ATENTADOS POÉTICOS DE JOMARD
MUNIZ DE BRITTO
LUIZ COSTA LIMA
Assim como há amores inesquecíveis,
há pesadelos irremediáveis.
O Holocausto é o pesadelo
de nosso fim de século.
O real não é nem o que se põe diante de mim
e exige uma linguagem que o torne
transparente,
nem tampouco o que se embaralha
em uma cadeia deslizante de significantes,
de promessas de sentido, sempre autodestruídas.
O real é isso e aquilo: desafios da mímesis:
algo que está aí e algo que se constrói.
Imitação como invenção.
O Holocausto pôs em dúvida a possibilidade
mesma de uma história messiânica.
O século XX terminou sem que saibamos mais
do que Kafka: “Sou fim ou começo”.
O efeito da leitura implica por certo uma
transferência,uma interminabilidade
do sentido,
não necessariamente uma indecidibilidade.
Assim como há amores irremediáveis,
há pesadelos inesquecíveis.
E leituras intermináveis como
desafios ao pensar pensante.
A GRANDE SOLYDÃO*
Não a decantada pelo mago Rilke
de amores e anjos terríveis.
Nem o sol da mais sólida soledade
nas tropicais miscigenações.
No solar de mangueiras, licores de pitanga.
Tantas comendas, quantas ingratidões?
Desabafo na cidade sitiada
em trópico de pernambucâncer:
Meus filhos, volúpia genética,
sem os lances de minha genialidade.
- Discípulos? – talvez por ventura
intelectuários.
- Dissidentes – desaforadamente
sectários.
(Salve-se a vaidade de um ex-Príncipe da
Sociologia.)
- Madá,ô Madá, ô Magdalena Magdeleine!
Larga este tricô e vem me abrasar...
Coço as virilhas da poesia em pânico:
- Vem, ó menino da rua, menino senzalado,
desejado.
Fui eu quem inventou a morenidade
de teus suores e músculos e apetites.
Durmo sonhando com a eternidade de meu Y.
*Ao centenário de Gilberto Freyre
THE GREAT SOLYTUDE*
Not the one celebrated by the magician Rilke
of terrible angels and lovers.
Nor the sun of the most solid solitude
in the tropical miscegenations.
At the mansion with the mango trees
and the “pitanga”liqueurs.
So many commends,how many ingratitudes?
Outbursts in the besieged city
in the Tropic of Pernambucancer.
My children,genetic voluptuosness,
without my strokes of genius.
- Disciples? – Perhaps “intellectuarians”,
- Dissidents? – Insolently sectarians.
(except for the vanity of a former prince of Sociology.)
Madá,oh Madá,oh Magdalena Magdeleine!
Stop that knitting and come to heat me...
I scratch the groin of poetry in panic:
- Come,oh street-boy, slave boy,desired one.
It was I who invented the “brunetness”
of you sweat and muscles and appetites.
I sleep dreaming of the eternity of my Y.
*To the centenial of Gilberto Freyre
(Translation: Esmeraldino Oliveira. Revisão: Roberto Motta).
AQUARELAS DO BRASIL
o brasil não é o meu país: é o meu abismo.
o terreiro de minhas, nossas contradicções.
é meu câncer coletivo
e a força luminosa da escuridão.
é nosso discurso interrompido
sufocado e
arrebentador.
o brasil não é o meu país: é meu veneno.
é a miséria que nenhum milagre ocultou.
não é a esperança discreta
mas concreta e escandalosa
de que tudo (ainda) pode
acontecer para melhor.
é a dificuldade de conscientização
diante de tantos séculos
de escravismo colonial.
o brasil não é o meu país: é meu anti-discurso.
são idéias e traumas
dentro e fora do lugar.
são corpos em tempo de fome
mesmo assim luzindo de paixão.
é o ódio latindo
no peito dos poderosos
e seus pacotões pesadíssimos
para nós.
são, apesar de, todos os projetos
de democracia sem adjetivos
de importação ou
tapeação.
o brasil não é o meu país: é nossa esquizofrenia.
é o medo de sempre
doendo e até anestesiando.
é o gozo de sempre
roçando e até nos enganando.
é o carnaval no futebol das religiões.
é o terror de outrora
ainda agora despedaçando
infâncias e prefeitos do pt.
