HERBERTO
HELDER: A RAZÃO DA LOUCURA
Contador Borges
Ao poeta,
cabe dizer as coisas de uma vez. Ele sabe que não há segunda
chance. Tem que ser certeiro. Sua voz tem que soar única,
definitiva. Não há espaço para equívocos, aproximações pífias,
indecisões timoratas. Há uma pressa necessária, que se justifica
pela urgência do impulso e sua luminosidade, a percepção radiante
de que o fluxo da escrita é portador de um júbilo, de um acontecimento
vital que faz da ocasião epifania. A vida não espera, não
pode perder na indistinção absoluta seu sentido essencial.
E no movimento das palavras a vida recebe o sopro necessário
para que continue pulsando, acelerada ou lenta, não importa
(lentidão também contém intensidade), num ritmo ou suplemento
que a preenche, potencializa, até transbordar-se, isto é,
até que ela se revele para si mesma e aos nossos olhos, no
frescor da descoberta, na felicidade da surpresa.
A literatura,
a poesia, que segue este impulso,
acaba furando o bloqueio, e atravessa o inferno da
logosfera, esse espaço pleno de ruídos, congestionado pela
ideologia, pelos estereótipos da linguagem servil e outros
dizeres comuns que invariavelmente se cristalizam, empobrecendo
a inteligência e a vida, degenerando a língua, sem que se
atenda o desejo de Mallarmé em dar "um sentido mais puro às
palavras da tribo".
A permanência
do espaço poético e seu engenho, entre tantos dizeres e formas
díspares, muitas vezes precários de se produzir linguagem,
garante ao menos que se possa operar com a escrita e o pensamento
poéticos numa margem livre de sentidos para se continuar realizando
e dizendo as coisas de outro modo. Ao renovar a palavra e
suas formas de expressão, a poesia liberta o pensamento e
a linguagem dos poderes gregários da língua.
O
devir-poema
A obra de
Herberto Helder atua nessa margem, onde a poesia resgata o
ser pela linguagem; a linguagem, que na bela imagem de Heidegger,
não se separa do ser como as nuvens do céu.
A poesia
de Helder é assombrosa; é desmedida, e chega a ser desconcertante
em seu trânsito entre o absurdo e o sublime, pois nos coloca
diante do impossível. E a margem mínima se abre ao rio caudaloso
do poema, abolindo a fronteira entre a razão e a loucura,
para que o essencial do ser venha à tona.
Basta entrar
de vez neste volume intitulado Poesia Toda (Herberto Helder. Poesia
toda.
Lisboa, Assírio & Alvim, 1996)
e constatar os seres da linguagem (mistura de coisas e palavras),
gerando prodígios em relações surpreendentes. "A manhã começa
a bater no meu poema" (...) "As manhãs, os martelos velozes,
as grandes flores / líricas". Todas as coisas "Batem nas portas
das palavras". "Batem" e entram, acrescente-se. O poema as
recebe porque é ao mesmo tempo a casa (o corpo) e a voz da
enunciação. Eis "a complicada carne / do poema", o espaço
onde o ser se relaciona com a linguagem.
Este estranho
comércio entre as palavras, esta economia inflacionaria de
sentidos, afetam (iluminam) não apenas o que entendemos por
linguagem, mas também o que entendemos por mundo.
Os poemas
assim nos ensinam a ver as coisas de outro modo, como se nesse
exato momento de claridade e sombra da leitura pudéssemos
parar o tempo e isolar o ser no espaço para surpreendê-lo
em seu labor secreto, simultaneamente em silêncio e turbulência.
Atente-se ao poeta: "Escuta como só agora bate a cor nas maçãs."
Sim, porque o poema a surpreende nesse instante inapreensível,
nesse plano suspenso, quando a fruta se torna o que é, ao
ser atingida pelo movimento espacial da cor, e, por assim
dizer, se encarna, deixando o estado bruto, larval, de pré-coisa.
O poema apreende a fruta no devir do ser.
A maçã que
nos oferece é outra e, ao mesmo tempo, se encontra na essência
de todas as frutas. Ele a quer em seu estado adâmico, antes
que ela seja mordida pelo verbo, antes que apodreça ou degenere
pelo uso do sentido na comunicação, antes que seu ser se perca;
ele apanha a maçã com a rede do poema, "sem as mãos", desde
a origem, em ato e potência, para restaurar a fruta aos nossos
olhos, no instante desse acontecimento em que o ser irrompe
das palavras.
O poema enriquece
nossa relação com as coisas, pois quer a maçã que não pode
ser comunicada, o ser perdido da fruta: a nudez essencial.
Devir é movimento.
O movimento que se percebe ser.
Não há nada
estático na poesia de Helder. Como o rio de Heráclito, tudo
nela flui. O devir e o signo coincidem na leitura.
O ser da
linguagem, no fundo, é o ser das coisas que se revela ao pensamento,
como " o peixe que "vai nadando até se consumar em lento /
lírio". O ser é o puro movimento do devir. O peixe que lentamente
se consuma em lírio é o acontecimento que nos permite vislumbrar
o movimento em cores do ser, ao mesmo tempo em que o pensamento
se descobre ele próprio na base desse movimento. Nesse instante,
o ser do pensamento é o mesmo que o ser do poema.
