ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

SONORIZANDO A LINGUAGEM

 

Rodrigo de Souza Leão

 

A música contemporânea vem passando por um momento de transição. Pode-se falar até em crise. Há muito não aparece um compositor que mexa e estremeça com este cenário. Mas existem coisas acontecendo em outro lugar, que não o da canção, que podem assinalar um futuro melhor dentro da cena. A excelente novidade é que poetas andam incursionando pelo terreno já gasto, e trazendo a novidade para o interior do universo verbo-musical. Não se trata de uma coisa careta. Não é música e nem poesia recitada. Trata-se de poesia falada e ambientada num clima de pós-modernidade, onde as outras artes são convidadas a participar. Também, como já assinalou Pound, a peça poética pode se aproximar mais das artes plásticas do que propriamente da literatura.

A poesia nasceu oral e dessa oralidade é que estão sendo feitos trabalhos de experimentação na linhagem dos irmãos Campos, mas com um enfoque absolutamente novo. Vem de Curitiba, no Paraná, o mais recente projeto que coloca a poesia falada numa esfera toda especial, alçando um vôo revolucionário, que pode e já está trazendo ares novos: é também um novo sopro para quem deseja fazer algo dentro da música de invenção.

Estou falando do poeta Ricardo Corona que lançou o CD Sonorizador (Editora Iluminuras), que deverá marcar época, utilizando e deslocando o eixo da linguagem sonora atual. É difícil encontrar - por se tratar de algo absolutamente sui generis - referências em outras obras para falar deste tipo de arte. Não existe ainda literatura especializada sobre essas formas contemporâneas de utilizar poema e interferências musicais de modo tão inovador e calculadamente atraente.

No universo pop, podemos encontrar algum antepassado musical para o trabalho de Corona. Posso citar o enorme preâmbulo da música "Time", do Pink Floyd, como algo que lembra o que ele faz em matéria de sonorização. Mas trata-se de uma aproximação pequena. A rotulagem - apreender em um único rótulo, ou a comparação - para algo que inova, é muito difícil. Talvez seja necessária aqui, apenas para sublinhar o caráter peculiar da obra.

Ricardo é um criador que milita há muito tempo. Já é o seu segundo CD. No primeiro, intitulado Ladrão de Fogo, ele já dava mostras de seu talento e já fazia tudo o que exacerbou neste mais recente álbum.

O poeta vai além de dizer seus próprios poemas e elege Almada Negreiros e Augusto dos Anjos como seus companheiros de empreitada. Cada um deles tem uma faixa e um poema lido e sonorizado por Roseane Yampolschi e Paulo Dermachi. Uma equipe de peso, que transforma a ambientação da poesia em algo bastante singular. São sons eletroacústicos inventados, visando criar o clima que pede cada peça literária.

Intérprete

Assim é quando Corona interpreta. Sim, ele é um interprete: um artista que traz para dentro das composições a arte de dizer, de que elas necessitam. A força da dicção e a forma como a palavra é iluminada pelas alegorias sonoras é que torna a execução trabalhosa. Corona conta que teve que ficar nu no estúdio, numa tentativa stanislavisquiana, de incorporar um índio quando realmente canta, lembrando um ianomâmi. Por isso, ele consegue transmitir todo o vigor e a raiz indígena ao executar "Ja ma la". A ligação de Ricardo com este universo vem rendendo frutos e filhos artísticos: o artista prepara para breve um novo livro com esta temática.

Outras artes, menos ancestrais, estão em Sonorizador. É o caso da fusão que é feita com a história em quadrinhos. Com auxílio luxuoso da cantora Luciana Elisa Hoerner, em "Buraco da Minhoca" o autor tem uma solução criativa para tecer com eficácia os caminhos da combinação (forma/conteúdo e conteúdo/forma), que explode com maestria num retrato anárquico de um futuro apocalipse.

O caos e a ordenação, o apolíneo e o dionisíaco e outras dualidades saudáveis estão em íntima coesão nesta partitura quase louca: retrato de um tempo em que não é mais possível desvincular o mercado e a obra de arte. Para que mercado então é destinado este disco? Creio que é para todos que queiram penetrar no reino da linguagem poética falada e na nova poesia brasileira, já que o poeta é um legítimo representante do que se convencionou chamar de geração noventa.

Por tudo isso, Sonorizador é um livro/CD que merece ser muito bem recebido - tanto pela crítica, quanto pelo público - de maneira diversa: como quem escuta alguma raridade e uma peça literária que pode ser um divisor de águas dentro do meio artístico. A partir de agora a poesia brasileira já tem seu paradigma de como se tornar único e não um mero repetidor de fórmulas que deram certo, mas não causam mais nenhum impacto.

 

* 

Rodrigo de Souza Leão nasceu em 1965. É carioca, autor de Há flores na pele.

* 

Leia também poemas e um conto  do autor, trechos da novela Todos os cachorros são azuis e ensaios sobre Sérgio Cohn, Antônio Mariano, Fernando Koprosky, Sérgio de Castro Pinto, Greta Benitez e Leonardo Gandolfi.       

*

 

retornar <<<

[ ZUNÁI- 2003 - 2008 ]