FINNEGANS
WAKE EM TRADUÇÃO
Maria
Esther Maciel
Em um dos capítulos
de La ciudad ausente (1992),
o escritor argentino Ricardo Piglia descreve uma ilha
estranha, atravessada de norte a sul por um rio de nome Liffey
e habitada por refugiados e desterrados de todas as partes do
mundo. Lá, as fronteiras geográficas conjugam-se à feição
dos tempos de um verbo e todos falam uma língua que se
transforma descontinuamente em ciclos que reproduzem a maioria
dos idiomas conhecidos e
outros que ninguém conhece. O único registro escrito que
existe na ilha é, segundo o narrador, um livro de mais de
trezentos anos, que por ter sido escrito em todos os idiomas
ao mesmo tempo, é o único possível de ser lido pelos
habitantes, seja qual for o estado da língua em que se
encontrem. Acredita-se, inclusive, que esse foi o livro que
fundou a religião da ilha, por trazer todas as chaves do
universo, contar a história da origem do próprio lugar,
servir como guia de cerimônias fúnebres, além de se
configurar como o mais completo guia cartográfico da região.
Pelos dados
apresentados, o prodigioso livro em questão não poderia ser
outro que não o Finnegans Wake, de James Joyce, convertido
por Piglia em uma espécie de bíblia hipertextual das eras
futuras, matriz por excelência de uma literatura ainda por
vir. Mas uma bíblia que, longe de oferecer vias ou palavras
definitivas para os leitores, faz das potências do caos a
ordem possível do mundo, assentando, dessa forma, as bases de
uma nova cosmologia - ou caosmologia, no dizer do próprio
Joyce.
Tal caosmologia
se dá a ver, inclusive, na própria composição do livro e
na superfície da linguagem. Equivocam-se, portanto, aqueles que vêem no livro uma
estrutura apenas circular, traçada segundo os princípios do
corso/ricorso propostos por Giambattista Vico em La Scienza
Nuova, no séc. XVIII. Embora
Finnegans Wake esteja estruturado em quatro partes
associadas aos quatro ciclos históricos viconianos e
apresente como última frase do último capítulo um fragmento
que só se completa na primeira linha do capítulo inicial
(evidenciando com isso o círculo do "eterno retorno"), não
se pode ignorar as linhas de fuga que atravessam todo o livro
e muito menos as aberturas provocadas pelas forças que se
abrigam em sua própria circularidade. Não há demarcação
territorial definitiva para sua geografia. Sua circularidade
prescinde dos limites da circunferência e, ao invés de
conter um centro, apresenta vários pontos que se conectam a
qualquer outro. Todas
as quatro partes do livro existem várias vezes e as séries
temporais que as norteiam sob o influxo das eras de Vico
acabam por se cruzar no que Borges chamaria de "uma rede
crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e
paralelos".
Daí que Umberto
Eco afirme que o escritor irlandês "não encontrou em Vico
um filósofo em quem crer", mas um autor que lhe
"estimulava a imaginação e abria novos horizontes".
Segundo o crítico italiano, a visão joyciana dos ciclos históricos
se inseriria menos no modelo do historicismo moderno que no
marco de uma sensibilidade renascentista, vide o vivo
interesse de Joyce pelas teorias de Giordano Bruno e Nicolás
de Cusa. O que tampouco signica um confinamento do autor
dentro desses referenciais, já que o modelo de universo que
rege a estrutura de Finnegans Wake constitui-se, na verdade,
de uma combinatória que inclui tanto os ciclos
viconianos e as imagens cosmológicas traçadas por Bruno e
Cusa, quanto as analogias românticas, as correspondências
baudelairianas, as equivalências rimbaudianas, as fusões
sonoras de Wagner e os princípios desestabilizadores da física
e das teorias cosmológicas da contemporaneidade.
Assim, o rigor
matemático da linguagem, a "interpenetração orgânica"
dos capítulos e todos os modelos de organização que lhes
servem de frame são na verdade molduras provisórias para um
cosmos em estado intrínseco de caos. Isso porque Joyce coloca
a linguagem, os personagens, o enredo, as referências míticas,
literárias, históricas e filosóficas a serviço de um
discurso e de um tipo de "realidade" que não oferecem
garantias ou pontos de estabilidade: o sonho. É ele a matéria
de que se faz o texto joyciano e é nele que toda a ordenação
do conjunto se abre à lógica da vertigem.
