DA
PINTURA AO POEMA
Leonardo
Gandolfi
Será
que nossa reação ao ler um poema pode ser análoga
ao ato de olhar um quadro? Essa pergunta não poderia
ter uma resposta ligeira. O tema é antigo, sua discussão
existe, entre nós, pelo menos desde o Renascimento.
E o que dizer de poemas que fazem menção a pinturas?
Se para a primeira pergunta a relação talvez
seja da ordem do possível; para a segunda, essa relação
parece ser da ordem do necessário: o motivo do poema
é a referência a uma outra obra. Esse encontro
explícito, que se faz obrigatório, não
traz nada de facilitador, ao contrário, configura-se,
a partir disso, algo ainda mais complexo e sinuoso.
Longe de
querer responder a tais questões, queremos, apenas
trazê-las à tona. Nosso ponto de partida é
a poesia do português Joaquim Manuel Magalhães,
mais especificamente de um de seus livros chamado Uma exposição,
presente no volume Alguns livros reunidos. A exposição
mencionada no título do livro diz respeito à
obra de Edward Hopper. Informa-nos o poeta que os nomes dos
poemas são nomes de quadros do pintor americano. A
referência aqui é imediata. Sua escolha não
será aleatória: ao "dedicar" todo
o livro a Hopper, Magalhães acaba por criar uma relação
inequívoca, a partir de então, entre os dois.
Assim, nossa primeira atitude foi comparar o poema com seu
respectivo quadro. Quisemos, assim, de imediato, ler os versos
e olhar para a pintura, ver, de algum modo, no primeiro, uma
espécie de legenda do segundo, atitude nossa que se
mostrou um tanto ingênua. A mera representação
não aconteceu, ou, pelo menos, não se deu como
esperávamos. Entender essas semelhanças e diferenças
é o nosso propósito aqui.
Como já se disse, a relação entre poema
e pintura é antiga. O célebre verso de Horácio
ut pictura poesis é exemplar disso: assim como a pintura,
a poesia. As relações dessas artes são
homólogas, porque ambas possuem o pressuposto da função
mimética -encenação da realidade, numa
através de palavras, noutra através de imagens.
É no Renascimento que o diálogo se intensifica.
A pintura quer se teorizar, e o faz através dos tratados
de retórica e de poética herdados de pensadores
da Antiguidade como Aristóteles. Já para Leonardo
da Vinci era a poesia que estava subjugada à pintura,
porque esta demonstrava um efeito mais imediato no homem que
aquela. Como Platão, Leonardo acreditava ser a visão
a função central dos sentidos. A pintura, para
ele, era mais universal, pois não precisava de intérpretes.
O que de fato importa agora é a freqüente analogia
feita entre ambas as artes. A pintura chegou a ser considerada
a poesia muda, e a poesia, a pintura falada.
Vamos partir
assim da poesia, de fato, nosso primeiro interesse. Joaquim
Manuel Magalhães publicou pela primeira vez em 1974.
O ano é crucial: 25 de abril, a Revolução
dos Cravos e o fim da mais longa ditadura no Ocidente. Nos
anos 70 do século XX, a poesia portuguesa conheceu
um novo rumo. Costuma-se falar de uma poética mais
narrativa, menos preocupada com tensões lingüísticas.
Essa geração de 70, que nem mesmo formou grupo
algum, acabou por se colocar como contraponto a uma poesia
portuguesa anterior de inflexão metafórica e
de grande preocupação com a palavra. Falamos
aqui da década de 60, época em que a poesia
portuguesa conheceu os nomes de Herberto Helder e dos poetas
da Poesia-61, mormente Luiza Neto Jorge, Fiama Hasse Pais
Brandão e Gastão Cruz. Outros poetas ainda,
como Carlos de Oliveira e António Ramos Rosa, anteriores
a 60, deram um renovado rumo a sua obra. Nessa poesia, deparamos-nos
com certa rarefação do sentido, uma ruptura
com o real, ou seja, com a problematização da
função mimética da linguagem. Esse pendor
abstratizante coadunou-se com a entronização
da palavra, transformando o poema em um exercício rigoroso
de linguagem - prática análoga aqui, entre nós
brasileiros, a de João Cabral. A poesia feita a partir
da década de 70 está justamente sobre tal fissura:
a de devolver à linguagem sua função
mimética. E tem filiação, podemos dizer,
na anterior poesia de Ruy Belo e Jorge de Sena, poéticas
mais discursivas. Joaquim Manuel Magalhães - que também
foi grande crítico da década de 70, função
semelhante a de Gastão Cruz nos anos 60 - afirmou que
essa poesia era a do "regresso ao real" , ou seja,
um retorno à linguagem como possibilidade e não
como impossibilidade do dizer. Falamos aqui numa espécie
de realismo, pois tem como objetivo dar conta de um real menos
rarefeito, mais presente aos sentidos. Desses sentidos, destacamos
propositalmente a visão. É por meio dela que
essa poesia tentará se aproximar de uma realidade comum.
