O
ANJO DE BOTAS CARCOMIDAS:
PROSEANDO COM GLAUCO MATTOSO
Por Claudio
Daniel
Zunái:
Você editou o Jornal Dobrábil
na década de setenta, em pleno regime militar, adotando
uma temática escatológica, com timbre de provocação.
Hoje, numa época permissiva, em que é possível
acessar, via Internet, desde pornografia infantil até
sadomasoquismo, qual é o sentido do conceito de transgressão?
Glauco Mattoso:
Você tocou num ponto crucial. Toda obra de arte é
ao mesmo tempo documento de época e moeda de liquidez
atemporal. O Dobrábil é datado na medida
em que caricaturou o concretismo e o graffiti através
da datilografia -- três elementos historicamente delimitados,
bem como a ditadura que me serviu de pano de fundo. Mas permanece
vivo o espírito paródico, que é indelével
e indeletável pela tecnologia, e subsiste em qualquer
mídia. Transgressão significa questionar a norma.
Enquanto a pornografia era mais censurada, transgredia-se
pornograficamente. Agora talvez seja o caso -- não
de caretear puritanamente, impugnando o erotismo (já
que isso seria obscurantismo e não iconoclasmo) —
mas, por exemplo, o caso de investigar na obscenidade aspectos
ainda tabus, como certos padrões de higiene, zonas
erógenas pouco exploradas, sabores e odores menos preferidos...
Mas quero levantar outro ponto acerca da transgressão:
quando a vanguarda passa a ser uma constante, o jeito é
transgredir retomando um molde tradicional (como o soneto)
e praticar o experimentalismo usando o próprio cânone
como laboratório, como faço agora.
Zunái: A literatura libertina
do século XVIII, praticada por autores como Casanova,
Restif e Sade, colocou a busca do prazer individual como o
bem supremo. A sedução e o deleite erótico
estavam ligados ao domínio sobre o outro, sua humilhação,
mutilação e aniquilamento. A vertente fescenina,
a seu ver, está ligada a uma concepção
fatalista da natureza humana? Estamos condenados a agir de
acordo com os nossos instintos, que incluem a violência
e a crueldade?
GM:
Tenho duas características dominantes em minha personalidade:
uma é ser pessimista, outra é ser contraditório.
Pessimisticamente, eu diria que sim, estamos condenados a
cumprir nossa característica natural, predatória
e autofágica. O homem é um animal que não
trepa só para procriar, e usa o prazer como instrumento
de poder. Quem pode mais chora menos, isto é, goza
mais, enquanto o semelhante chora. A literatura erótica
(incluindo a fescenina, que é a sátira do erotismo)
é a maior prova de como a natureza humana não
muda, a despeito de todo o progressomaterial e espiritual.
Mas, paradoxalmente, eu diria também que faz parte
da mesma natureza humana esse inconformismo com nosso lado
animal, essa centelha de utopia que incute o idealismo na
política, a esperança de salvação
nas religiões e a procura da inovação
nas artes. Enquanto indivíduos, somos egoístas
e hedonistas; quando pensamos coletivamente, somos humanistas,
mais libertários que libertinos, como até Sade
chegou a ser em seu anticlericalismo e sua crítica
à aristocracia e ao absolutismo.
Zunái: A cegueira mudou de algum
modo o seu conceito de poesia? Como é fazer poemas
contando sobretudo com a voz e a memória? Você
faz anotações no computador ou gravação
de suas leituras? Como é o seu processo de trabalho?
A perda da visão alterou a sua percepção
do tempo, do espaço e do movimento das coisas à
sua volta? Além da experiência dolorosa, o que
isso trouxe para você, como sensação e
conhecimento do mundo?
GM:
Paradoxalmente, a cegueira me enclausurou e me libertou, escureceu
e iluminou. Minha poesia ficou até mais "visual"
que antes, pois agora imagino até o formato de cada
letra, como se estivesse impressa e ampliada diante de mim.
"Vejo" até a fonte, serifada e tudo. Além
da imagem, trabalho na memória um "salvamento
de arquivos" tão eficaz que dispensa gravador
ou ditado, e mantém o poema guardado na cabeça
durante uma noite, entre a insônia, o sono e o sonho,
para ser "recuperado" na manhã seguinte,
já digitado no computador falante. Se o trauma da cegueira
potencializou meu masoquismo, também aumentou minha
percepção metafísica, pois viver na escuridão
é como estar suspenso no espaço sideral. Ou
seja, ao mesmo tempo que dependo mais do plano material (apalpando
para me locomover, praticamente rastejando até alcançar
um pé, humano ou de mesa), raciocino em função
do ilimitado e do infinito, portanto do imortal e do transcendente.
Fiquei mais místico e mais bruxo do que já era.
Zunái: Centopéia: sonetos nojentos
& quejandos, sua primeira reunião de sonetos,
recupera o modelo camoniano de composição. Porém,
ao contrário da estratégia neoclássica,
de retorno acrítico a uma tradição passada
(e ao estado de espírito de uma época irrepetível),
você atualiza o gênero. Usando uma linguagem urbana,
incorporando a gíria, o palavrão, os jogos semânticos,
você cria cenários e personagens que retratam
nossa época, em sua estupidez e banalidade. O soneto,
para Glauco Mattoso, é um gênero plástico,
que permite as mais diversas possibilidades de releitura e
criação?