Tal lógica se
explicita não apenas na teia ficcional inextricável e no
entrelaçamento de referências culturais que se refletem na
própria superfície da linguagem, como também no processo de
construção e desenvolvimento dos personagens (ou não-personagens)
dentro da obra. Sem delineamentos físicos que lhes dêem uma
compleição ou um rosto preciso, eles são sempre outros de
si mesmos e passam por sucessivas (e muitas vezes simultâneas)
metamorfoses ao longo do livro. Constituem o que Deleuze chama
de "personagens rítmicos". O devir de cada um parece
estar nos sons e nas modulações dos múltiplos nomes que
recebem. O protagonista H.C.E. (Here Comes Everybody/ O Homem
a Caminho Está),
por exemplo, é um amálgama de todos os grandes heróis do
passado. É dele o sonho/pesadelo que constitui todo o
romance, embora não se saiba ao certo quantos sonhos de
quantos outros personagens se misturam nessa experiência onírica
do protagonista. Ele
é ao mesmo tempo Adão, Finn Mac Cool, Tim Finnegans, Thor,
Buda, Cristo e o próprio Joyce, dentre vários outros, e os
seus cognomes, totalizando 116,
ocupam uma extensa lista nas páginas 71-72 do terceiro
capítulo. Para não falar em sua mulher, Anna Livia
Plurabelle, que é a combinação de todas as mulheres do
mundo e em cuja voz o
livro se fecha e recomeça.
Se, como
observou Eco, cada palavra de Finnegans Wake é capaz de
aclarar um sentido possível do livro, eu escolheria uma que,
para mim, resume tudo o que venho tentando mostrar até agora.
Trata-se da palavra nightmaze - cunhada por Joyce em uma
passagem do capítulo 13 e que poderia ser traduzida como
"pesadédalo". Nela pode-se encontrar a
definição concentrada do que vem a ser a toda a complexidade
desse livro, uma vez que - como variação criativa de
nightmare (que Borges já definiu como "a ficção da
noite")
- ela faz convergir em um mesmo topos a dimensão onírica e
a complexidade labiríntica (maze = labirinto) que o
caracterizam. Além de apontar, obliquamente, para o inevitável
estado de desorientação que define quem ousa nele se
introduzir, se considerarmos que maze, enquanto verbo, indica
o ato transitivo de confundir, desorientar, lançar em um estado de perplexidade.
Sabe-se que no
"pesadédalo" de Joyce pode-se entrar por qualquer página.
E uma vez dentro, não há como escapar do erro, do
descaminho. Em meio aos desvios da linguagem, à profusão
vertiginosa de referências oriundas de vários campos do
saber, à ciranda dos personagens, aos fluxos e refluxos
temporais da narrativa, resta ao perplexo leitor também
sonhar (ou fingir que sonha) o sonho de Joyce. Ou deixar-se
sonhar pelo próprio livro. Mas com o detalhe de que, nesse
caso, o pacto onírico só faz sentido se a leitura for,
paradoxalmente, experimentada em vigília, em condição de
insônia, visto ser Finnegans Wake um sonho para os que não
dormem. Já não disse Joyce que o leitor ideal para seus
livros é o que tem a insônia ideal?
Diante
de tudo isso que a palavra nightmaze e, por extensão, a própria
obra deflagram, é com perplexidade que nos colocamos diante
do empreendimento de Donaldo Schüler que, radicalizando o
pacto, ousou enfrentar o desafio de levar até o fim a quase
impossível tarefa de traduzir para outra língua todo esse
labirinto. Um trabalho de tradução que, não bastasse
reconfigurar em um novo contexto a intrincada rede ficcional
que compõe o livro de Joyce, revela como o tradutor
arriscou-se a inventar uma outra língua dentro da língua
portuguesa. Ou sonhar uma outra língua portuguesa, num gesto
analógico ao do próprio autor, que criou um inglês onírico,
labiríntico em sua própria estrutura, no qual emergem e se
misturam fragmentos de mais de 60 línguas, algumas delas
esquecidas, recalcadas, reprimidas, inventadas, imaginadas e
exiladas.
Ao reinventar
seu próprio idioma no ato de traduzir essa língua estranha,
Donaldo Schüler veio, sem dúvida, evidenciar - à feição
de Haroldo de Campos -
que "traduzir é uma tarefa de acréscimos à
civilização". Não apenas sob o ponto de vista da
experimentação da linguagem, mas também no plano mais amplo
das relações culturais. Isso, porque ao rigor artesanal que
uma tradução como esta exige, Schüler buscou aliar uma
minuciosa pesquisa dos mitos, dos textos literários e das
referências histórico-geográficas que servem de solo para a
anti-narrativa de Joyce. Pesquisa esta que se desdobrou na não
menos árdua investigação de várias dessas referências no
âmbito da cultura brasileira e na paciente elaboração das
"notas de leitura" que acompanham e elucidam cada capítulo
traduzido.