Formas
solidárias
A poesia
de Herberto Helder nos fascina porque parece jogar em nossos
olhos todo o tempo esta questão: o que é realidade? Até que
ponto podemos ler o mundo, o ser e as coisas no universo poético?
Até que ponto a linguagem de um poema e as coisas do mundo
são realidades inconciliáveis? Ou, caso não sejam, será que
vemos nesse mundo transfigurado pela palavra a sua essência?
Como então lançar de volta os olhos para as coisas sem levar
em conta sua decifração pela leitura?
De algum
modo essas ocorrências todas nas palavras, este efeito louco
que as faz reverberar sobre si mesmas, estão dizendo (ou mostrando)
para nós que o mundo pode significar outra coisa; e essa voz
impertinente nos coloca nos interstícios do mundo, onde o
mundo deixa de ser o que é para se tornar linguagem, mas que
assim fazendo acaba, num revés incomparável, restaurando seu
sentido pleno.
Sabemos,
quase sempre, do que tratam os poemas; reconhecemos todos
os objetos que eles evocam. Mas o que nos surpreende é o modo
como se relacionam uns com os outros, o modo como os substantivos
ganham prismas e transparências de cristal, ao serem magnificados
pela rebeldia de adjetivos foragidos da gramática, sempre
prontos para o estranhamento, e o modo extraordinário como
esta sintaxe audaciosa nos obriga a refazer nosso olhar sobre
a linguagem e as coisas.
Sabemos,
enfim, que os objetos da linguagem não são exatamente os do
mundo. Que os signos não nos remetem inteiramente às coisas,
que os signos antes nos convergem para eles mesmos, ainda
que arrastem no movimento uma sensação remota do vivido, um
efeito distorcido do "real".
O cotidiano
nos mostra que uma toalha se dobra, ou se desdobra. Também
podemos entender o que significa um nome, que muitos passam
despercebidos e outros nos são inesquecíveis. Temos noção
do que seja a beleza, apesar de Platão e de todo o delírio
metafísico ter lhe arrancado a carne até as entranhas, para
não falar em sua codificação nas artes clássicas, em sua exploração
nos nossos dias pelo cinismo publicitário, pela histeria da
mídia, etc. A beleza que, afinal de contas, não sabemos bem
o que seja; e o que sabemos não nos permite ver o que talvez
no fundo seja apenas glorificação do olhar pela imagem.
Quem preza
os fatos não ignora que respira pelos pulmões, ou que é possível
atear fogo num chumaço de algodão. Mas o que dizer desses
elementos reunidos pela lógica ambivalente do poema helderiano?
No mínimo que "... ao abrir-se a toalha viva, o / nome: a
beleza a voltar-se para trás, com seus / pulmões de algodão
queimando.", presenciamos um acontecimento no qual as relações
entre o ser e as palavras se iluminam exatamente porque os
elementos que a constituem se tornam solidários a novas permutas
de significação e construções sintáticas, teias ou famílias
de degenerados, as palavras, em parentesco anárquico, selvagem.
Nada mais raro no planeta.
Eis que os
seres da linguagem, as imagens, se refletem no espelho do
poema como um corpo que pela primeira vez se reencontrasse
todo. E já que somos divididos, fracionados ao extremo, "pó
andante", no falar do padre Vieira, o poema parece nos reconciliar
com a totalidade das coisas.
A poesia
é a linguagem que nos permite ver o ser das coisas, mas apenas
à contra luz, isto é, com toda a riqueza que ele esconde no
atropelo da existência, na submissão cotidiana aos grandes,
pequenos e invisíveis poderes disseminados pelo mundo. Eis
porque só raramente temos olhos para o ser. "Natureza ama
esconder-se", diz Heráclito. Mas a poesia ronda o silêncio
e as sombras. Ela não pode perder o ser de vista. Sem ele,
a poesia não sobrevive, sem ela, o ser obscurece. Eis o segredo.
Quando isso acontece, vemos o que não podemos ver a "olhos
nus" nesse domínio exterior constituído de coisas a que chamamos
vagamente de "realidade".
A rigor,
a realidade não existe. Ao menos para o espírito. Sabemos
que ao tocá-la e ao ser tocados por ela, ou enquanto tentamos
apreendê-la pelo pensamento ou poros, já estamos mergulhados
na linguagem, já reconstruímos parcialmente, ou às raias do
delírio, o que quer que esteja aos nossos olhos. A literatura
é um meio de retorno à realidade, um modo de sondar os seus
meandros. Algo ao menos parece certo: quanto mais a literatura
participa de nossas vidas, mais intensa e reveladora se torna
a nossa percepção do que acontece fora dela, nesse meio turbulento
e nebuloso que tomamos por concreto.
O
eterno retorno
A essa altura,
é preciso que o leitor se pergunte: desde a Colher na boca,
até seus últimos livros, o que muda na poesia de Herberto
Helder? Não é sempre a mesma linguagem incomum, a mesma força
imagética, o mesmo fôlego? Há nessa poesia um empenho permanente
em nos revelar na exuberância que sua voz fala por todas as
vozes, que sua linguagem já provou da vida e da morte, já
tocou no âmago o seu segredo, e que no fim das contas um poema
serve de acesso a um universo paralelo dentro de um mesmo
universo, de onde, após uma breve (mas inesquecível) passagem,
jamais seremos os mesmos, jamais olharemos o mundo com os
mesmos olhos, porque simplesmente voltamos ao mundo com novos
sentidos, imbuídos de outros apelos, mais radicais ou serenos,
mas selvagens ou nobres, porque agora sabemos que o mundo
já não é o mesmo (nunca foi), e que pode ser visto de outras
maneiras, porque agora sabemos que "Há uma árvore em gotas
em todo o paraíso", que por sinal respingam em nossos olhos?
