O CADERNO DO EXAGERO
Rodrigo de Souza Leão
A prosa, depois de James Joyce e Marcel Proust, apresentou poucas novidades em matéria de invenção. Mas isso não significa que trabalhos muito bons não venham sendo feitos. Alguns deles com força e luz própria, que não repetem os padrões anteriores e envolvem um exercício raro: o labor com a linguagem. Artistas inquietantes estão produzindo obras de grande valor, fugindo de um realismo fácil e entrando no terreno baldio e ermo que é o da pós-modernidade. Se tudo já foi feito, como enfrentar o dilema? O que fazer? O que escrever?
A qualidade aqui está, principalmente, na forma de contar as histórias. Muitas vezes não há história e talvez o exercício de metalinguagem seja o que sobrou dos escombros do modernismo. O fato de tudo poder elevou a vontade de potência dos escritores. Eles não se contentam mais com histórias lineares, apesar de o leitor comum ainda gostar da linearidade dos fatos e historinhas com começo, meio e fim. Quem precisa evoluir é o leitor? Ou será que Milton Nascimento acerta quando diz que o artista deve ir aonde o povo está?
Luci Collin, com seu livro de contos Vozes Num Divertimento (Travessa dos Editores, 2008), coloca mais uma interrogação neste mar sem fim que é o da literatura. Como inserir uma obra literária no atual contexto de antiliteratura que estamos vivendo? Sim, a questão é pertinente. Tudo, porque cada vez mais se produz mais, se escreve mais e se publica mais. Há mais escritores que leitores e os leitores fiéis gostam muito de alguma coisa inserida entre a literatura e a antiliteratura, que não é nem uma coisa e nem outra.
Neste sentido, o livro de Collin é Literatura com L maiúsculo. Ela nos conduz de uma forma anárquica para um mundo igualmente caótico. Então, nem podemos dizer que a autora foge da realidade, devido ao fato de vivermos num mundo onde a relação entre as pessoas está cada vez mais permeada pelo caos. Talvez seja o fim do mundo. Mas antes disso acontecer, leia este opúsculo. Nele o leitor irá dar de cara com uma carpintaria elaborada em contos de feitura difícil. Nada de facilidades, apesar de parecer que a escritora em questão não faz muito esforço e parece deixar a desordem apresentada ao abandono do fluxo da consciência. Puro engano. É. Para um mundo desordenado e todo ao avesso nada como uma literatura que reflita o mesmo. Uma obra que seja o espelho ou o retrato fiel dos tempos bicudos que estamos vivendo. Que vão da rarefação afetiva ao exacerbado hedonismo.
Aqui há lugar para todo o tipo de experimentação, mas não há grande espaço para descrições muito exageradas de personagem. O grande personagem do livro é a linguagem.
Muitos recursos são usados para se chegar ao objetivo final, que seria o de trabalhar a língua de uma forma inusitada. Por isso, muitas vezes, o texto não tem pontuação ou tem uma ordem própria, que não está na gramática vigente no Brasil. Há também espaço para neologismos e pastiches. Tudo para articular um discurso forte e de conteúdo poderoso. Pelos contos (poderes) de Luci existe um arsenal de artimanhas, que fazem de cada peça algo único: um estilo que não se repete. Uma verdadeira avalanche apolo-dionisíaca, onde a forma diz mais que o conteúdo e nem por isso o conteúdo se dilui de modo fácil.
Há uma chave em cada conto para o seu entendimento. As inovações apresentadas estão todas articuladas de maneira toda própria, o que não torna a leitura algo penoso. Pelo contrário, o caráter lúdico desta escrita é que dá existência aos personagens, fantasmas e outros seres que habitam estes universos.
São vozes que ora cantam ora declamam canções e poemas na forma de textos curtos. A escritora encontra poesia em tudo o que vê e bem se pode falar que os contos contêm uma prosa-poética precisa e preciosa. Luci Collin, em seu décimo livro, vem demarcar seu lugar. Um lugar na pós-vanguarda, onde muita coisa se perde pelo simples fato de não alcançar o básico: o entendimento.
Sua postura diante do léxico é atual e pungente. A força do que escreve está no fato de não se deixar levar pelas facilidades e de não sair à procura — usando recursos vários de narrativa — de um encontro no lugar-comum com o leitor. Ela foge de estereótipos e rompe a barreira que existe dentro de discursos mais elaborados. Esta elaboração toda não é sinônimo de um andamento pomposo e perfumado da escrita de Colin.
Como nos diz o título, existem vozes. Cada voz canta ao seu jeito e contrariando os que dizem que dentro de um conto não existe a pluralidade polifônica, Luci Colin demonstra que seu acervo literário é suficientemente grande para tornar possível a polifonia dentro de sua escrita.
É necessário travar contato com esta guerra eterna com a folha em branco e ver como se consegue vencer a batalha. Pode-se dizer que este é um livro de arte. Arte no grande sentido do termo. Literatura da melhor qualidade. Tudo feito de maneira própria e com um desenvolvimento discursivo raro em nossa língua. Não se trata de mais um livro, desses que se avolumam nas estantes das livrarias. Trata-se de um caderno do exagero humano, onde cada personagem é um fato em si e tem sua razão de existir, sumindo sem porquês. Como dizia Leminski, conterrâneo de Colin: “pra que por quê?”. Por que tudo tem que ter resposta? Um livro sem respostas. Com uma grande pergunta. Uma ópera pop que se desmancha enquanto é escrita. Um antilivro. Algo pra ficar entre o coração e a mente ou nos dois lugares ao mesmo tempo: agora.
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Rodrigo de Souza Leão nasceu em 1965. É carioca, autor de Há flores na pele (poesia) e Todos os cachorros são azuis (prosa).
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