ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

PERFORMANCE

 

JOMARD MUNIZ DE BRITTO: A PALAVRA DE TUDO

 

Marcius Cortez

 

Há um quadro do pintor Francisco Brennand, chamado “O Vigia”, de 1981, que mostra um homem de costas, num capote velho, com chapéu, chegando numa dessas casinhas típicas do interior. (O quadro “The Watchman” ganhou notoriedade porque foi a obra escolhida para ilustrar a reportagem sobre Brennand, publicada no jornal The New York Times, Thursday, april 22, 2004, assinada por Larry Rohter sob o título de “In Brazil, Iconoclast Is Bearded in His Den”). Jomard é alto e magro como aquele homem, tem mais ou menos aquela expressão corporal e quando usa chapéu, deixa de fora seus tufos de cabelos grisalhos. Olhos de saci por trás dos óculos de grau, lábios de Baudelaire, nariz de nobre arruinado, cabeleira de  cantor de tango, queixo que emoldura bem a linha da boca, braços longos, mãos curtas, de orelhas grandes, este lobo mau (mais lobo do que mau) mora num dos blocos de um prédio de sete andares entre as ruas João Fernandes Vieira e Padre Inglês, no Recife, cidade onde nasceu. Jomard tem voz grossa, um gestual clássico, de quem preza tanto o monólogo quanto a interlocução. Suas aulas ameaçam o sono dos alunos e suas performances poéticas premiam o Recife, acontecendo nas quebradas da periferia ou nos recintos bem pensantes A vida, para este senhor aposentado de setenta anos, está longe de ser apenas uma conversa consigo mesmo. Pois o vigia Jomard Muniz de Britto vem se aprofundando, ao longo da palavra escrita, na arte desejosa de outras linguagens.

Há num dos seus últimos livros (“Atentados Poéticos”, 2002) um capítulo inteiro que espelha o seu modo de trabalho. Em “Memórias Roubadas”, JMB exercita o seu credo que consiste em cultivar diálogos reais e oníricos com as mais diferentes visões do Brasil, do mundo e do ser humano. Nestas quarenta e duas memórias, cujos títulos são sempre o nome de uma pessoa, amigos ou celebridades, o leitor entra em contato com um Jomard fundamentado em altas leituras. Em “Luiz Costa Lima”, por exemplo, vê-se que JMB conhece a obra do autor de “Limites da Voz”. Em “Clarice Lispector”, com aquele fecho magnífico, fica patente a sua autoridade para discutir o universo lispectoriano. Em “Augusto Maiakovski de Campos”, depreendemos que o arco da sua poeticidade se afirma abrangente. Porém, como não poderia deixar de ser em se tratando do famigerado JMB, ele nos surpreende, num destes tópicos, com um derramamento lírico de inspirada feitura em “Daniel Lima”. Os dois únicos autores que não sofreram interferências  (ou “bombinhas” como prefere chamá-las o ensaísta/dramaturgo João Denys) são Daniel Lima e Roberto Motta. Nem Proust escapou dos atentados jomardianos...

Poucos intelectuais são tão polivalentes, tanto na forma como no conteúdo, quanto JMB. Dono de um estilo brincantemente pessoal, que se desenvolve em sua obra de maneira constante, Jomard trabalha com o que vem do outro, com os intertextos, com os fantasmas da fenomenologia, suas leituras semiológicas, suas inquirições sobre o nosso feudalismo cultural, seus abismos deflagrados, seus sujeitos fissurados, enfim, suas reflexões emotivas, numa orquestrada e por que não dizer, sinfônica mixturação.

 

CONFRONTADOR DA INTELIGÊNCIA

Artista de peles mutantes, ele tece sua amálgama sem medo de composições vulcanicamente panfletárias como em “Aquarelas do Brasil”, ou sem se importar de abusar de certos jogos de palavras, de certas liberdades que causam estranheza entre os puristas recalcitrantes. (A estes, recomendamos a leitura do texto sobre Gilberto Freyre: “Crueldades & Confraternizações. Breve ensaio de psicanálise selvagem” ).

Há duas cenografias em sua obra. A cenografia pensante e a cenografia desejante. Ambas se relacionam de maneira frontal. Podemos dizer que ela tem um corte epistemológico organizado. Nada está congelado, do mundo e do nosso país tudo se aproveita é o que nos parece querer dizer. Ao transitar dentro e fora das ortodoxias, ao procurar se afinar na sua proposta de explorar linguagens múltiplas, Jomard nos oferece lições de originalidade. É coerente sua arquitetura, é coerente sua gestualidade. Sua obra discute paradigmas, paradoxos, enigmas e contradições.E todas as suas conversas parecem não ter fim. Uma emenda na outra: superposições que geram associações infinitas. Seria isso o que o próprio autor se refere como sendo o seu desejo desejante do pensar pensante?