Talvez não
haja origem na obra de Herberto Helder (não haverá portanto
fim), assim como os cosmólogos contemporâneos dizem jamais
ter havido um começo para o nosso universo; talvez essa obra
se produza a partir de um centro obscuro, de lenta gravitação
que se alimenta de seu próprio impulso entrópico, isto é,
a pulsação da escrita, e que vem à tona em diversos momentos
nesses poemas-livros, nessas imagens mutantes, numa orientação
espasmódica, como um relâmpago intermitente que apanha o clarão
no subterrâneo celeste, onde a continuidade do ser subsiste
como efeito de eterno retorno.
Ou a dizer como o poeta: "Penso que deve existir para
cada um / uma só palavra que a inspiração dos povos deixasse
/ virgem de sentido e que, / vinda de um ponto fogoso da treva,
batesse / como um raio / nos telhados de uma vida..."
Não é esse
o impulso que conduz a vida, a morte, a refazer seu movimento
para continuar sendo vida, essa matéria que a linguagem desfigura
e devolve ao pensamento, à existência, arrebatando todo aquele
que se encanta com poemas?
O tempo da
surpresa
Foi dito
que a palavra de Helder nos apanha de surpresa. A surpresa,
aliás, a capacidade dessa obra em nos atingir pela singularidade,
é uma de suas vias de entrada. A surpresa é aquilo que desarma
o imaginário. É o fascínio que não nos dá tempo para saber
o que o provoca. Tudo surge em bloco: "Não te chames mais,
adolescente / comendo uvas negras. / Abres a camisa em que
escutas todas as mãos do vento. / E vês atrás de ti as máquinas
resolutas / de fabricar as formas rápidas, / e convulsas,
do esquecimento." É o poder da beleza. E o olhar, satisfeito,
se recolhe às pálpebras, enquanto a música ainda soa nos ouvidos.
Está tudo dito de uma vez, como falam as espadas. Está tudo
dito, exatamente porque nada ainda o foi à exaustão; dito
porque a bem dizer a voz do poema foi ao fundo e voltou à
superfície das coisas; está tudo fluindo como o rio de Heráclito,
porque o tempo da anunciação jamais se esgota, ele é a negação
do tempo, o alento de que no fundo é a idéia de tempo que
se encerra durante a nossa percepção das coisas na leitura:
"... o poema faz-se contra a carne e o tempo". Esse tempo
(em que a própria noção de tempo é suprimida) é o da descoberta,
do conhecimento, da celebração e gozo daquilo que anima o
poema em efervescência. É quando nos encontramos por trás
das coisas (ou entre elas) e vemos um corpo (nos vemos) se
reconhecendo como parte do processo em que o ser se mostra
na linguagem, nessa camisa que se abre, nessas mãos do vento
que se ouve dentro, nessas máquinas de fabricar formas rápidas;
tudo enfim que se vê entre as coisas nos vem do esquecimento
do ser que o poema revive na linguagem. Tempo de sobrevivência
e reinvenção da memória. Tempo de eternidade. E mesmo que
este movimento intenso contenha a morte (o poema é aquilo
que vive de sua morte) que vomita em nossos olhos, soltando
tinta pela boca, o poema se torna o que é, e permanece sendo
a despeito de tudo, porque sua maior proeza, seu maior poder,
é sobreviver a seus efeitos.
A voz
interminável
E este viço
da obra helderiana, esta sensação de que presenciamos o puro
movimento de seu fluxo? Esta poesia que parece ter nascido
pronta? Eis o efeito lapidar dessa forma que conjuga acabamento
e permanência com poder de revitalização na leitura. Forma
que perdura por conter em si mesma a potência do Aberto.
Tal dispositivo,
essencial em poesia, permite que na trama dos signos as imagens
se processem em cadeia e o sujeito da enunciação, a forma
ou fantasma que se nomeia por de trás da voz, vá sempre pontuando
e apresentando o gesto que desencadeia as imagens. O sujeito
da enunciação retém o tom, isto é, as rédeas da voz, enquanto
as palavras copulam livremente entre si produzindo o efeito
em cadeia da pluralidade semântica. E o poeta ainda acha pouco:
"Apenas te digo o ouro de uma palavra no meio da névoa, /
formosura inclinada sobre a cinza descerrada / e o frio dos
retratos". O sintagma helderiano é um corredor de imagens
alucinadas, que procriam em solo fértil e revelador.
O modo como
estes poemas se renovam na leitura enquanto ela mesma se revitaliza
na maneira de lê-los, indica por si só que eles já preparam
em sua base o olhar futuro assegurando a permanência da obra.
A obra é permanente porque a voz que a impulsiona é única
e se apresenta interminável desde a sua origem irrevelada.
O interminável na linguagem poética demonstra ser aquilo que
imprime nas palavras e nos ligamentos entre elas o sopro absoluto
da continuidade, aquele impulso primordial que só se interrompe
quando realiza plenamente suas formas, para ser retomado logo
adiante, ao se virar a página e os olhos.