Como diz Fernando Pinto do Amaral, há uma "tentativa
de comunicar com alguém"; a isso o crítico
contrapõe "a experimentação meramente
lingüística" de certa poesia anterior. Há
uma espécie de "capacidade referenciadora"
, que traria consigo o que a linguagem tem de mais afirmativo,
isto é, não há mais a grande preocupação
de romper ou inovar o cânone, o poema existe para dar
conta de uma realidade que se quer mais como discurso que
experiência verbal. Fala-se até num "predomínio
do significado sobre o significante" . Assim, recorrer
ao olhar será um dos principais artifícios desses
poetas. Entre eles, além de Magalhães, vale
citar os nomes de António Franco Alexandre e João
Miguel Fernandes Jorge.
A partir
disso é que talvez se torne possível uma aproximação
da poesia de Joaquim Manuel Magalhães aos quadros de
Edward Hopper. Há uma interpelação ao
visual que os aproxima. O poeta, ao recorrer ao pintor, tenta
dar a sua obra uma dicção visual particular.
Citar Hopper talvez seja, para Magalhães, inscrever-se
numa ordem do real bem pessoal. Pois, esse retorno à
referencialidade não pode ser tomado aqui como ingênuo.
Não à toa, o poeta não se prende àquela
força da linguagem utópica presente na melhor
poesia moderna. Esse retorno, como pode parecer num primeiro
momento, não significa que a linguagem pode dar conta
perfeitamente da realidade. A lição que a poesia
moderna deixou - aquilo que está entre o ter que dizer
e o não poder - foi apreendida pelo poeta e retrabalhada.
Se, antes, o que importava era o nível de tensão
lingüística experimentado por um sujeito rarefeito
no poema - em Magalhães e em outros, o que mais importa,
no poema, é o desencadear de uma experiência
pessoal e referencial, no entanto, ainda submetida ao poema.
Ou melhor, a linguagem não rasura o sujeito, é
o sujeito quem se rasura na linguagem. Esse Eu poético
não é, entretanto, aquela figura integral que,
em geral, notamos na literatura romântica. Trata-se
de um sujeito mais percebido do que realmente presente. Ou
para falar como Fernando Pinto do Amaral: "subjetividade
[que] se difunde mais como um efeito emocional (...) do que
como fruto de uma forte e directa presença biográfica"
. O poeta está consciente de que o que ele vê
está subordinado a um código. A linguagem é
questionada, mas não entronizada no poema. O problema
da linguagem é só mais um dos inúmeros
problemas desse sujeito.
O primeiro
ponto de contato dessa poesia com a pintura de Hopper talvez
seja justamente esse retorno ao real, à referencialidade.
O pintor americano começa sua trajetória artística
na primeira década do século XX, em pleno coração
da modernidade. Suas telas, nesse período, ainda têm
um quê de impressionista; seus contornos são
mais sugeridos que mostrados. As décadas seguintes
conheceram um pintor que se encaminhava para um realismo.
Algumas características, porém, nunca deixaram
Hopper ser, de fato, um pintor realista, pelo menos naquela
concepção do século XIX. Primeiro, pelas
suas cores pouco habituais e traços quase que inverossímeis,
que posteriormente influenciariam tanto os comics quanto os
cartoons norte-americanos. Segundo, pelos seus enquadramentos,
atípicos para pintura, assimilados da então
recente linguagem cinematográfica. Fora isso, os quadros
de Hopper são, a princípio, representações
do real. Nele, de modo diferente de seus contemporâneos,
o tema se sobrepõe a técnica, ou seja, a linguagem
serve a um fato que não ela mesma. Por isso, sua obra
talvez não tenha atingido a repercussão das
obras de um Picasso, Mondrian ou Miró. Esses artistas
se consagrariam justamente devido ao afastamento de uma linguagem
plástica figurativa. A referencialidade de Hopper acaba
por estar na contramão da pintura na primeira metade
do século XX. Seus quadros são inquestionavelmente
figurativos.
