ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

SEBASTIÃO NUNES

por Fabrício Marques

Sebastião Nunes nasceu em 5 de dezembro de 1938, em Bocaiúva, Minas Gerais, filho mais velho de Levi Araújo Nunes e Geralda Oliveira Nunes. Em 1955, mudou-se para a capital mineira. Nos dois anos que se seguem cresce o seu gosto pela leitura e começa a escrever, imitando Humberto de Campos e, em seguida, Graciliano Ramos. Chegou a escrever 35 páginas de um romance no estilo de Vidas Secas, além de plagiar, copiar, pastichar uma infinidade de escritores, pintores e cineastas e se apropriar de tantos outros.

Em 1960, prestou vestibular na Fundação Universidade Mineira de Arte, depois de reprovado três vezes em vestibulares para Medicina. Freqüentou o curso de publicidade durante um ano e meio, exatamente a metade. Ao mesmo tempo, começou a trabalhar em publicidade: de início como tipógrafo, depois sucessivamente como fotógrafo, arte-finalista e diretor de arte.

Quatro anos depois, publicou um conto no Suplemento Literário do Estado de S. Paulo e um cartum na revista Senhor, e começou a estudar na Faculdade de Direito da UFMG (formou-se em 1970, mas nunca exerceria a profissão). Em 1966, aproximou-se de jovens escritores daquela época, como Sérgio Sant'Anna, Luís Gonzaga Vieira, Adão Ventura e Jaime Prado Gouvêa. Abandonou a profissão de publicitário definitivamente pela primeira vez (serão cinco abandonos "definitivos" até o último, em 1995). Descobriu simultaneamente os concretistas brasileiros e os beatniks americanos.

Em 1967 produziu o primeiro poema que considerou satisfatório. Publicou poemas e ensaios curtos no Suplemento Literário do Minas Gerais. No ano seguinte foi publicado seu primeiro texto, num pequeno caderno de 16 folhas com três poemas: Última Carta da América, Auto da Virgem Ensimesmada e Sete Recursos Extraordinários. O livreto é dedicado a Murilo Rubião - guia intelectual, juntamente com Affonso Ávila e Laís Corrêa de Araújo, de toda a sua geração. Participou, como poeta convidado, de várias exposições nacionais do grupo Poema Processo, entre 1968 e 1971, sem, no entanto, se ligar ao grupo.

O segundo trabalho, A Cidade de Deus, veio a público em 1970: é o primeiro pelo processo de subscrição, que adotará desde então para todos os trabalhos maiores. Três anos depois, passando a morar no Rio de Janeiro, surgiu o livro-envelope Finis Operis, que havia sido recusado pela Editora Civilização Brasileira. Outro fato marcante nesse período é o contato com Clarice Lispector, a quem visita duas vezes.

"Em 1973, já no Rio de Janeiro, morando numa quitinete em Botafogo e vivendo de biscates, recebi certo dia um telefonema. Eu tinha publicado meu 3° trabalho, um envelope de papel kraft vagabundo recheado de poemas de formas e tamanhos diversos, o Finis Operis. Pois certo dia, minha velha vizinha veio me chamar, dizendo que alguém estava no telefone dela, me procurando. Agradeci e fui atender. A pessoa se identificou como Clarice Lispector e disse ter recebido meu pacote. Como não entendeu nada, disse ela, mas achava que eu tinha alguma coisa a dizer, me perguntou se eu podia ir visitá-la pra conversarmos. Mais uma vez, eu não tinha pedido favores. E do alto de seu talento e de sua beleza, a magnífica Clarice me reconhecia como alguém digno de atenção. Visitei-a duas vezes e nos escrevemos duas ou três cartas. Era extremamente carinhosa e curiosa, mas também muito paciente. De modo que, depois da segunda visita, desisti, em vista da multidão de puxa-sacos que freqüentava o apartamento dela e tornava impossível qualquer conversa com um mínimo de coerência. Por falar nisso, exatamente naqueles dias ela estava sendo despedida do Jornal do Brasil - por ser judia!"(1)

Em 1975, produziu, para o poeta Affonso Ávila, o livro Cantaria Barroca, primeira experiência na produção de livros para outros autores, atuando como editor e artista gráfico. Na Alemanha, Curt Meyer-Clason publica dois poemas de A Cidade de Deus na antologia Brasilianische Poesie des 20, reunindo 23 poetas brasileiros representativos do século 20. Nos anos seguintes saem mais três publicações: Zovos, em 1977; o livro-cartaz O Suicídio do Ator, em 1978; e Serenata em B Menor, um simples folheto de duas dobras, em 1979, mesmo ano em que passou a viver em Sereno, povoado de 2 mil habitantes próximo a Cataguases, no interior mineiro.