As
trocas corpóreas
Duas idéias
de Georges Bataille sobre a poesia: ela chega ao mesmo ponto
que o erotismo; ela leva ao impossível. Não é o que aspira
toda grande poesia, ao menos desde Baudelaire: dar forma e
corporeidade sonora ao impossível, àquilo que subsiste imanente
na relação entre o homem e as coisas? Ou nas palavras deste
último: "Mergulhar ao fundo do abismo, Inferno ou Céu, não
importa / Ao fundo do Desconhecido para encontrar o novo!"?
O novo, o
mais caro valor da modernidade, é a forma que a poesia adquire
ao sondar o impossível.
A rigor,
o "novo" é o que nos permite atualizar as relações entre a
linguagem e as coisas para potencializá-las, e restaurar o
sentido do ser. Só então ele é "nomeado" pela poesia, só aí
recebe carnação vigorosa.
Na poética
de Herberto Helder, esse procedimento é tal que os signos
do corpo qualificam entidades abstratas e os elementos da
linguagem são por sua vez corporificados. Em suma: é de uma
troca corpórea que se trata, pois "Na frase vejo os fulcros
da pessoa". (...) "a frase que é uma pálpebra viva".
Recurso de
grande efeito, pois dá voz aos seres do poema, tornando-os
referências concretas nas relações entre as coisas e as
palavras. É um rudimento de metalinguagem que entra nessa
operação, mas apenas alguns elementos essenciais que
simbolizam o "falar consigo mesma" da linguagem
incorporando o mundo todo em sua rede. Os termos mais comuns
desse léxico são: "poema", "frase", "palavra",
"forma", "imagem", e derivados, por contaminação
metonímica, como "boca", "mãos", "olhos", "língua",
"voz" e "silêncio".
Assim, o poeta diz: "Escrevi a imagem que era a
cicatriz de outra imagem. / A mão experimental
transtornava-se ao serviço / escrito / das vozes". Ou
ainda: "Pratiquei a minha arte de roseira: a fria inclinação
das rosas contra os dedos / iluminava em baixo / as
palavras".
O recurso
é conhecido em poesia, mas ressurge de modo pessoal em Helder,
que cria uma trama ambivalente (e sinestésica) na qual a linguagem
se remete às coisas e as coisas à linguagem de modo obsessivo,
e o poema se mostra um ser vivo que respira, dono de um corpo
transparente onde podemos ver as relações entre as palavras
e as coisas, as quais, nos levam a outras e assim por diante,
irradiando sentidos na ilusão do infinito e na sugestão da
continuidade. O poema identifica-se ao mesmo tempo ao mundo
e à linguagem, no exato instante de sua fusão no ser. Vê-se
que é o próprio poema que se assume como sujeito da enunciação.
Mas evidentemente como máscara, como efeito. Véu e transparência,
carne e letra, tinta e sangue, as substâncias dessa trama
ficcional. E o que se representa de "ficção" aqui, diga-se
de passagem, é meramente o seu efeito (que em outros casos
nos levaria a pensar em paródia ou estilização), como um
simulacro do relato e do sonho da presença referencial
concernentes aos procedimentos da prosa.
O que faz
o poeta é nomear o fluxo, o impulso criador, com essas entidades,
para que se possa visualizá-lo. O que nos faz pensar que a
poesia é um fluxo que condensa no corpo simbólico do poeta
o ser da linguagem e das coisas, e que só nos chega como efeito.
Um corpo de tinta e sangue que nos entra pelos olhos; um ser
por onde entramos e saímos, e que, ao percorrê-lo, sabemos
que todo o percurso é realizado no interior de nós mesmos,
nesse entrelaçamento de substâncias incorpóreas, nessa relação
ambivalente, em que trocamos com o Outro identidades e diferenças,
e que ao final das sucessivas leituras, ou no recomeço de
uma nova experiência com as palavras, temos a impressão de
que, não sendo mais quem somos, nos sentimos, contudo, cada
vez mais perto de nós mesmos.
Talvez o
"novo" em poesia, em literatura, seja o ponto cintilante em
que se cruzam, se aglutinam, se mesclam, a carne do poeta
e a carne do mundo, como uma "maneira de pôr os dedos / sobre
a escrita impossível". Um modo de atualizar em linguagem a
presença do indizível, do que agora mesmo nos chega na surdina
e nos toca, nos surpreende, sem que possamos vê-lo.
O poema é
o acontecimento que revela esse encontro à sua época, e que
assim fazendo, na melhor das hipóteses, pode tornar-se um
legado de todas as épocas.
O
reino das imagens
Há um
substrato em poesia que se faz corpo e luz, sendo o destino
formal das palavras: a imagem.
A imagem,
numa definição de Yves Bonnefoy (Lieux et destins
de l'image. Paris, Seuil, 1999, p. 26), "esta
impressão da realidade enfim plenamente encarnada"*; ou ainda
no sentido que entendia Baudelaire (citado por Bonnefoy):
"O culto das imagens, minha grande, minha única, minha primitiva
paixão" (Idem, ibidem.).
A imagem
é um produto das palavras, seu efeito plástico, enquanto o
poema é o devir da imagem. Quando a escrita atinge essa dimensão,
sai de um plano mais abstrato e nos "devolve" a realidade,
ainda que transfigurada pelo poeta.
