ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

UM CURIOSO DADO DE SETE LADOS -

DOIS LIVROS DE LEONARDO GANDOLFI

   

Rodrigo de Souza Leão

 

Com a publicação simultânea de seus dois primeiros livros de poesia - Oito poemas (Coleção Pesa-nervos, 2006) e No entanto d'água (Editora 7Letras, 2006) -, Leonardo Gandolfi é um jovem nome que se insere na poesia contemporânea com muito vigor. Em ambos demonstra ter voz própria e bem articulada, em poemas de elaborada feitura. Não se trata, portanto, de um estreante qualquer. Gandolfi marca uma presença forte em poemas de alto impacto, em que o apolíneo (forma-conteúdo) e o dionisíaco (conteúdo-forma) se misturam de forma ostensiva e bastante meticulosa. Ele parece escolher, com um bisturi, as palavras adequadas para a realização de uma operação irretocável. O nosso cirurgião (ele não estudou medicina), que bem poderia ser um escultor de imagens, molda o cotidiano à maneira da coesão.

 

É um tipo de texto que, parece, se escreve, reescreve a si mesmo. Não nos damos por vencidos na primeira vez em que lemos um poema seu, é preciso que se enfrente seu texto de forma incessante. Ele trabalha de maneira rigorosa. Consciente que é de sua tarefa, articula imagens e sintaxe no espaço do verso à exaustão.

 

O resultado sobressai em seus poemas: tudo, com cautela, é dito de maneira singular, na constante em que o sujeito encara o mundo. Gandolfi vê este mundo com firmeza e gestos singelos e trabalha muito bem a questão do olhar: olhando ora com microscópio, ora com luneta ou apenas com os próprios olhos. Olhos que circulam e procuram as imperfeições e perfeições do mundo à sua volta. Trazendo sempre para uma zona peculiar aquilo que é recontextualização do que se pode ver. Assim, fala de coisas mínimas de forma grande e de coisas grandes de forma mínima. Fugindo sempre do lugar-comum.

 

Sua poética é arquitetada com economia, utilizando recursos da tradição portuguesa - área em que é professor - que articulam um discurso e um diálogo com seus antecessores e vai além, permitindo que construa seu próprio estilo. De modo que são minuciosamente articuladas as referências a outros poetas em seu texto. Podemos ver lá suas linhas de força: Pessoa, H. Helder, Drummond, Camões.

 

Uma prova disto está em um trecho do poema " - Quem são estes?" de No entanto d'água. Nesta peça, como em todas do livro, os textos de algum modo contínuos e narrativos dispensam numeração, como que desarticulando seu eixo seqüencial para, ao fim, mostrar que sua poesia, ao prestar e ao mesmo tempo não prestar atenção na ordem, é um curioso dado de sete lados que lançamos:

 

Ao elefante nada disso importa;
seu coração inchado ainda desce
ao vir por uma linha que vai dar
ao lado das palavras de quem chega.
E toca o chão. E quando o toca está
tocando notas menos simultâneas
que repetidas. Por exemplo, pássaros,
jornal, cachorros, telhas de amianto,
árvores, mesa, peixes e quem sabe
até todo o catálogo das naus.
Depois, lembro, alguém se olha no espelho.
Ainda não. A paciência insiste.
Sete anos de pastor jacob servia.
Introdução. O tempo do elefante

 

De Oito poemas, destaco versos que demonstram a fauna de sua poética: seus animais têm características humanas. Como no poema acima, o seguinte também evidencia o que já disse: sua capacidade de criar mundos dentro de um mundo absolutamente poético e cotidiano:

 

O coágulo ao fundo daquilo que fica
conforma-se à matéria do lagarto
e ao seu interior raio de ação
Como contraponto
a criança levanta-se da bicicleta

Em jejum
o lagarto procura na respiração
a sede e o sábado com que abre a flor

 

Vê-se que o autor de Oito poemas não é um poeta que se deixa levar por facilidades. Repito: ainda que seja jovem, tem um percurso próprio de quem já leu muita boa poesia e ainda está atento ao que acontece por aí. Aguardo seu próximo passo. Ao começar em alto estilo, encontrará daqui para diante um labor ainda mais profundo: o de superar a si mesmo e a uma estréia de muita qualidade.

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Rodrigo de Souza Leão nasceu em 1965. É carioca, autor de Há flores na pele. Leia também poemas e um conto do autor, trechos da novela Todos os cachorros são azuis e ensaios sobre Sérgio Cohn, Antônio Mariano, Fernando Koprosky e Sérgio de Castro Pinto.

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