A
LOUCURA RETOCADA -
REFLEXÕES
SOBRE A POESIA
EM
TORNO DE UM INÉDITO
Jorge
Lucio de Campos
O
que é um belo poema senão uma loucura retocada?
-
G. Bachelard
Nas
condições atuais de vida, até quanto se tornou inviável fazer (e não apenas escrever)
poesia? Quem consegue reparar nas intenções e inquietações
de um pobre fazedor
de poemas em meio às aventuras programáveis, aos movimentos
bruscos, às expectativas de ocorrências espetaculares, aos
sintomas de abulia coletiva
que parecem preceder a almejada apoteose
técnico-cientificista da hipermodernidade
'despoetizadora'? Importa, é certo, garantir a produção
e seu escoamento, mas, sobretudo, controlar os termos que
definirão o como e o
que vai se produzir.
Assim se delineia um novo mapa do social, suficientemente
fascinante para nos deixar atônitos. Tratar-se-á agora, e de
vez, daquele contexto absolutamente asséptico
e funcional,
assumidamente repetitivo
e previsível, há muito prometido
(desde o acme do Aufklärung
setecentista) e incentivado
(por seus herdeiros sempre pragmáticos, os burgueses) nos
entremeios dos processos de colonização do corpo
e do espírito, do fora e do dentro do episódio
humano? Quem sabe, não será esta - a nossa, a de agora - a kairós
mais propícia, entre todas que se ofereceram, para a realização
final de uma pós-orgia
planetária? De uma era em que, aos poucos, nos esquecemos - após termos nos ocupado, demasiadamente, em apenas calcular
e projetar - o quão significativo e dignificante já foi,
historicamente, o ato coletivo de sonhar
e, o que é pior, em que não
temos tempo para as marcações primevas de uma sensibilidade
criativa?
Neste
contexto, tudo parece, lamentavelmente, confluir para uma
situação deveras perturbadora.
Basta olharmos, com atenção, ao redor e nos valermos de um mínimo
de capacidade reflexiva, para percebermos como têm se tornado
raras as oportunidades (proporcionadas até então, via de
regra, pelas artes) para vivenciarmos aquele 'outro' de nós
sem o qual jamais poderemos vir-a-ser,
um dia. A loucura selvagem, o desejo
incontornável e a utopia
instauradora são algumas das experiências seguidamente
desperdiçadas em nome dos apelos fáceis desse brave
new world, porque, sabiamente, de antemão enquadradas
e anuladas por
dispositivos de manipulação discursiva, a rigor constituídos
em torno de uma representação meramente 'sintética' do
homo sapiens (ou
melhor, videns -
na ótica de Giovanni Sartori - ou
demens, se optarmos por Nietzsche). Em verdade, atalhos
surpreendentes não cessam de se oferecer - que passam pelo artifício
farmacológico e pelas técnicas sempre gozosas da auto-sugestão
e da auto-ajuda - para
impedir um conhecimento
mínimo de si e da virulência que poderiam (e puderam)
ter aquelas três instâncias de franco desarrazoamento,
autênticas usinas de revigoração
das 'possibilidades antropológicas' do homem. O fato
é que, se observarmos atentamente, parece não haver mais,
mesmo, qualquer predisposição
para tal ênfase do
humano. Quem, porventura, ainda se dispuser a acreditar em
humanismos, que se prepare para improvisar, pois é bem capaz
que a interlocução a respeito se torne, daqui por diante,
inteiramente risível.
Sem outras saídas, urgirá possuirmos uma surpreendente pureza de intenções para continuar apostando na capacidade de superação
de nossa espécie, seguindo as pegadas deixadas pelo pensador
de Röcken em sua insistência numa "ação contra o tempo,
e assim sobre o tempo, em favor de um tempo por vir".
Mas
quem, apesar dos pesares, teria ainda a paciência necessária
para se sensibilizar com as nuanças da vida, para regalar-se
com suas infinitas possibilidades, para enlevar-se com seus
puros e surpreendentes acontecimentos,
com sua gratuidade quase divinal? Diria que um dos poucos que,
certamente, a possuem é o velho poietés,
esse personagem tido como excêntrico graças à sua
extemporaneidade explícita, à sua insistência em tentar
encontrar no 'entre' das coisas (Dingen)
o que elas, invariavelmente, nos reservam,
embora sem um oferecimento fácil. O que pretenderia este
'ninguém-tão-trágico' diante das evidências e indícios
de que o tempo reservado para o humano tornou-se acanhadíssimo,
e que o destino otimista - legado por nossos antepassados
- está virando, sim (se já não virou), motivo de chacota?
Por outro lado, até que ponto caberia a ele chegar, por si só
(ou ajudar-nos a chegar), a alguma conclusão sobre o quadro
melancólico que acabamos de esboçar? Até que ponto, caberia
também a ele a
responsabilidade de avançar
sobre a crise, acuá-la ao seu jeito, mostrando-a tão-somente
como uma fachada 'partilhável' da hipertrofia
de pequenas linhas
programáticas que, apesar de muito tênues - a ponto de
dificilmente se conseguir visualizá-las
- se tornaram implacáveis enquanto um grande embaraço
simbólico?