"Leopardos
vivos debaixo das coroas, e os leões que alguém / soprou na
boca. Como descem o ar / e a água das montanhas, como / se
embrenham pelas árvores sangrando no escuro - e saem / ao
reluzir dos dedos e aos cantos roucos, nas áfricas". Ou então:
"canta até te mudares em azul / ou estrela electrocutada".
A realidade
transfigurada é essa deformação de sentido que nos permite
vislumbrar as possibilidades do real levado às últimas conseqüências.
Em todo caso, o princípio é esse: transformar as condições
formais da realidade pela ilusão da escrita, levando ao limite
nossa relação com o ser, o que a intensifica e a enriquece.
Eis o momento
em que o poeta exclama: "É preciso que Deus se liberte dos
meus dons". A realidade que o poeta inventa é outra. Já não
se corresponde mais àquela criada por Deus. Mas que tipo de
realidade nos poderão conceber dons poéticos esvaziados da
substância divina?
Por sua conta
e risco, o exercício alucinado do poema quer levar à frente
um projeto mirabolante de reconstrução do mundo em imagens,
pegando-o no ponto em que Deus o deixou. O velho criador e
a realidade anterior ficam no caminho, destroçados pela experiência
poética, onde "Deus é destruído pelo extremo exercício / da
beleza". A beleza não pondera. É capaz de tudo; sua ação não
tem limites. Nem Deus resiste ao seu poder. Renegando toda
a tradição da metafísica ocidental, que coloca a beleza no
reino do espírito, o poeta a reclama para si, isto é, para
o corpo do poema. A beleza é uma força pura, além do bem e
do mal. Uma força que chega a erguer o poema do papel.
No trato
com as palavras, o critério em vigor é o da lei de Novalis:
"quanto mais poético, mais verdadeiro". No entanto, o "mais
poético" em Herberto Helder é o que aproxima os seres num
estranhamento ou relação insólita quase ao ponto de ofuscar
nossa visão sobre eles: "Eu era um amante que era uma semana
/ de lado: / ou era a chuva / amada por uma misteriosa velocidade,
/ ou o sol que a lentidão / apaixona por dentro".
É possível
falar aqui em destruição violenta das vias normais da comunicação
em nome de uma atitude radical diante da linguagem. Destruição
e violência, no sentido dionisíaco de que qualquer morte ascende
ao sublime, qualquer sofrimento é glorificado pela alegria
e pela afirmação do ser.
A
metamorfose
À exceção
de anjos e seres mitológicos, o homem não tem asas. Pêras
muito menos. Pêras aladas talvez constem dos catálogos de
imagens surreais, ou de algum desenho animado mais antigo
(no tempo em que a ingenuidade combinava muito bem com o lúdico),
mas a rigor não existem.
Num poema,
no entanto, não é estranho que figuras assim abundem (tudo
nele é possível), na livre associação das imagens. O poeta
descobre que transfigurar as coisas não altera sua realidade,
mas cria novas possibilidades de acesso a elas. O que em geral
produz efeito são os cruzamentos de sentidos, as aproximações
bruscas e carnais entre os dessemelhantes, a ponto de o poeta
dizer: "Descobri que tinha asas como uma pêra / que desce".
Assim, em
Herberto Helder, o princípio de identidade funciona onde menos
se espera. Os seres distintos se aproximam, seu lado sombrio
vem à tona, eles se fundem, se iluminam, num amor monstruoso,
sob um fogo roubado ou prometéico, enriquecendo nossa visão
sobre as coisas. Num instante, não há mais barreiras nessa
cópula universal dos seres. As palavras tornam-se "híbridos
de fantasmas e plantas", como diria o Zaratustra de Nietzsche,
abertamente promíscuas. Helder faz dessa promiscuidade uma
sagração. Todas as coisas se identificam, se misturam em doação
alquímica, o que no terreno das figuras leva o poeta a encontrar
novas vias de acesso ao singular.
O singular
é a mais plena manifestação do ser, quando mostra que no fundo
cada coisa, por mais ínfima que seja, é um prisma da descomunal
beleza do múltiplo.
Com quantas
vozes se faz uma voz? Ou, como pergunta o poeta: "Que voz
me dão as vozes? Que doçura ou inocência / ou arte / oculta
manobra a minha vida por entre aquilo / que se transforma?"
A voz que
o poeta recebe e a "arte oculta" que manobra sua vida (do
poema) são nomeações do que opera na linguagem, "entre aquilo
que se transforma", e o movimento das imagens que acelera
a transfiguração enquanto o impulso criador permanece o mesmo,
pois do contrário nada poderia alterar-se. Algo só se altera
em seqüência, se a ação que desencadeia o fenômeno tem em
sua base uma força estável e vigorosa como uma raiz escura
que o poeta ouve e transforma em voz.
Essa ação
transfiguradora, essencial em poesia, é a pedra de toque da
obra de Herberto Helder, cuja têmpera raramente se altera
para que se evidencie a metamorfose por que passam os seres
da linguagem.
Os elementos
de um poema estão sempre em movimento, e não raramente seus
sentidos se encontram suspensos (ao contrário dos sentidos
fixos da comunicação).