Em 1980, de volta a Belo Horizonte, fundou as Edições Dubolso e publicou Somos Todos Assassinos, primeiro texto em prosa. Pela Dubolso publicará, daí em diante, todos os seus textos e mais de 20 livros de autores jovens inéditos, principiantes ou recusados por grandes editoras.

Em 1983, é a vez do lançamento de A Velhice do Poeta Marginal. Convidado por Murilo Rubião, faz durante dois anos a programação visual do Suplemento Literário do Minas Gerais, em colaboração com Jaime Prado Gouvêa, Manoel Lobato, Duílio Gomes e Lucas Raposo. No mesmo ano passou a morar em Sabará, cidade próxima a Belo Horizonte, onde vive desde então. Dois anos depois, outro livro é lançado: Papéis Higiênicos.

Publicou o primeiro volume da Antologia Mamaluca, incluindo o inédito Poesias, em 1988. Lançou, no mesmo dia, uma edição ilustrada do Elixir do Pajé, de Bernardo Guimarães, com introdução do poeta Romério Rômulo e desenhos de Fausto Prats. No mesmo ano, em maio, A Secretaria de Cultura do Estado mandou recolher e sustar a distribuição de metade da edição de 2.500 exemplares do jornal Ponta de Lança, órgão cultural da Fundação Clóvis Salgado, por conter um poema "pornográfico e de muito mau gosto". Trata-se de As Rampas do Palácio, sátira aos governos brasileiros em geral. À época, Sebastião Nunes replicou dizendo que "pornográfico é o governo".

Em 1989 saiu o segundo volume da Antologia Mamaluca, incluindo o inédito Aurea Mediocritas, com que encerra sua obra de poeta. A partir do mesmo ano reescreve (e ilustra) continuamente a História do Brasil, livro iniciado em 1987. As assinaturas dos personagens do livro foram inventadas pelo autor ou obtidas pelo poeta Otávio Ramos na Biblioteca Nacional, do Rio de Janeiro. Quase todos os retratos são também fictícios, escaneados de gravuras antigas e não correspondendo às personalidades originais. O livro é afinal lançado em 1992 -pela editora Dubolso-, depois de recusado pela Companhia das Letras.

Em 1994 foi homenageado pela prefeitura de Belo Horizonte, com um fascículo sobre sua obra, dentro da coleção Mostra Poética de Belo Horizonte; e pelo Giramundo, teatro de bonecos, com a peça Antologia Mamaluca, sob a direção de Álvaro Apocalypse. No ano seguinte lançou livro duplo, contendo a terceira edição de Somos Todos Assassinos e a primeira de Sacanagem Pura.

Em 1996 editou um pseudo-Mais!, cópia graficamente fiel do caderno do mesmo nome da Folha de S. Paulo. Ameaçado de processo, respondeu em carta-aberta, endereçada ao jornal paulista e a mais de 300 escritores e jornalistas brasileiros. O jornal silenciou. Sobre o fato, o ensaísta Silviano Santiago escreveu:

Sebastião Nunes apropriou-se do logotipo de conhecido jornal paulista para dar e publicar uma "entrevista" que ele não consegue dar e publicar nos suplementos literários prestigiosos. Tião Nunes, na "provinciana" cidade de Sabará, está fazendo a sua capina cultural, suplementando os suplementos literários das "metrópolis" brasileiras" (Santiago, 1996) (2).

Em 1998 publicou o primeiro volume do Decálogo da Classe Média, que é enviado pelo correio, durante todo o ano, a cerca de 120 intelectuais que o apoiaram de alguma forma nos livros anteriores. Todos os exemplares foram remetidos dentro de um pequeno caixão de defunto. São lançados, ainda, de sua autoria, três livros para crianças: Sapatolices, O ontem que virou hoje e O Peru que nasceu 30 dias antes do Natal. Também participou da Bienal Internacional de Poesia de Belo Horizonte, com palestra e a exposição 30 anos de guerrilha cultural e estética de provocaçam.