Embora
a literatura pós-moderna (a exemplo da música e da pintura)
tenha aberto mão, por conta própria, de uma importante função
existencial, e, intencionalmente, se afastado dos apelos
do eu, creio que sua
hipótese (a saber, a de eu
desafiador e
inaugurante porque opaco) se mostra o suficientemente sedutora para se manter aquecida
em diversas dicções contemporâneas que ainda apostam na
possibilidade uma neo-ontologia da intimidade.
O naufrágio do 'sujeito-coisa' cartesiano, ardilosamente substancial, compacto e coerente,
e sua substituição, ao longo dos últimos dois séculos, por
um 'sujeito-lugar', assumidamente acidentoso,
morcelé e disseminado -
integrável apenas por seus efeitos
de linguagem - não impediu que se continuasse a buscar
nele (ou em suas cinzas) algum sentido para a estimulante
complexidade do mundo. Ou seja, de um modo geral -
injustificavelmente ou não - o lirismo
continua na pauta dos bons poetas. Gostaria de registrar aqui
o quanto me toca (mesmo que parta de meros diletantes ou
aspirantes à boa poesia) tal tentativa de leitura daquilo
'que é', ancorada, fundamentalmente, na possibilidade de
um eu profundo...
Afinal, existem agora tantos afazeres postos à nossa disposição,
tantas atividades mais urgentes e 'vantajosas' que a
fatura poética, que me pergunto: que tipo de insânia levaria
ainda alguém a deter o ritmo maquinal de seu cotidiano para
resguardar-se, por exemplo, no ócio de um quarto, buscando
conceber, em silêncio, uma obra,
extrair de seu ato espontâneo de reclusão, um poema?
Sem dúvida, a cada dia que passa, se torna difícil entender
este procedimento heteróclito, na verdade um gesto quase mágico
que ainda é, a meu ver, um dos poucos que conseguem redimir o
nosso modus vivendi tão
eivado, como alertou Heidegger, pela pecha da inautenticidade.
Em
síntese, o que, por conseguinte, poderia pretender um simples
poeta, ao não abrir mão de expressar sua experiência
pessoal de integração com o mundo, em meio a tanta turbulência
e rarefação socioculturais? Sem atrever-me a arriscar uma
resposta simplória para uma questão tão grave, remeto a
Octavio Paz cujo ponto de vista lança sobre o assunto uma luz
estratégica. Sustenta ele que "a poesia (disse Rimbaud)
quer transformar a vida.
Não pretende embelezá-la
como pensam os estetas e os literatos, nem torná-la mais justa ou melhor, como
sonham os moralistas. Mediante a palavra, a expressão de sua
experiência, ela procura tornar
sagrado o mundo,
objetivando consagrar, assim, a experiência dos homens e as
relações entre o homem e o mundo, entre o homem e a mulher,
e entre o homem e sua própria consciência. Não pretende
tornar formoso, santificar ou idealizar o que toca, mas sim,
torná-lo sagrado. Por isso, ela não é moral nem imoral, nem
justa nem injusta, nem falsa nem verdadeira, nem bela nem
feia. É, simplesmente, poesia
de solidão ou de
comunhão. Porque a poesia assim como é um testemunho
do êxtase, do amor feliz, também é do desespero. E,
tanto quanto uma prece, pode ser uma blasfêmia".
Creio
ser, prioritariamente, o que pretende operar (e efetivamente
opera, em seus melhores momentos) Latuf Isaias Mucci na
antologia, ainda inédita, intitulada Poemas
lisboetas. Ele se fricciona, como que loucamente,
com a oferta intensa do
mundo, abrindo sua sensibilidade para o inaudito da introjeção
e da nomeação do
dado. A seguir, após analisar as filigranas resultantes desse
processo de desterritorialização (uma espécie de 'evolução não
paralela' que me lembrou a imagem desconcertante do
'devir-vespa da orquídea' belamente referido por Deleuze
em seu Dialogues),
Latuf impõe-se o desafio de retocar
com palavras a experiência 'quente' das coisas, passando
o olhar do poeta a agenciar, então, um registro contínuo de flashes
mundanos amiúde surpreendentes: "É quando / as palavras /
rodam na minha cabeça / e eu rodopio com elas / É quando /
as palavras / (outrora desamparadas) / se juntam / de novo se
isolam..."
(cf. É quando).
A fabricação linguageira, enquanto refinamento da
brutalidade do dar-se,
estabelece um liame poderoso entre o traço
e o transitório,
entre o esquema e o imprevisível: "Em mim mesmo / a mímese de tudo / sou feito do
feitio das coisas / visíveis ou não, a olho nu / sou imagem
ciosa, indivisa / da divindade / multifacetada / multiplicada
em cada paisagem // sou deus de passagem" (cf. Imagem).