No poema,
o movimento das imagens pode gerar metamorfoses. Seu fenômeno
se desencadeia como a morte de um corpo. Mas um corpo que
renascesse em outro furiosamente. A transformação de alguma
coisa em outra potencializa o ser que assim se abre para novos
significados, enquanto seu impulso se mantém inabalável como
a pérola em sua concha. Muitas vozes se ouve lá dentro, desde
os primeiros Homeros. Um mar de vozes e ressonâncias. Mas
a pérola é a mesma.
De fato,
o poema é um ser mutante nas mãos do poeta, e quando pronto
continua alterando, na imaterialidade da leitura, as sucessivas
visões que se têm sobre ele. Em outras palavras: o poema é
a forma perene que o ser da linguagem adquire numa interrogação
contínua pelo ser. Por isso, a poesia que fixa sentidos e
não movimenta os olhos na direção do sublime não interessa
à literatura.
Mas e a metamorfose?
Quando ela ocorre? Quando as imagens internalizam o movimento
e deixam de ser o que são se transformando integralmente em
conseqüência do movimento. Os poemas resultam das metamorfoses
sucessivas de suas imagens. Eis um dos pontos em que mais
vibra a lira de Herberto Helder.
A
linguagem pura
O que dizer
desse poeta que exclama: "amo a loucura - / a cabeça gelada
sobre a corrente pura do terror"? A linguagem de Helder pode
parecer violenta, exasperada, porque de hábito ela força os
sentidos, desviando-os de seu uso na comunicação. Tal elasticidade
semântica, que por vezes nos apresenta as palavras quase rasgadas
por sua força e beleza, torna qualquer supremacia de sentido
irrelevante. E sua poesia sabe disso melhor que ninguém. Ela
é feita dessa disposição imanente, aliás revelada sem
pudor pelo poeta: "Quero um erro de gramática que refaça /
na metade luminosa o poema do mundo, / e que Deus mantenha
oculto na metade nocturna / o erro do erro: / alta voltagem
do ouro, / bafo no rosto".
A suposta
violência a desencadear certa desordem entre os elementos
e conseqüentes remanejamentos em suas funções simbólicas,
é na realidade uma prova de amor da poesia por seus filhos
de linguagem, que como boa mãe se consuma neles, sem diferenciá-los
entre si. Afinal, "As mães são as mais altas coisas / que
os filhos criam, porque se colocam na combustão dos filhos".
E porque tudo pode "ser reencontrado por dentro do amor".
Eis porque
"Esta linguagem é pura. No meio está uma fogueira / e a eternidade
nas mãos." Nas
mãos em que a própria eternidade se queima, todas as coisas
se consumam sem no entanto se consumirem, pois o que arde
eternamente existe ao menos em combustão, na permanência do
desejo de existir.
A pureza
dessa linguagem é feita do reconhecimento de que todos os
signos são iguais, assim como a natureza de todas as coisas.
Todas as palavras são bem-vindas na medida em que são condutoras
de sentido, e em suas trocas simbólicas exprimem a pluralidade
do ser, "Folha a folha como se constrói um pássaro / e entre
si o ar e a árvore / se iluminam".
Todas as
paixões e afetos participam do poema, e do mesmo modo seus
derivados semânticos: o amoroso, o delicado, mas também o
cruel, o terrível. Enfim, todos os seres díspares e semelhantes
se reúnem, se entremeiam, se ajustam, se consumam, como numa
festa dionisíaca em celebração à vida e à afirmação do ser.
A verdadeira
pureza não é o que se opõe ao abjeto, à sujeira, ao horror,
mas o que acolhe esses elementos em si mesmo por não se distinguir
deles. Singular, sofisticada, a pureza é a glória do neutro.
Razão
e loucura
Pode-se pensar
com Maurice Blanchot (L'entretien infini. Paris, Gallimard,
1969, p. 296), quando se pronuncia a propósito da exclusão
da loucura (ou des-razão) com o estabelecimento do cogito
cartesiano, ou da razão auto-cognitiva, a consciência, este
momento em que o eu se constitui na história do pensamento
e da cultura. O problema que Blanchot ilumina é que, no fundo,
nenhum pensamento criador e nenhum produto desse pensamento
se erige lucidamente sem cruzar com a loucura, sem cair nesse
abismo da linguagem. O fato é que nesse cruzamento todo absurdo
se redime, toda estranheza se esclarece, todo crime se dissolve,
se transubstancia, a ponto de se tornar sublime, toda maledicência,
enfim, se perde nas ondulações do sentido, que de tão humano
e demasiado se expia favorecendo os acordos do verbo, sublimando
as contradições da vida, as dificuldades da existência. Há
que se pensar na experiência de Hölderlin, de Nerval, de Nietzsche,
de todos aqueles para quem a escrita é só uma via do ser (para
eles a única), que neutraliza a diferença, equaciona o imponderável
e canaliza a existência.
O poeta é
aquele que tem "uma vida entre muitos dons", exatamente porque
não vê limites em suas ações. A poesia pode tudo. Ele então
se sente "Com raízes de quem divaga". E pode ser "Uma pedra
sem som como quem se move / sobre os alimentos". Como se viu,
todo cruzamento, toda permuta ou colisão verbal é admissível,
por mais disparatada que seja, toda aventura da palavra é
louvável desde que soe poética.