Começou a trabalhar, em 1999, com animação para cinema e vídeo em computador, a partir de seus poemas visuais, sendo que desde os anos 60 Nunes tinha o projeto de fazer animação. Só que não havia, então, recursos técnicos que lhe permitissem produzir o que pretendia. A partir de 1999, contudo, tem trabalhado com um software que dá movimento a frames (cada imagem isolada), como numa animação tradicional, só que com mais rapidez. A fonte das imagens em que trabalha são os volumes 1 e 2 da Antologia Mamaluca, de onde saíram animações como Inclame (versão animada de Elegia em Quatro Tempos). Em Inclame, um punhado de ratos devora um cérebro humano. Ou, ainda, Cristo, que, na versão em livro, chamou-se Habeas Corpus. Em Cristo assiste-se ao calvário de um esqueleto crucificado que, numa seqüência de imagens, despedaça-se até restar um amontoado de ossos desconjuntados ao pé do crucifixo.(3)

Em 2000, fundou a Editora Dubolsinho, especializada em textos infanto-juvenis. São editados quatro títulos de sua autoria: Gato no Mato, O Rei dos Pássaros, O Inventor do Xadrez e A Cidade das Estrelas. A Editora Altana, de São Paulo, faz o primeiro lançamento comercial de História do Brasil e Somos Todos Assassinos. No mesmo ano, a ensaísta Flora Süssekind, em matéria publicada na Folha de S. Paulo, inclui Decálogo da classe média e História do Brasil entre os livros mais importantes da década; e ocorre o lançamento do vídeo Provocaçam, sobre a obra do poeta, realização de Anna Flávia Dias Sales, entre outros. Finalmente, em agosto de 2001, Sebastião Nunes começou a colaborar com o jornal O Tempo, de Belo Horizonte, com uma coluna quinzenal no caderno de cultura Magazine.

História do Brasil é a história transformada em caos. Há pouquíssima semelhança entre fato histórico e o verbete correspondente. Há um pedantismo proposital de certos "estilos", dos muitos que adotou.

É um imenso pastiche histórico, uma peça tremenda, uma enorme piada contra a história de um país caótico e pavorosamente pervertido, humilhado e sucateado. Uma pena, pois seria tão bom se esse país desse certo, o que só seria possível, na situação a que chegamos, com um bom, prático, honesto e revolucionário regime socialista. O livro perderia o sentido histórico, se é que tem algum, mas o país se tornaria real". (4)

Decálogo da Classe Média corresponde, em termos literários, a um certo enfoque sociológico sobre o país, o mundo e os meios de comunicação de massa. De uma forma mais debochada, corresponde a Sacanagem Pura. É uma sátira, cujo peso recai sobre o que está sendo feito com o cérebro humano, a manipulação quase absoluta a que chegamos do comportamento, do pensamento e das reações das pessoas, transformadas quase todas em inclames, ou seja, Indivíduos de Classe Média, seres que não pensam por si mesmos, mas apenas reagem aos estímulos externos, especialmente da televisão. Aqueles que escaparam à rede televisiva, caem na teia dos grandes jornais e revistas, uma teia mais sofisticada, mas nem por isso menos massificante. Enfim, uma sátira ao desastre intelectual que foram os últimos 30 anos do século 20.

Para a literatura infanto-juvenil, especialmente, o poeta tentou aproveitar melhor seus recursos de programador gráfico, em livros que permitem um tratamento mais amplo da imagem. Neles, mesmo nos que apresentam textos maiores, predomina a imagem, a linguagem visual atravessando ou se superpondo ao texto.

Na verdade, não existe muita diferença entre essa produção para crianças pequenas, maiores ou mesmo adolescentes e a produção para adultos, exceto no grau de refinamento da linguagem e do pensamento, no jogo satírico mais pesado e mais escatológico, nas imagens mais agressivas dos livros adultos. (5)

Como sempre gostou de desenhar usando muita cor, na linha de Miró, de Klee e dos "primitivos" em geral, Nunes aproveita tudo isso nos livros para crianças. E o que começou quase como uma nova e "maluca" aventura, está se transformando numa cooperativa séria, já com perto de 40 autores cotistas, o limite máximo estabelecido.