Uma obra de arte é coisa viva, você toca nela e ela se mexe. Na construção da sua, Jomard optou por produzir um diário não datado do seu corpo-a-corpo em busca de outras retóricas. Como dissemos anteriormente, sua arquitetura é coerente. Nos primeiros contatos com ela, o leitor logo descobrirá que ali se inventou um elo que interage com todas as formas de expressão. Ou, em outras palavras, estamos diante de um escritor que tem o que dizer. Um artista que se presta a servir de confrontador da inteligência, como queria Mário de Andrade.

 

A BULA VIDE JOMARD

A escrita de Jomard é conceitual. Suas pausas, suas entonações apresentam uma fluência que, por vezes, se assemelham a um texto oral. De maneira direta ou atrás de sutilezas estrategicamente armadas, ele não disfarça sua característica mais constante: a presença dominante da heterodoxia. Sem lenço e sem bandeira no mastro, JMB toca o barco priorizando temas que vão e que retornam, como o mar que enche e seca. Sua proposta consiste em estimular ecos. Primeiro por configurar uma obra aberta ao que vem do leitor e, segundo, por ser uma caixa de risadas movida a um tipo de humor, geralmente classificado como cortante, mas que no caso de Jomard, podemos falar em humor aos botes, parafraseando Glauber Rocha na apresentação do livro “Do Modernismo à Bossa Nova”, a sair antes do fim do ano pela Ateliê Editorial: “Prefiro falar de Jomard Muniz de Britto, pernambucano de muitas artes escondidas atrás de uma fascinante timidez. Fascinante porque, se recolhendo continuamente, Jomard sempre deixa prever um bote, quando larga é golpe certo, no ponto vital”.  

Jomard não se considera poeta e sim autor de atentados poéticos. Jomard não se considera cineasta, apesar da sua produção em áudio-visual, superoito e  vídeos reunir mais de trinta títulos. Jomard não se considera filósofo, apesar de ter sistematizado sua estética quando lançou o CD “Pop Filosofia”. Ou em outros termos, na sua obra cabe tudo e essa sua abrangência fundamenta o seu papel de profeta mixturador o qual, apesar de ignorado por intelectuais guardiões de cemitérios, vem se constituindo numa singularíssima contribuição à crítica da cultura brasileira e ao entendimento da linguagem dos três pppês, poesia, política e pedagogia. Hélio Oiticica afirmava que fazia o exercício da imagem em todas as suas formas. Certamente, poderemos dizer o mesmo em relação a Jomard, substituindo a palavra imagem por conceito, o que, talvez no final das contas, venha dar no mesmo.   

 “Por poesia não entendo essa arte particular que consiste em escrever versos, senão um processo mais geral e mais primário: o de intercomunicação entre o ser íntimo das coisas e o ser íntimo do humano... neste sentido, a poesia é a vida secreta de todas e cada uma das artes”, assim falou Jacques Maritain – lembra-se dele? – citado em algum lugar por JMB. E esta referência daquele filósofo católico cai como uma luva para que entendamos os fundamentos da obra jomardiana. Muito além do efêmero,seu compromisso é com os interesses cognitivos e com a depuração multifacetada da realidade do mundo e do PAU-ANTROPÓFAGO-BRASIL.  

Este pernambucano orgânico é um cartão-postal da intertextualidade e das fusões impossíveis. O texto em si lhe parece pouco. As matrizes do seu fazer artístico nascem em diversas fontes, como um rio que não tem apenas uma foz e que não chega no mar sozinho e sim acompanhado por todos os seus afluentes. Anarquista? Seria simplista dizer isso dele. Supomos ser mais pertinente falar no “mar finito-imprevisível da liberdade.” A liberdade se reconquistando e reconstruindo como errância apesar de todos os  “condicionantes, determinismos, programações genéticas, pulsões e compulsões, opressões e liberações, tradição e ruptura”. Eis o que está num dos textos recentes, que redigiu para servir de posfácio ao “Do Modernismo à Bossa Nova”.

Um pensamento em movimento, antidogmático por excelência, um diálogo com todos os meios, formas e expressão do conhecimento humano a serviço da decodificação das identidades da nossa cultura. Seria isto, em síntese, o pilar básico onde se assenta a sua obra. Julgamos que não seria exagero falarmos em luminescências. Certamente é possível vê-las nas páginas que Jomard  Muniz de Britto produziu. Luminescências-clarões, respostas de um intelectual que leva a cultura a sério e a quem, podemos lançar questões para compreender os nossos abismos neste mundo que perdeu o rumo.