E se o critério
é ela mesma, a poesia, há que se reconhecer a beleza e seus
efeitos na singular aderência do ser pela linguagem. Esse
reconhecimento, aliás, é o que desperta o ser do poema, cujo
efeito, o poeta pode sentir em si mesmo e nomear como "Uma
golfada de ar que me acorda numa imagem larga". É o que acontece
nesse impulso formidável, sem fronteiras, além da razão e
da loucura, quando a expansão do ser viabiliza as condições
que nos permitem visualizar sua grandeza. Eis a ocorrência
miraculosa do que se desvela aos nossos olhos como ser da
poesia e poesia do ser.
Há quem continue
dizendo que os elementos enlouqueceram, que a sintaxe disparatou,
que o poema leva o sentido ao paroxismo, ao absurdo: "Não
toques nos objetos imediatos. / A harmonia queima. / Por mais
leve que seja um bule ou uma chávena, / são loucos todos os
objetos." Temos aqui elementos alucinados em estranha harmonia.
O poema é um todo orgânico, mas não dá sossego ao sentido.
Entretanto,
se a poesia altera nossa relação com as palavras e com o mundo,
se as palavras geram novos significados e efeitos porque agora
estão livres do bem e do mal, ou acima deles; porque em solidariedade
umas com as outras podem exprimir tudo, podem revelar o que
queiram anjos e demônios, é porque seguem outra lógica, apelam
a outros elementos, como
o ritmo e a pulsação do poema, sua plasticidade, sua
música.
Ao ler um
poema, nunca sabemos para onde vamos (se realmente vamos a
algum lugar); a leitura nos remete a várias direções possíveis,
o que, a bem da verdade, significa direção nenhuma. Nossa
única certeza é o deslumbramento. É difícil saber porque algo
nos fascina num poema. Mas o fascínio é a melhor prova de
que em seu evento mobilizamos toda força interior, todo impulso
que nos arranca da obscuridade de nós mesmos, e ao intensificar
nossa relação com a linguagem, com as coisas, também nos
faz sentir mais vivos.
A propósito,
a poesia de Herberto Helder é violenta na medida em que nos
diz o que só se sustenta num poema. Ela nos ensina a ver de
outro modo, a discernir as relações intrínsecas do ser com
a linguagem, invisíveis ao olhar comum. "Ocupo-me nos símbolos,
e gostaria / que meu coração / entontecesse lentamente, que
meu coração / caísse numa espécie de extática e sagrada loucura."
A propósito:
a loucura nos assusta porque é incomunicável, vem de um território
à parte, e se constitui numa linguagem de exceção. A loucura
é como o mal, há sempre o lado oposto, a outra margem, de
onde, acredita-se, reina a transparência, a razão é soberana,
o bom senso basta à tolerância humana e ao bem estar de nossas
vidas. Sabemos, no entanto, que tais bandeiras se assentam
na lama, e no máximo tremulam num fundo de ilusão radiante.
Mas e a razão?
O que dizer da razão no poema, senão que "... a razão é ter
um galho nos dedos, e que, / pelo calor dos dedos, o galho
/ floresça". Mas isso não se aplica também à loucura?
Pensando-se
no trânsito entre a razão e a loucura que leva o ser da
poesia a exprimir-se, podemos dizer com o poeta que "(...)
nessa / loucura / cada coisa tomaria seu próprio nome e espírito,
/ e cada nome seria iluminado / por todos os outros nomes da
terra, e tudo / arderia num só fogo, entre o espaço violento
/ do mês da primavera e a terra / baixa e magnífica".
Essa loucura,
a que alude o poema, é simplesmente um momento maravilhoso
de entrega e fusão ao qual a matéria do ser e das coisas aderem
peremptoriamente, constituindo a linguagem de modo contínuo
em puro fluir. O poema então promove a captura inapreensível
do ser, ele o dispõe num vidro mágico (nosso olhar, as palavras),
um vidro que nenhuma outra indústria poderia fabricar, e só
apelando aos deuses, como no poema XIII de Catulo, para que
"nos façam todos nariz", ou outro miraculoso sentido para
o inefável. A poesia que o atinge em cheio preenche com palavras
(e imagens) o vazio, a falta que persiste entre nós e o mundo,
entre o ser e as coisas.
Eis o rio
do ser contido por Helder: "(...) rio / bárbaro onde / os
afogados aparecem cegamente abraçados a enormes / luas impassíveis".
Este é um rio de sobrevivência, onde os afogados têm direito
ao delírio, e a morte se revela apenas uma máscara que a vida
usa para flagrar o inapreensível. Eles estão cegos porque
o sofrimento e a perda são elementos necessários, imprescindíveis
do existir, mas cegos que alcançam o inatingível, e vislumbram
o sublime.
*
Um efeito,
paradoxalmente, é o que há de mais concreto num poema. O efeito
é o que subsiste quando as coisas se vão, quando o mundo se
ausenta. O efeito é a alma do poema. É aí que o pensamento
se encarna na linguagem, e revela seu ser. Eis o fascínio
da leitura, quando esquecemos estar diante de um livro e nos
tornamos o próprio livro, as palavras, as imagens de que é
feito nesse diálogo flutuante com o ser que os signos excedem
ao sobrevoar o impossível.