É
aqui que se dá a aproximação com a poesia
de Magalhães. Ambas as obras, apesar da diferença
de expressão, tratam de um real imediato. Tanto num
como no outro, o que interessa é o fato que, primeiro,
se dá diante dos olhos: realidade social reconhecível
pelo leitor/espectador. Em seus quadros também há
esse "regresso ao real" e foi isso que o tornou
interessante ao poeta português. As obras se cruzam
aqui, nessa experiência mimética revista, pois
Hopper pinta uma realidade que ele sabe que é mediada.
Sua figuração não é uma atitude
ingênua, ao contrário, é um artifício
usado pelo pintor. Essa consciência faz com que seus
quadros exprimam algo abstrato em meio às sólidas
referências. Apesar de imediatamente reconhecidas por
quem as vê, as paisagens e as cenas urbanas de Hopper
conotam mais que denotam. Mais que uma paisagem, há
uma sugestão de paisagem que provoca no espectador
um silêncio. A representação está
sempre subjugada a um enquadramento que está dentro
do próprio quadro; na maioria das vezes feito por janelas.
Como em Magalhães, a objetividade de sua obra é
subjetiva. Assim, por trás de cada enquadramento deixa-se
ver um sujeito. Fato completamente diferente, por exemplo,
de um quadro cubista, cujo excesso de perspectiva, em verdade,
revela a falta dela. A linguagem figurativa do pintor americano,
ao invés de dar a ver uma cena para contemplação,
interroga-nos de forma quase obrigatória. A abstração
aqui não se dá através da abolição
da perspectiva, mas da evidência de que ela é
relativa, porque individual. O sujeito que observa, no quadro,
se relaciona intimamente com a imagem, pois percebemos que
se trata de uma escolha inteiramente pessoal, ou seja, a representação
não se quer como fato imparcial. Segundo o crítico
alemão Rolf G. Renner, Hopper "não se limita
a mera reprodução do real e do visível,
(...) evidenciando em toda a sua obra que a imagem e imaginação,
representação e a construção se
relacionam diretamente umas com as outras" .
A abstração
em seus quadros dá-se através do real. Há
a consciência da mimesis e de seu potencial. E foi isso
que chamou a atenção de um poeta como Joaquim
Manuel Magalhães. Sua aproximação do
pintor foi intencional. A própria relação
da subjetividade em ambos parece ser da mesma ordem. Aquele
efeito emocional - ao qual nos referimos antes como presente
em sua poesia - é análogo ao enquadramento subjetivo
dos quadros de Hopper. Em ambos, deixa-se ver um sujeito mais
sugerido do que realmente presente. Como exemplo disso vale
citar o crítico Edgar Pereira comentando a poesia de
Magalhães: "A principio de maneira indireta e
sutil, a percepção lírica vai tomando
consciência de uma alteridade distante (...)".
E continua: "A distância separa o poeta do espaço
'ao longe'" . Em analogia, Renner escreve que há
um efeito nas pinturas de Hopper que se encontram exatamente
"na distância do observador em relação
às cenas pintadas", elas "apresentam-se ao
observador como estando através de um vidro" .
Há
ainda outro ponto de contato que pode parecer secundário,
mas é de grande importância para nossa leitura.
O pintor americano consolida sua obra na virada da década
de 20 para 30, ou seja, em meio à crise americana de
1929, com grandes reviravoltas econômicas e sociais.
Já Joaquim Manuel Magalhães inicia sua produção
poética mais de quarenta anos depois, mas num período
de semelhante instabilidade e agitação em Portugal,
1974, ano da Revolução dos Cravos, momento crucial
para a configuração de uma nova realidade no
país.
Vistas essas
aproximações, não nos resta senão
partirmos para o cotejamento dos poemas com as pinturas, na
tentativa de entender o porquê da explícita escolha
do poeta e o porquê da necessidade dessa relação.
Ela poderia não acontecer, como é o caso do
poema "A maçã" de Manuel Bandeira,
que só foi aproximado à obra de Cézanne
pela leitura de um crítico, no caso Davi Arrigucci
Jr., num movimento que pode ser entendido como que realizado
de fora para dentro do poema, posterior à leitura.