Sob este aspecto, o poema resulta de uma 'provocação'
ocasionada pela presença da 'coisa-do-mundo' e termina na
condição de escritura provável, de registro apenas possível,
porque sempre incompleto, embora mais do que suficiente (pois
as palavras são sabidamente precárias para o que se prestam,
a saber, suportar com
sentidos a realidade) para permitir que tudo "consiga,
de alguma maneira, dizer-se, dizendo-nos" acerca de sua
possibilidade de ser.
A
condição fundante de solidão,
já citada, do poeta em sua não-inserção no socius
- pouco importando se imposta ou optada - é aqui usinal. O sonho, a visão, a projeção da alma na opacidade da carne
do mundo geram faíscas que se perdem apenas para se
reencontrarem, adiante, num ciclo ininterrupto de perdas e
encontros retomados: "Outro dia, outra noite, / nem mais sei
/ sonhei que te perdi / na encruzilhada de um poema" (Sonhos).
Destarte tomado, cada verso representa o que o poeta (e o
leitor-usufruidor, à sua maneira) perde e encontra na seqüência
de uma fabulação, ao mesmo tempo, nulificante
e plenificadora: "A lua flutua / e inunda o mundo / invadindo a casa
/ dentro e fora / noite luminosamente azul / de estrelas / de
verão" (cf. Luar).
À condição de solidão se alia a da vigília,
a do não-dormir em que a percepção se aguça de modo a
conseguir captar o inesperado do ocorrer da
'coisa-do-mundo': "Rede de magia / a poesia me reteve em
suas malhas / a mil milhas de mim / a mente" (cf. Solidão).
Sabiamente invertidas, as impressões remetem à hipótese de
um fundamento, seja este encarnada pela persona de um Deus ou por um ser-próprio
cósmico-metafísico: "É quando / as palavras / emergem: /
uma espécie de coro, corpo / nuvem, pedra, água, fogo... /
É quando / as palavras / me sinto / germinando / gerando /
acrescendo luz... / as minhas mãos ardendo..." (cf. É
quando).
Latuf
é cuidadoso com a materialidade da palavra, o plano do
significante reforçando, repetidas vezes, o vôo das
significações. E, a exemplo do que diz a epígrafe tirada de
Fernando Pessoa ("Ser real quer dizer não estar dentro de
mim"), poemas emergem à superfície do perceptível não só
pela imagem, mas, sobretudo, como um efeito
sonoro, um espontâneo deslizar de harmonias aliteradas:
"Rede de magia, / a poesia me reteve em suas malhas, / a mil
milhas de mim. / A mente: / gaivota votada ao vôo / da vida
- / dádiva / devida / vôo a sós" (cf. Solidão).
O poeta faz de sua vigília uma ponte para um salto marcado,
simultaneamente, pelo respeito e pela pretensão. Trata-se de
uma compensação, é certo, de sua forçada invisibilidade,
sendo, por outro lado, gratificante, a sua sensação de
presença pessoal na 'clareira do ser' das coisas. E ele
se mistura com elas, sujeito e objeto se transformando em pura
simbiose, numa comunicação epifânica entre o que falta e
aquilo que complementa todas as faltas: "Vera velha lua
cheia. / a lua / plenilúnio / plenitude. / A lua ilumina -
/ vaga saudade profunda - / a estrada profunda - / a
estrada que percorro / e onde morro." (cf. Luar)
Por
fim, o poeta não se esquece da função vital do amor e do erotismo, esses
eventos quase exangues de tão mal assimilados hoje em dia.
Latuf, sempre que pode, os rememora, aludindo não só à
interiorização do corpo pela alma como a da totalidade do
'que é' pelo corpo carente de existir: "Toco o teu
corpo - / Pintura sem retoque -, / com cuidados de
beija-flor / à flor, sonolenta e amada // (...) Certamente
sonhas. / Sinto ciúme / do lume que exalas / pelas pétalas
aladas do lençol // Peço silêncio ao sol / que se insinua.
/ E te emolduro com minha alma nua" (cf. Contemplação).
Em síntese, trata-se, com os Poemas
lisboetas, de um nova e surpreendente recolha de atos
retocados de loucura. Apesar de toda carga de programação
e ortopedia que
caracteriza a paideia
às avessas de nossa era, eles continuam por aí. Por sorte,
estão longe de desaparecerem. Quem sabe, a partir dessa insistência,
outros também consigam ressurgir,
despontar, com força, de si mesmos. Só que, agora, de algum
modo, espertados pela poesia. Com efeito, à
altura do que lhes acontece.
*
Jorge Lúcio de Campos nasceu no Rio
de Janeiro (RJ), em 1958. É poeta, estudioso de arte e filosofia
e autor dos livros de poesia Arcângelo
(1991), Speculum
(1993), Belveder (1994), A dor da linguagem
(1997) e À maneira negra
(1998), além de volumes de ensaios. Leciona Design em cursos
de mestrado da ESDI / UERJ.
*
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e um conto
de Jorge Lúcio de Campos, e ainda um ensaio
sobre o autor escrito por Claudio Daniel.
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