"Daqui pra frente, muito trabalho e muita esperança de que a idéia dê certo. Trata-se, afinal, de uma editora comercial, cujo objetivo principal é editar bons livros. De maneira nenhuma estamos preocupados em lucro ou em facilitar o texto, em ser moralizantes ou bem comportados. Como tenho dito sempre sobre nossa proposta, criança não é um idiota pequeno, mas pode ser o projeto de um idiota grande." (6)

No final da década de 1980, Sebastião Nunes reuniu todo o seu trabalho poético em Antologia Mamaluca, volumes 1 e 2, que dão conta de 21 anos de atividade poética (1968 a 1989). É a reunião de oito lançamentos anteriores e mais dois livros inéditos, dispostos, em forma de livro, o que antes saíra como folhetos, cartazes, envelopes recheados de papéis de todas as formas, e "até livros parecidos com livros": O Suicídio do Ator, Finis Operis, Última Carta da América, Poesias, Papéis Higiênicos, A Velhice do Poeta Marginal, Serenata em B Menor, Zovos, A Cidade de Deus e Aurea Mediocritas.

Toda a programação visual -fotos, ilustrações, colagens e montagens- foi realizada pelo próprio Sebastião Nunes, também editor independente de seus trabalhos. Para quem sempre trabalhou de forma anticonvencional, caso do poeta, a forma do livro pode parecer limitada: "na parafernália gráfica de minha poesia houve de tudo: folhetos, cartazes, envelopes recheados de papéis de todas as formas", reconhece o autor na apresentação da Antologia 1.

Sebastião Nunes é caso especial da poesia brasileira. Especial porque não é só poeta, mas poeta e artista gráfico e editor de seus próprios livros. Sua condição de poeta é indissociável das outras qualificações. Como artista gráfico, criou a programação visual e foi o responsável pelas fotos, ilustrações, produção gráfica, arte-final e apropriações indébitas das duas antologias, que trazem colagens e interferências do próprio autor, sobre reproduções fotográficas de material anônimo e disperso em revistas, jornais e publicações publicitárias, catálogos de laboratório e lojas de departamentos, entre outras fontes. Em raríssimos casos, o material trazia autoria, mas essa se perdeu com o tempo. Porque como quase tudo fora retirado de publicações publicitárias americanas-do-norte, "uma atividade perniciosa num país indesejável", o autor considera tal apropriação "uma pequena revanche contra as apropriações que vimos sendo vítimas há séculos"(7).

As ilustrações vêm de todas as partes e épocas: Pelegrino de Pasquali, Veneza, 1494; Jean-Michel Moreau, The Younger, Paris, 1769; Anônimo, Alemanha, 1880; desenhos de sapos e outros animais: princípio do século 20; alfabeto de bichos: Joseph Balthazar Silvestre, Paris, 1843; alfabeto de pessoas: Jo Theodor & Jo Israel de Bry, Frankfurt, 1596; alfabeto ornamental, anônimo, Alemanha, século 15.

As Antologias Mamalucas 1 e 2 são o conjunto (e não apenas o resumo) de 20 anos de poesia, aliás toda a poesia que publicou. Pouquíssima coisa foi excluída. Sebastião Nunes afirmou ter apreciado muito fazer esses dois livros, pois sua poesia estava muito dispersa, difícil de agrupar, pelos vários formatos em que foram editadas. Finis Operis, por exemplo, era um envelope, com papéis de tamanhos e tipos diferentes. O Suicídio do Ator era um cartaz com frente e verso. Foi uma espécie de ordem no caos, principalmente porque sabia que não voltaria a fazer poesia. E sabia porque tinha feito uma circunavegação na própria linguagem. "E, como o uróboro (ou uróvoro) dos alquimistas medievais, mordi a ponta do meu rabo estético. Digamos, finalmente, que foi a satisfação do dever cumprido. O lento, suado e progressivo dever do poeta, descobrindo e explorando sua mina de palavras e de imagens" (8).

Aí estão, em linhas gerais, algumas sequências dos lances jogados por Sebastião Nunes desde seus primeiros passos na vida e na arte. O jogo está em aberto.

O que pode ser dito, quando se pensa num poeta como ele, é que não deve ser desprezada a relação entre poesia e técnica. Sabemos que, para os poetas modernos, mais precisamente escritores-críticos modernos como Octavio Paz, Michel Butor, Haroldo de Campos, T. S. Eliot, Jorge Luis Borges, Italo Calvino e Phillipe Sollers, "a linguagem literária readquire seu sentido original de poiesis, arte da linguagem que exige uma technè; essa technè ganha, na modernidade, uma homologia (não uma identidade) com as formas tecnológicas de produção material na sociedade moderna", tal como observou Perrone Moisés.