é a demora no jeitinho de esperar sem
desespero.
são os rasgos de genialidade
no mar de tanta imbecilidade.
é tudo que nos divide
nos sacaneia e
nos diversiona.
o brasil não é o meu pais: é um vídeo tape de
horror.
é cinco mil vezes favela.
é cinqüenta mil terras em transe.
são os bóias-frias em trânsito.
são os trâmites da cultura oficiosa.
é o neocapitalismo de sampa.
é a boca do lixo luxuriosa.
é a confiança,nem tão ingênua como se propala,
das classes oprimidas
reprimidas
deprimidas
proletarizadas
encarceradas
ofendidas e
massacradas.
é a dependência corroendo tudo para nada.
o brasil não é o meu país: é nosso buraco
cada vez mais
embaixo
do outro
buraco.
é a luta dos severinos da vida
contra os severianos da indústria cultural.
são florestas devastadas e enchentes arrazadoras.
dores anônimas de habitantes do anonimato.
o índio sem apito.
o negro aflito.
o branco – quem sabe? –
de consciência em conflito.
as minorias ensaiando o grito.
os maiorais passando o pito.
é a rima pobre da prosa nossa de todo dia
o dia d de poesia e azia e delito.
o brasil não é o meu país:é nosso câncer
circular cotidiano coisificado no circuito
do abismo para as alegorias das impunidades.
NADA MAIS CHOCA. ACABOU A TRANSGRESSÃO?
Entre cinismo e ceticismo, tudo ainda pode ser chocante,
apesar dos pára-choques
das instituições reguladoras, disciplinares e
cristalizadoras. Das famílias às
Academias. Das gramáticas aos “aparelhos ideológicos do
Estado”. Dos cânones
ao pós-tudo. Das metalinguagens ao transe dos internautas.
As situações-limite em busca dos efeitos de recepção
dependendo das
potencialidades da vida em linguagem. Nem fascistas nem
democratizadoras,
as linguagens se exercitam no cotidiano das séries,
repetições e dissonâncias,
clichês e neologismos, convenções e trapaças da
subjetividade em luta com os
historicismos.
O melhor da herança-errância dos sofistas foi de-monstrar
que os conceitos
podem ser virados pelo avesso e que os argumentos do a favor
transbordam no
contra, no outro inesgotável, no negativo, nas alteridades.
Pedagogia sofística ou
deseducação por todas as cidadanias: encruzilhada ou
entrelugar da ética na
estética, dos conceitos na experiência revivida,da norma nos
desvios, dos poderes
nos prazeres. Retórica das politicidades.
Entre-tempos e entre-expressões da cultura bancária,
impositiva e domesticadora
segundo Paulo Freire, e ações culturais para a liberdade.
Libertadoras, libertárias
e libertinas para todos os gozos e decepções.Ecletismos e
sincretismos além dos
trópicos.
Nesta (re)virada interminável do século, os tigres asiáticos
se tornaram tigres
surreais no papel. Ou onças digitais. A vontade de potência
das linguagens
percorrendo, esbarrando, corroendo, fraturando todos os
deslizamentos dos signos.
Desencantos do mundo e néon-reecantamento das linguagens.
Escrituras
audiovisuais. Leituras de intervalos intercambiáveis.
De volta ao futuro das margens e exaustão das diferenças:
resistindo
polissemicamente no devir, historicidades, contextos e
dissensos, projetos e
projéteis do ser e não ser, dos nominalismos, das
ambigüidades, antropofagias e
autofagias, anti-dogmatismos e transmutação dos valores.
Pela inclusão da
barbárie nos processos civilizatórios. Ruínas para todos.
Não temos tempo de temer a sorte, a morte, o medo das
guerras nem o desejo de
guerrilhas culturais permanentes. À sombra tropicalíssima
dos intimismos no
poder, dos eternos favores,das dores e delícias de ainda
sermos herdeiros
bastardos da cultura chapa branca. Na voz de Nicolas Behr: -
“a poesia chapa
branca/atropela o poeta-oficial/em pleno eixão”. Marginálias
recuperadas
ou reinventadas? Estéticas antropológicas contra nós mesmos.
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Jomard Muniz de Britto
é poeta, ensaísta, professor universitário. Reside em Recife.
*
Leiam também uma entrevista
com Jomard, um ensaio
sobre o autor e acessem o arquivo de imagens.
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