Assim, o que
só se sustenta no poema, e que nos leva a saudá-lo, a ter
com ele um pacto de tolerância alegre, de cumplicidade
silenciosa (alguns dirão absurda), pode ser atribuído tão
somente a esta disposição da matéria lírica em
aventurar-se no limite, abolindo a fronteira entre a razão e
a loucura, para apreender o ser à deriva, onde ele nos
escapa, onde não estamos acostumados a surpreendê-lo em seus
mais diversos matizes. Daí os agenciamentos insólitos,
inesperados, os sintagmas alucinados de Helder, forçando a língua
a exceder as formas do discurso, mas na medida em que ela
mesma, a língua, ou, mais apropriadamente, a linguagem (o que
a põe em funcionamento), se mostra tão solidária com suas
formas e operações internas, e se sabe tão lúcida de seu
movimento, que todo absurdo se revela plausível, toda violência
se torna pacífica, e entramos de sola na intimidade do poeta
para ouvi-lo: "Os lençóis brilham como se eu tivesse
tomado veneno".
Eis o que
se poderia chamar de lirismo subversivo, isto é, quando
as articulações da palavra poética produzem uma moralidade
neutra e sublime em nome da mais atroz beleza.
De resto,
se a analogia nos serve, podemos pensar na razão e na loucura
como um rosto e seu reflexo num espelho, o espelho do poema.
Qualquer um dos elementos, pode ser o rosto que olha ou seu
reflexo, na medida em que ambos se consumam na ação de ver,
ambos se olham e se vêem ao mesmo tempo.
Violência
e música
Foi dito
que a poesia de Herberto Helder é violenta. Cabe ainda salientar
o modo como ela opera esse impulso estranho "que nos interessa:
destruir os textos". A norma utilizada é quase sempre a da
concordia discors, em que há uma concordância de opostos;
não por acaso, o lema central de Heráclito: harmonia entre
os contrários.
A violência
helderiana se nega afirmando ou se afirma negando. Sucede
em muitos poemas de o poeta obrigar as linhas (não se as poderia
chamar de versos) a distorcer o sentido das palavras em ligações
inesperadas, que também acabam por suavizá-lo, seja pela sonoridade
da construção, seja pelo sentido invertido no final da imagem,
pois "desta pata monstruosa escorre sempre ternura". Eis o
arco a lira de Herberto Helder.
Assim, seus
poemas sofrem uma espécie de "transfiguração
redentora", como aliás exemplifica este "homem", figura
ou efeito de sentido mascarado de feições humanas, pois ele
"É um homem devastado pelo pensamento da alegria".
É certo que
num viés nietzscheano, muito freqüente em Herberto Helder,
transborda na trama o impulso dionisíaco. Dionísio é justamente
esse deus cujo espírito ou presença era evocado pelo ritual
do coro da tragédia grega; a tragédia, que segundo Nietzsche,
nasceu da música. No impulso dionisíaco, violência, sofrimento
e êxtase, são elementos indissociáveis.
No sacrifício
das palavras, o poema se faz imagem, som e sentido. Mas é na
música que ele renasce, e encontra a dimensão final de sua
forma. Vale lembrar que um poema pode ser ouvido em silêncio
enquanto é lido. E sendo a música o que propriamente o
finaliza, ela acaba contendo todos os seus elementos. Nesse
aspecto, um poema não termina pela imagem. Ele depende da música
para completar sua forma.
As imagens
surgem no sacrifício das palavras, em meio à sonoridade incipiente.
É no fundo um ritual de vida e morte. O poeta explica: "porque
a violência / alimenta-se de música, / música fervente". E
a palavra violentada, transfigurada pela imagem, destituída
de sua significação corrente, torna-se afinal música da forma,
da imagem, do sentido; música do silêncio (como diria Mallarmé).
Certamente
por isso, a violência em Helder nunca é gratuita, isto é,
nunca vive apenas numa face do sentido. Ela é sempre um efeito
das operações secretas da linguagem. O que é violento é o
procedimento, jamais seu apelo.
Se a violência
é uma "disposição imanente" da poesia helderiana, revelada
pela antítese e suprimida no reverso do sentido, ela perde
seu impacto na ambivalência do poema, quando ele encontra
na imagem sonora sua forma final. E se a violência se alimenta
de música, como diz o poeta, é para conservar seu efeito de
realidade dúbia, significante, para ressaltar na imagem (na
violência) a música essencial do poema.
A
lucidez
A poesia
é um rito em que a linguagem celebra o ser, e do qual o leitor
participa ao mergulhar no coração das palavras em sacrifício
e êxtase, onde pulsa a vida, onde o ser da poesia se confunde
com a poesia do ser. E isso os poemas de Herberto Helder revelam
com grande paixão e verdade, no que ambas têm de loucura e
razão. Não há nada mais lúcido. Ou, a dizer com Nietzsche:
"só louco! só poeta!"
Sobre a lucidez
se poderia dizer o seguinte: além da sensação onipotente que
triunfa em qualquer território, que vigora em qualquer margem
em nome da evidência (ou do delírio) e seu sentido triunfante,
ela parece ser a conquista definitiva do pensamento (da linguagem)
que permite ver.
Mais uma vez
Nietzsche: "há algo de loucura na paixão; mas, também, há
algo de razão na loucura".
*
Contador
Borges, poeta, tradutor e ensaísta, nasceu em São Paulo (SP),
em 1954. Publicou os livros de poemas Angelolatria (1997)
e O Reino da Pele (2003), traduções de Sade e Char,
entre outros títulos.
*
Leia também os poemas
de Contador Borges e o seu ensaio
sobre Horácio Costa.
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