GM:
Note que a gíria, o coloquialismo e a banalidade são
típicos do "espontaneísmo" dos poetas
marginais, de quem sou contemporâneo, enquanto o palavrão
é típico do glosismo ou do cordelismo fescenino,
ao passo que os jogos léxico-semânticos são
típicos do concretismo e a rigidez estrófico-métrica
é típica do molde petrarquiano. O que faço,
mais que recuperar ou resgatar, é reciclar, antropofagica
(ou coprofagicamente) todos esses elementos no mesmo caldeirão.
Por isso é que batizei essa híbrida e sincrética
sonetística de "barrockismo", termo em que
a contracultura se funde ao preciosismo, o "underground"
ao "ostinato rigore".
Zunái: Em Paulicéia
Ilhada: Sonetos Tópicos, assim como no livro anterior,
você incluiu sonetos encadeados pela temática
bizarra ou pela reflexão histórica ou existencial.
Essa organização dos poemas em ciclos ou séries,
com títulos que se espelham como num jogo de quebra-cabeças,
parece fazer parte de um projeto enciclopédico. De
onde vem essa ânsia de definição e catalogação
das coisas? Você quer fazer algo como um catálogo
pessoal de obsessões?
GM:
A ânsia vem de duas causas. Primeira, minha formação
de bibliotecário, que me faz querer "panoramizar"
o conhecimento. Sempre fui assim, metódico e meticuloso.
A segunda é a própria cegueira. Agora que não
posso mais ler e pesquisar, só dependo da memória
do que já li, e sistematizar a temática dos
sonetos em verbetes correlatos ou casados, ciclos e coroas,
é um recurso quase que compulsivo e compulsório
para não deixar apagar do "disco rígido"
mental aquilo que parece querer se esvair no escuro que tenho
pela frente. Uma obsessão, sem dúvida.
Zunái: Geléia de Rococó:
Sonetos Barrocos traz peças narrativas interligadas
pela trama ficcional, com personagens como o skinhead
Zezão Pezão, os militares torturadores argentinos
ou o casal que é submetido aos caprichos de um delegado
(a esposa deve dedicar-lhe uma felação, e o
marido, beber a urina e comer as fezes do homem da lei). Essa
técnica de seqüências poéticas com
o desenvolvimento de uma história tem relação
com o seu fascínio pelas histórias em quadrinhos?
Comente essa linha de seu trabalho.
GM: Bem
observado: o gibi e todo o universo contracultural (cinema,
rock, tribos urbanas) que ele envolve faz o contrapeso à
minha erudição autodidata, e a poesia narrativa
iniciada em Geléia de Rococó e agora
continuada em Contos Familiares: Sonetos Requentados
reflete esse fascínio ficcional. Neste último
livro, porém, já não é a HQ a
fonte da releitura sonetada, e sim a própria contística
universal, uma vez que reinterpreto temas de Conrad, Maupassant,
Mishima, Machado, Lobato, Afonso Arinos ou Afonso Schmidt,
entre outros. A coisa é simples se meu "transficcionismo"
(assim chamo a "transcriação" da prosa
em poesia narrativa) for posto em termos gráfico-espaciais:
um romance pode ser condensado num conto; um conto, num microconto;
este, num soneto. Questão só de algumas sonoridades
mais ritmadas e consoantes, mas no fundo tudo se resume na
própria concisão ao se contar uma história...
Zunái: Em Panacéia:
Sonetos Colaterais você faz menção
à sua obsessiva jornada criadora, que até agora
(junho de 2003) resultou em nada menos que 720 sonetos, organizados
em cinco livros editados e três inéditos, em
rigorosa catalogação numérica, com precisão
de bibliotecário. Você não teme ouvir
a mesma acusação feita a Vivaldi, que, segundo
as más línguas, escreveu setecentas vezes o
mesmo concerto?
GM:
Isso é inevitável. Desde Scarlatti até
Martinho da Vila, da valsa vienense ao country ou ao blues,
da Bíblia às Mil e Uma Noites, tudo não
passa de variações sobre uma mesma tocata &
fuga, sem escapatória. Se Machado temesse repetir-se,
não teria escrito tantos contos envolvendo a mesma
rotina conjugal de adultérios mal camuflados, porém
cada conto tem uma sutileza, uma peninha, um acorde dissonante,
aquilo que faz de cada autoplágio algo original. De
mais a mais, eu poderia responder simplesmente que água
mole em pedra dura tanto fura até que bate...
Zunái: É notável
em sua poesia o meticuloso trabalho de orquestração
das palavras, que resulta em sonoridades imprevistas. Recordando
Ezra Pound, para quem a música é uma modalidade
da crítica literária (pois permite "testar",
pela arquitetura sonora da canção, a tessitura
verbal do poema), comente o processo de criação
do CD Melopéia.