A tentação de
invocar aqui a figura de São Jerônimo - o santo protetor
dos tradutores - é
irresistível. Escritor
e intelectual erudito do mundo antigo, foi ele quem, pela
primeira vez, transpôs para o latim todo o original hebraico
do Antigo Testamento, tendo, para isso, que inventar - como
muito bem mostrou Valéry Larbaud (este também um tradutor de
Joyce para o francês), uma sintaxe, um estilo e uma língua
ao mesmo tempo "muito popular e muito nobre", que acabaria
por exercer um papel fundamental na constituição das línguas
românicas. Hebraizar o latim,
inscrever a diferença no mesmo, desviar-se da literalidade e
arriscar-se na interpretação dos sentidos do texto foram
algumas das diretrizes da obra
de Jerônimo. Em pleno século IV, ousou na invenção
de neologismos, reimaginou metáforas, recusou as regras e os
artifícios da retórica do tempo, experimentou novas dicções,
aliou o rigor à transparência do dizer. Além disso,
interpretou com acuidade os textos sagrados e teorizou o próprio
ato de traduzir. Causou, com esse trabalho, muita perplexidade
em seus contemporâneos.
Se, na
modernidade, o legado de Jerônimo se reinventa nos vários
trabalhos de tradução criativa daqueles que o elegem como
precursor (ou santo protetor), pode-se dizer que, no
empreendimento tradutório do Prof. Donaldo, ele também se
realiza com vigor, à medida que traduzir Finnegans Wake não
deixa de ser um desafio quase bíblico (retomando aqui o conto
de Ricardo Piglia, que vê o livro como uma Bíblia do
futuro). Um exercício que demanda exegese, sacrifício, rigor
e invenção. Mas, que à diferença do desafio assumido por
Jerônimo, demanda também um "impulso lúdico",
"luciferino", como diria Haroldo de Campos, e quase sempre
"joycoso", do tradutor. Impulso esse que Donaldo, no caso,
explora com grande liberdade, convertendo a aridez e o esforço
quase penitencial do trabalho em um jogo bem humorado, em um
regozijo intelectual.
Creio, inclusive, que um dos grandes méritos dessa tradução é
exatamente trazer à tona um outro Joyce: um Joyce mais híbrido,
carnavalizado, mas que não deixa de
apresentar também os traços formalistas do Joyce que a tradução
de excertos do livro feita pelos irmãos Campos, em Panaroma
de Finnegans Wake (1971), nos legou.
Em outras palavras, as impurezas, as mesclas culturais,
o humor rabelaisiano, as cosmogonias erótico-cômicas, as
dimensões mítica e mística, os conflitos de ordem política,
as "provocações do caos e de suas possibilidades" (como
diria Eco) são trazidos por Schüler à flor do texto, sem
que, para isso, seja negligenciado o trabalho artesanal da
linguagem.
Nesse sentido,
os leitores brasileiros terão acesso, a partir de agora, a um
autor multifacetado, que através da conjunção entre
experimentalismo, humor e transculturalidade,
refletiu/prefigurou com seu "imarginável" e babélico
nightmaze, toda a complexidade "caosmótica" do nosso
tempo.
*
Referências
Bibliográficas
BORGES, Jorge
Luis. O pesadelo. Sete Noites. Trad. João Silvério Trevisan.
São Paulo: Max Limonade, 1985.
CAMPOS, Augusto
e CAMPOS, Haroldo de. Panaroma de Finnegans Wake. São Paulo:
Perspectiva, 1971.
ECO,
Umberto. Las poéticas de Joyce. Trad. Helena Lozano.
Barcelona: Lumen, 1998.
JOYCE, James. Finnegans Wake / Finnicius Revém (5 vols.)
Trad. Donaldo Schüler. São Paulo: Ateliê Editorial, 1999-2003.
LARBAUD,
Valéry. Sob a invocação de São Jerônimo. Trad. Joana Angélica.
São Paulo: Mandarim, 2001.
PIGLIA,
Ricardo. La ciudad ausente. Buenos Aires: Seix Barral, 1992.
*
Maria
Esther Maciel, poeta e ensaísta, publicou o livro de
poemas Triz, o de
ficção O Livro
de Zenóbia e o volume de ensaios Vôo Transfigurado, entre
outros títulos.
*
Leia
também poemas
de Maria Esther Maciel, e o ensaio Poesia
à flor da tela.
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