 

MUSEU JOMARD

No dia em que alguém for fundar o Museu Jomard, por certo, irá reunir no seu acervo as contribuições que o autor do “Bordel Brasilírico Bordel” prestou à cultura brasileira. Seus livros, o CD da “Pop Filosofia”, seus filmes superoito, os vídeos das suas performances em espaços públicos e, claro, as histórias pessoais que formatam seu patrimônio existencial. Jomard olha para seu passado com a humildade que lhe permite permanecer inquieto no presente. No momento, trabalha no projeto de um livro em co-autoria com Joca Teixeira Gomes e Fernando da Rocha Peres – são os laços baianos do pernambucano JMB, coisa aliás que a obra deverá tratar, o folclórico bairrismo entre o povo desses dois estados. Com a licença da palavra, aproxima-se mais um novo palco para o famigerado JMB parodiar, filosofar, inquirir, opinar e, principalmente, rir. Nas pulsões da vida e da morte, o autor tirou o couro para fazer a correia que tem como cerne, como componente transcendental da sua gênese, aquilo que ele chama de escreviver. (Entre o verbo no infinito – do livro de José Lino Grünewald e o cinevivendo de  Jean-Luc Godard, JMB continua apostando no ESCREVIVENDO – seu livro-envelope de 1975). Escreviver – o leitor observará como este tema se espalha em sua obra. Melhor do que ninguém, o vigia Jomard soube equilibrar os pesos e as medidas da sua vida para fora e da sua vida para dentro.Trata-se de um leitor apaixonado que é capaz de  passar uma semana inteira fechado dentro de casa lendo um livro. Trata-se também de um rueiro de marca maior. No espaço dessa quinzena em que mantivemos contato para esta entrevista, JMB esteve participando, por uma noite, num evento no Alto  José do Pinho, mais precisamente na Praça da Maconha, apesar dele não ser um usuário da erva. Sábado passado, voltou à periferia do Recife, dessa vez para acompanhar seu amigo Vavá Paulino que levou sua peça “A Carne mais Barata” no bairro Bomba do Hemetério. Sem falar que ainda sobrou tempo para fazer o seu habitual percurso pela programação cultural da cidade. Deu uma passada na exposição de um jovem artista plástico e fotógrafo; compareceu ao lançamento do primeiro livro de um poeta de dezessete anos, para o qual escreveu a apresentação; prestigiou a romancista Maria Cristina Cavalcanti de Albuquerque e o economista Roberto Cavalcanti de Albuquerque em concorrido acontecimento; reviu mais uma vez “ Baixio das Bestas” de Cláudio de Assis; foi à lan house onde é freguês para digitar seus atentados e ufa, estacionou num dos bares do Recife Antigo, onde expressando seu amor pela pedagogia, tomou o seu  Teacher’s. Sobre esta faceta do nosso entrevistado, cabe um comentário. Parte da imprensa local costuma referir-se a ele como agitador cultural. É um despiste cruel classificá-lo assim, é justamente para descartar sua obra, folclorizar suas idéias e pior, deixar de ouvi-lo e de lhe levar em conta como artista e como crítico da cultura.Normalmente isto parte dos tipos que se impressionam com a literatura comercial que se propagou como uma peste nos flips do bananão. É a mesma gente que se omite, por exemplo, em relação à programação mediocrizante que a televisão brasileira nos enfia goela abaixo. Mas, aos vencedores, as batatas. É preferível mirar-se no próprio Jomard, que construiu uma obra independente e por conta disso permanece, no seu posto de vigilância, preparando o seu biscoito fino, longe, muito longe das rasteiras da intelectualidade.

No pós-tudo, para usar um termo que lhe é caro, JMB será mais lido do que é hoje. Atualmente, em Recife, há vários sinalizadores de que ele passa a ser visto com outros olhos. O nível de percepção da sua obra está mudando. Logo mais o País fará justiça, procurando escutar suas escrevivências, toda vez que o assunto for cultura brasileira. Eu, que sou seu amigo há quarenta e cinco anos, alimento a idéia de que um dia nós ainda faremos um jornal de cultura, em parceria. Para mim seria uma honra desafiadora ter uma cabeça como a de Jomard co-editando comigo um veículo desejante de outras linguagens. Eu teria realizado o sonho flaubertiano, expresso por Deslauriers a Frédéric Moreau em “L’Éducation Sentimentale”:  ”On est las, de constitutions, de chartes, de subtilités,de mensonges! Ah!si j’avais um journal ou une tribune,comme je vous secouerais tout cela!”

 *

Marcius Cortez é ensaísta e ficcionista. Reside em São Paulo.

  *

Leiam também uma entrevista com Jomard, poemas do autor e acessem o arquivo de imagens.

 

<<< retornar

[ ZUNÁI- 2003 - 2007 ]