GM: Você
tem razão, meus sonetos não apenas desempenham
como procuram deliberadamente exercer as várias funções
poéticas, sendo concomitantemente "logo",
"fano" e "melo", já que, além
de metro e rima, trabalho internamente as aliterações,
paronomásias, ecos e cacófatos, para dar mais
eufonia às banalidades e vulgaridades. Nada mais conseqüente,
pois, que dar um passo além, sonorizando alguns desses
sonetos na melodia e na interpretação de figuras
díspares e controvertidas da cena musical, como o já
saudoso Itamar Assumpção, o irrequieto Arnaldo
Antunes, o debochado Falcão ou o desconcertante Ayrton
Mugnaini. Se houver quem banque um segundo volume, entrarão
Arrigo, Tom Zé, Lobão, Chico César e
outros parceiros que já conhecem e curtem meus versos.
Zunái: Em seus primeiros livros
publicados, como Línguas na Papa e Memórias
de um Pueteiro, você praticou uma modalidade de
poesia visual combinando recursos de diagramação
e variação tipológica, num artesanato
meticuloso que se assemelha a bordados verbais. Essa geometria
da composição parte da poesia concreta, mas
com temperos da fala malcriada, das frases de banheiro, do
humor pesado, dos comics. Após a perda da visão,
você abandonou essa linha de pesquisa, adotando o soneto
como meio de expressão. O que a leitura dos poetas
concretos representa hoje para o seu fazer poético?
GM:
Se os poemas daqueles livros reúnem características
híbridas, entre a caricatura do concretismo e a verbivocovisualização
do calão latrinário (através do artesanato
datilográfico, fusão a que dei o nome de "datilograffiti"),
é porque todos foram tirados do Dobrábil.
E não posso negar que o conceito do Dobrábil
deve muito à Revista de Antropofagia do Oswald,
assim como a noção de "coprofagia"
(reaproveitamento de idéias/obras já assimiladas),
mas tal influência se dá pela mão dos
concretos, a quem devo grande parte do meu enciclopedismo
pedeuta. O concretismo pode estar situado no tempo –
E como foi fértil em seu revisionismo estético!
--, mas a ourivesaria com que os concretos multifacetaram
a palavra bruta é algo que fica e exerce permanente
vibração. Aquilatar e esquadrinhar cada palavra
já não é mero artifício da bijuteria
parnasiana: hoje é algo que se cristaliza e valoriza
no decorrer do tempo. Por isso digo que meus sonetos são,
além de PORNOSIANOS (o cocô das pombas), CANCRETISTAS
(o tumor do verbo vocal).
Zunái: Você conviveu com
o poeta argentino Néstor Perlongher, traduziu Fervor
de Buenos Aires, de Jorge Luis Borges (em parceria com
Jorge Schwartz) e Dono Meu, do autor mexicano Salvador
Novo. Recentemente, publicou Galeria Alegria, com
os textos satíricos que escreveu em espanhol para o
Jornal Dobrábil, usando o pseudônimo
de Garcia Loca. Comente a sua relação com a
poesia latino-americana. Quais são os autores que falam
mais à sua sensibilidade?
GM:
Autores universais, como Borges e Paz, falam à sensibilidade
de qualquer poeta antenado, mas a mim falam mais de perto
aqueles mais debochados e corajosos. Curto os "contemporâneos"
(grupo mexicano a que pertenceu Novo e outros ultraístas),
mas mesmo estes, bem como os neobarrocos, têm bastante
visibilidade. Independentemente de escola, li com prazer,
entre os visíveis, o chileno Fernando Alegría,
o colombiano Porfírio Barba-Jacob, os cubanos Sarduy
e Arenas, os mexicanos Villaurrutia, Cernuda e um inventivo
sonetista chamado Raúl Renán. Só que,
como "maldito", continuo mesmerizado pelo que Zé
Paulo Paes chamava de "veio subterrâneo" da
poesia, isto é, a tradição fescenina,
e nesse sentido fico maravilhado quando me cai nas mãos
algo como aquela Nomenclatura y Apología del Carajo,
que publiquei no Dobrábil assim que Jorge
Schwartz ma presenteou, cujo autor, Francisco Acuña
de Figueroa, é ninguém menos que o mesmo autor
do hino uruguaio. É dessas relíquias que ando
atrás e passo à frente.
Zunái: Você está
escrevendo um novo livro de poemas?
GM: Sempre
estive. Todos os meus livros são novos, ou, por outra,
são partes do mesmo velho livro que continuamente escrevo.
Como a febre sonetífera não cede, a safra deve
render ainda muitos títulos. Depois de Contos Familiares:
Sonetos Requentados, virá um volume chamado Carinho
e Carão, outro chamado Cara e Coroa e,
ainda incompleto, Cavalo Dado: Sonetos Cariados.
Mas tenho pronto um livro de glosas sobre motes fesceninos,
intitulado O Glosador Motejoso, só para variar
um pouco aquém da sonetomania.
Nota: os livros inéditos citados por
Glauco nessa entrevista foram publicados meses após
o fechamento da matéria.
*
Leia também poemas
de Glauco Mattoso e um ensaio
sobre o autor.
|