A ensaísta considera que "técnica é uma palavra que esses escritores usam sem o receio romântico de que esta contrarie o 'mistério' da inspiração. Para eles, na poesia como na prosa, o resultado não depende apenas da inspiração, mas de uma técnica que precisa ser aprendida e desenvolvida, e a partir daí, reinventada e inovada. Escrever é um ofício".

Gosto de pensar, como Barthes pensava e como lembra Perrone-Moisés a respeito, que "desde que a condição do escritor deixou de ser considerada uma vocação ou uma missão recebida do Além, ele sentiu a necessidade de se afirmar como um profissional. A técnica e o ofício tornaram-se, para ele, imperativos éticos".

Ao lado desse imperativo ético do qual a técnica não prescinde, é preciso ainda constatar que tem sido desconsiderada, ou mesmo neglicenciada, em grande parte dos estudos que analisam textos poéticos, a sua dimensão extra-verbal. Por esse motivo, as referências ou citações relacionadas a um determinado objeto de estudo tornam-se perigosas, em certa medida, porque retiradas de um palco em que a tipografia e as ilustrações são cenário e figurino, e até personagem. É o caso da poesia de Sebastião Nunes, diante da qual é muito difícil a incomunicação ou a indiferença. Poesia que se articula na idéia de mistura, de integração num único elemento poético de códigos verbais e visuais; mas sobretudo nas tensões entre palavra e imagem.

Tudo, afinal, tem a ver com o seguinte fato, já observado por Lúcia Santaella: o aspecto visual do Lance de Dados de Mallarmé -poema que pode ser tomado como referência da tradição à qual de alguma maneira Sebastião Nunes se liga- é apenas uma conseqüência superficial de uma revolução que escapa aos olhos. Revolução a que o olhar apenas não tem acesso. Como assinala Santaella, "por ser inacessível aos olhos, a questão mallarmaica diz respeito a um outro tipo de visualidade que pode ser chamada de diagramática. Uma poesia que só pode ser apreendida na sincronicidade dos sentidos. Trata-se de diagramas internos, fluxo e refluxo das analogias, força de atração e repulsão das semelhanças e diferenças, energia do tempo configurado nas malhas da linguagem" (Santaella: 1992). Uma nova sensibilidade tipográfica, representada pelos poemas de Nunes, guarda relação com esta "visualidade diagramática".

Aliás, a novidade de Mallarmé, em Un coup de dés -observa Perrone-Moisés-, é também vista como uma novidade "técnica", inspiradora de novas experiências escriturais: uma nova concepção do "livro como objeto" (Butor), da página como partitura verbal, legível em várias direções ou por entrecruzamento, o aproveitamento dos diferentes tipos gráficos (à semelhança do jornal e do cartaz modernos), o uso dos espaços em branco, novidades técnicas a que são especialmente sensíveis os poetas concretos, Paz e Butor e, podemos acrescentar, Sebastião Nunes.

Nos poemas de Sebastião Nunes, ainda, pode-se discutir o fato de que a técnica é uma questão política, e uma das dimensões fundamentais onde está em jogo a transformação do mundo pelo próprio homem.

Enfim, nos poemas de Nunes, o que também está em jogo são as construções paratáticas, tanto nas relações entre texto e imagem, quanto, vistos isoladamente, elementos do texto em relação entre si e elementos de imagem em relação entre si (9). Nessa organização por coordenação, o pivô é o conjunto das chamadas conjunções coordenativas. A parataxe está envolvida com a coordenação e com a anarquia. Diferentemente, a hipotaxe implica subordinação e hierarquia. (Pignatari, 1995: 158-163).

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Fabrício Marques, poeta e jornalista, nasceu em Manhuaçu (MG), em 1965. Publicou os livros de poesia Samplers (2000), Meu Pequeno Fim (2002) e o ensaio Aço em Flor: a Poesia de Paulo Leminski (2001). É editor do Suplemento Literário de Minas Gerais.

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Leia o Elogio da Punheta, de Sebastião Nunes.

Leia também poemas de Fabrício Marques e um ensaio do autor sobre Antonio Risério.

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