No nosso caso, é o próprio poeta - também
um crítico - quem realiza a aproximação,
realizando um movimento de dentro para fora do poema, anterior
à leitura.
Antes, porém, de lermos propriamente o poeta Joaquim
Manuel Magalhães, leremos o crítico Joaquim
Manuel Magalhães, tentando, a partir de suas considerações,
entender melhor sua poesia e seu interesse por Edward Hopper.
Num artigo sobre a importância da poesia de Jorge de
Sena em Portugal, Magalhães destaca que esse poeta
foi responsável por "nos livrar de uma certa hegemonia
de Pessoa" . Para o poeta-crítico, a poesia portuguesa,
ao longo de sua história, foi lírica de três
formas: a primeira, iniciada com Camões, constituindo-se
da apropriação do mundo objetivo por um sujeito
que o modifica de acordo com seus desdobramentos emotivos.
A segunda se dá em parte com Cesário Verde,
em cuja poesia a descrição e a ausência
de sentimentalismo predominam. É Fernando Pessoa quem
leva essa perspectiva moderna à sua radicalidade, pois
torna o sujeito uma hipótese. O Eu do poema passa a
ser visto como um outro e, portanto, objeto. Já a terceira
forma de lirismo, segundo Magalhães, é desenvolvida,
sobretudo, por Jorge de Sena em dois livros: Metamorfoses
e Arte de Música. Essa poesia transforma a objetividade
do sujeito em subjetividade do objeto, trabalhando com múltiplas
referências estéticas e citações.
Assim, pinturas e esculturas transformar-se-ão em personagens
que dialogam com o sujeito lírico. Resumindo, temos,
em Camões, um sujeito subjetivado; já em Pessoa,
um sujeito objetivado; e, finalmente, em Sena, um objeto subjetivado.
Magalhães explica melhor:
"Sena
resolve-a [subjetividade] através de objectos onde
faz cristalizar o seu sentimento deles (...). Objectos que
são quadros, esculturas, obras musicais ou outros produtos
[que] constituem a base objectiva de que, ao falar sentidamente,
nos atinge em emoção e memória"
.
Não seria esse argumento crítico a própria
metodologia poética usada por Joaquim Manuel Magalhães?
Esse objeto subjetivado não seria o próprio
efeito emocional conseguido pelo poeta através de um
distanciamento proposital? Parece que assim se justificaria
a presença de Hopper, seus quadros são os objetos
exteriores ao poema que o poeta subjetivará.
Leiamos,
assim, seu poema Western Motel:
A luz poente
das colinas
caía dos teus ombros no soalho.
Pela sombra só do corredor
levei-me a falar contigo.
Abri o casaco,
tirei o isqueiro,
Acendi a cigarrilha dos Açores.
O ataúde dos campos, as cortinas,
Gumes falsos que fendiam
as palavras,
as de compaixão,
as que não seguiam o caminho
por que te buscava e te perdia.
À
treva da tarde de verão
tudo cessava. As lágrimas
caíam na quimera do chão.
O que primeiro
se nota, pela aparente disposição dos versos,
é que se trata de um soneto, no entanto, um soneto
de métrica irregular, aproximando-se de uma redondilha
maior, com rimas aleatórias. Parte do dois quartetos
é narrativo e inteiramente visual, se não fosse
a primeira pessoa, poderíamos estar diante de um roteiro
cinematográfico. Quando comparamos à pintura,
vemos que há certa correspondência, o sujeito
do poema olha para alguém; já o sujeito do quadro
divide-se entre olhar para a mulher ou para a paisagem. A
partir disso, desencadeia-se uma série de acontecimentos
que não estão no quadro, ou melhor, podem estar
em seu silêncio, subentendidos. Como na pintura, há
uma subjetividade no poema de ordem relativa: "gumes
falsos que fendiam/ as palavras (...)". O sujeito do
quadro não está presente na figuração
e o do poema é uma espécie de desencontro: "por
que te buscava e te perdia". Tal uma ausência permanentemente
presente, uma "quimera". Renner diz que, no quadro,
"a luz a entrar no quarto, por sua vez, dá vida
às suas cores quentes, do mesmo modo que imobiliza
a paisagem em frente da janela" . Esse efeito de imobilidade,
talvez, no poema, esteja nos versos " à treva
da tarde de verão / tudo cessava. [...]". Há
uma melancolia paralisante tanto no semblante da mulher que,
parece, esperar algo, quanto no cessar que o poema comunica.
