apontar para uma questão que os esquemas mentais de nossa idade histórica – laica e materialista – devota um desprezo, uma alergia e uma derrisão particularmente ostensivos e intensos. Críticos tão diversos quanto Valéry, Gilson, Auerbach, Huzinga, Benjamin, Bazin e Eliot insistem num ponto comum: o quanto a idéia de morte – mais perene indicação de sempiternidade e espiritualidade – vem sendo não só amesquinhada mas também exilada de nossos cotidianos e ritmos de vida. Em nossa sociedade, o morto é apenas alguém sem mais potencial de consumo – em especial se a evocação de sua memória é incapaz de gerar lucro [tanto na forma mais estável da memória aludida pela reedição de livros, canções, filmes, e que rende páginas na virtuália, na mídia etc. quanto no reino-relâmpago da informação – que, de resto, esquece, no dia seguinte os setenta mortos no despencar do ônibus ribanceira abaixo numa estrada em Minas Gerais]. E, no entanto, claro, a morte nunca deixou de existir e demarcar o tempo com a precisão de um metrônomo, uma após outra geração debaixo do sol. Abaixo segue uma série de onze elegias de tempos, lugares e propósitos distintos. O sentido, aqui, de nenhum modo é o de traçar um panorama propedêutico ou didático do gênero. Ou seja, provir da Grécia Clássica a apurar sua gênese ou o quanto, em seu primórdio, o conceito de elegia difere de nossa idéia contemporânea. Ou ainda que desenvolvimentos a elegia comportou ao longo de tantos séculos. Mas, do contrário, tão-só oferecer ao leitor, antes que um esquema teórico explicativo, um número de poemas – predominantemente modernos – que a “mostram”. O sentido é o de mostrar não o de explicar. Porque a melhor poesia faz isto: mostra, não explica. Ou se quisermos seguir, ainda uma vez com o velho e bom Auerbach: é mais paratática que hipotática. Ou seja, ao calar sobre tudo que não é o estrito, amplifica a vastidão desse estrito a partir do fino recorte causal em que se alicerça. Escrever para os que se foram, evocando-os, é um exercício que transcende em muito o que a psicanálise reduz sob a rubrica de trabalho de luto. Do contrário, poderia ser designado como trabalho de vida e história. Na medida em que nossa integridade social e individual só ganha plenitude quando conseguimos, minimamente, dialogar com o passado. E com os silêncios e sombras que povoam esse passado. A elegia aponta para a ruína, a história, o silêncio, a sombra, o malogro e o escombro. Mas, por igual, como sabemos, para o que tudo isso prometeu de bom um dia. Essas promessas não cumpridas ou tão-só a abrupta perda de contato e conversa com alguns dos que nos cercam, acentua ainda mais nossa condição de peregrinos e de exilados neste mundo. Assim que se pode, de outra modo, entrever o mais alto poema escrito no Ocidente, a Commedia de Dante, como uma forte indicação de integridade – inclusive no plano de uma conduta individual e política – por saber enganchar nossa existência precária e provisória numa essencialidade da qual sabemos tão pouco. E tão pouco estamos empenhados em saber mais, em genuína vocação.

 

 

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Ruy Vasconcelos de Carvalho, poeta e músico cearense, nasceu em 1963, residindo hoje em Fortaleza. É professor universitário. Publicou poemas em revistas brasileiras e estrangeiras, e integra a antologia Nothing the sun could not explain (1997).

 

Leia também poemas do autor.

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