O que chama nossa atenção também é
a completa assimilação do tema pelo poeta: se,
no quadro, a paisagem talvez remeta a algum filme de western,
o poema faz valer uma realidade mais próxima e contextual,
por meio da citação ao Açores.
Vamos agora
a outro poema, Summertime:
Olho a sua
boca. Tanto
que vem o punhal da luz
levar-me os olhos.
O carvão, a cinza dos
meus olhos. Os seus.
A sua boca,
o sulco
onde me pergunta e eu
respondo. A morrer,
a olhar anavalhado
o seu brilho bravio.
Sons de sirenes,
uivos,
estrondos, desabamentos,
ravinas donde rompe
o amor. Sua boca.
A presença do sujeito seria óbvia não
fosse o seu objeto visual ser um tanto metafórico.
Há um movimento que se dá por períodos
curtos, dentro de versos também curtos. O poema lança
mão do enjambement para ir da imagem da boca à
imagem dos olhos, numa troca freqüente entre sujeito
e objeto, que os relativiza mais ainda. O poema tem seu leit
motiv no apelo visual: "Olho a sua boca". É
através desse olhar que o efeito emocional se constrói:
"Tanto/ que vem o punhal da luz/ levar-me os olhos".
O quadro é sugestivo. Os olhos da moça, como
em quase todos os olhos que Hopper pinta, são completamente
negros e estão protegidos pelo chapéu. Sua boca,
ao contrário, é iluminada pelo sol - assim como
o resto de seu corpo, coberto por um vestido um tanto transparente
que deixa ver mais que esconder. O vento que entra na casa,
escura por dentro como os olhos da moça, balança
as cortinas. A partir disso, Renner escreve que a
"dinâmica interior, o interior da casa, aberto
e ao mesmo tempo impedindo o olhar, bem como as colunas com
seu efeito fálico, transformam a concepção
do quadro numa construção formada pelo subconsciente,
na qual o desejo e a promessa, a provocação
e a entrega são diretamente transformados em imagens
espaciais."
Parece ser
a terceira estrofe do poema algo correspondente a isso. Algo
como a embriaguez dos sentidos - e aqui a visão acaba
desempenhado um papel menos central que a audição:
entre "uivos" e "estrondos". Porém,
surge-nos uma imagem análoga ao efeito fálico
das colunas mencionado na citação de Renner;
falamos especificamente dos versos "ravina donde rompe/
o amor (...)", na qual se elabora uma metáfora
extremamente erótica, plástica e visual. Como
curiosidade, vale lembrar ainda que o Summertime (1943) de
Hopper guarda alguma relação temática
com peça jazzista de mesmo nome dos irmãos Gershwin
(1935), contemporâneos seu.
As leituras
poderiam continuar, mas o tempo é curto. Agora, parece
ser hora de nos encaminharmos para um desfecho, nem que esse
aparente final signifique o início de novas possibilidades
de leitura. A associação entre poesia e pintura
quando é explícita, ou seja, quando é
feita pelo próprio autor - como em nosso caso - instaura
uma forte relação de necessidade. O leitor,
diante do poema cujo centro é a referência a
uma obra externa e, por vezes, inacessível de imediato,
talvez reagirá de duas formas: ou esforça-se
ao máximo para localizar a referência, ou contenta-se
com aquele objeto incompleto - mas nem por isso menos interessante
- que se torna o poema. Este se relaciona a algo preexistente
a ele, que ele-mesmo não contém. A referência
os une, mas nem por isso os livros, comumente, reproduzem
as imagens. Ou seja, o poema só existe devido à
pintura, mas, em nosso caso, ela não o acompanha nem
o deve. Seus versos existem para dar conta de um objeto visual
ausente. Não há a imagem propriamente dita,
mas apenas palavras construindo-a. A relação
de mediação é explicitada de forma intensa.
Lemos e só assim podemos ver. É como se a obra
encenasse, em sua própria condição, uma
falta original que toda grande arte costuma ter. Ausência
que retira do alcance do leitor a percepção
e o entendimento do todo. Limitação que, talvez,
evidencie uma maneira diferente de a arte dizer que o homem
pode pouco, muito pouco.
*
Leonardo Gandolfi é poeta e ensaísta.
*
Leia também um
ensaio
do autor sobre Júlio Castañon Guimarães
e sua introdução
à antologia de poetas portugueses.
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