A
REALIDADE COMO ANALOGIA E MUTAÇÃO:
QUATRO PERGUNTAS A JOSÉ KOZER
Por Claudio
Daniel
O
que é a metáfora, para você? Que importância tem para o seu
fazer poético?
Qualquer
dicionário de retórica, inclusive qualquer dicionário comum
e corrente,
nos dá uma definição de metáfora: mas ninguém sabe o que é
uma metáfora. Eu as utilizei? Num sentido formal, com certeza,
meus poemas têm recorrido a esse tropo, um dos tropos principais
(metonímia, sinédoque, alegoria, parábola, símbolo e metáfora).
Eu a utilizei, por certo, mil vezes, de acordo com sua mais
banal definição: "estabelecer uma relação de semelhança, uma
comparação (em seu sentido simbolista), uma correspondência:
ou um correlato objetivo. Quando falo "João é um peixe na
água", o que sei de João, o que sei dos peixes? Não digo isto
para complicar, mas apenas para denotar a dificuldade de toda
definição (Oscar Wilde: "definir é limitar"). Assim, a metáfora,
quando trata de relacionar pólos, e, em sua função extrema,
elementos do invisível com o (aparentemente) visível, opera
como o cego dando bengaladas no ar, ou tratando de assegurar-se
de seu caminho à base de bengaladas.
Em um momento dado, esse cego choca-se com a parede, e diz
para si mesmo: cheguei. Já sabe onde está. Então, nenhum mistério:
e por fim, de que vale ao cego a bengala, de que vale ao poeta
a metáfora? Mais que falar da metáfora, prefiro falar da beleza,
uma beleza que se procura, e que procurando-se, à base de
pauladas de cego, se
atém a um relacionar mistérios, a um intentar relacionar-se,
remexendo, com o mistério. Lorca diz (e é belo) que "uma lagartixa
é uma gota de crocodilo". Perfeita síntese, perfeita correspondência:
magnífica analogia, uma junção perfeita. Isto é uma metáfora?
Sim. Que função tem? Não a de alterar a realidade, mas a de
reconhecê-la protéica, mutante. A metáfora é a polifonia das
formas até sua síntese. Coleridge, em seu poema Christabel,
nos diz (Segunda Parte): "White with their panting palfreys'
foam". Aqui temos uma excelente aliteração, típica do idioma
inglês, que se nutre de aliterações, como a poesia moderna
se nutre da enumeração caótica (como disse Leo Spitzer e que
de caótica não tem nada): por exemplo, Whitman ou Allen Ginsberg.
Porém, esse verso de Coleridge também é uma metáfora? Sinto-me
inseguro. O estado de beleza que essa descrição cria em mim
me faz pensar, ou talvez desejar, que todo esse verso seja
uma metáfora em si: metáfora do galope do palafrém,
metáfora da brancura do cavalo percorrendo velozmente os brancos
espaços terrestres e siderais, metáfora do galope detido onde
ainda escuto o ofegar,
vejo a saliva brotar do belfo
da besta. Um mundo imaculado,
formoso, sintético (poético) que me predispõe a experimentar
todo este verso como função metafórica. É talvez uma metáfora
complexa, de ordem densa e selvática,
metáfora difícil de desenredar. Se em mim se dá a prática
da metáfora, creio que esta tende mais ao exemplo que apresento
de Coleridge do que ao de Lorca. A sucessão de meus poemas
tende não a velocidades
relampejantes de índole metafórica (Lorca é quem realiza
essa prática ad usum et ad abusum) senão a um lento adensar-se do texto onde palavras
geram palavras, imagens geram imagens, saltos levam a contra-saltos,
as repetições dão voltas sobre o próprio eixo, e reincidem.
Tudo isso, na forja, no crisol, acaba por ser metáfora no
sentido de estabelecer relações, interpenetrações múltiplas,
poliformes, transtornadas,
tangenciais, e como que sem pé nem cabeça e a salto de mata,
produzem uma esfera, uma forma oval
em que todo o texto é recipiente de ordenadas (coordenadas)
e reordenadas formações. Uma paisagem rochosa, escarpada:
e uma paisagem, muitas vezes, de jardim japonês, ou de deserto
de Gobi. Poemas cheios de fantasmas que vestem metáforas.
Em
seus poemas, muitas vezes encontramos referências a pensadores
como Nietzsche, Kierkegaard e Jacob Boheme. Em sua opinião,
que relação existe entre poesia e filosofia, entre beleza
e verdade?
Claudio
Daniel, dileto amigo: Nietzsche, Kierkegaard (cujo nome me
recordava há pouco o amigo Roa significa cemitério de igreja,
o qual, dado seu caso, me parece perfeito) ou Boheme, em meus
poemas, são personagens. São como Chapeuzinho Vermelho ou
a Bela Adormecida. Em vida, esses pensadores batalharam, e
sua contenda espiritual me atrai, me estimula: de algum modo
preciso emulá-los, e, emocionado
até a medula por eles, por fim render-lhes homenagem. Porém,
também preciso esquecê-los, despojar-me deles, fantasmas de
peso desorbitado, interferências contínuas, e para esse despojo,
escrevo, creio, poemas nos quais aparecem como personagens.
Todos eles, em vida, foram personagens de si mesmos, de igual
modo que, penso, o melhor personagem de William Shakespeare
foi William Shakespeare. Ao morrer, com o transcurso do tempo,
todos nos tornamos "deuses", no sentido tradicional chinês:
deuses domésticos
ou penates.
E a pessoa que aí esteve passa a ser personagem: e dado que
como pessoa era feita de matéria de desconhecimento, a mesma
está destinada
a desaparecer, enquanto que como personagem se presta à continuidade:
ser rodado,
revelado, mudado, virado
do avesso, inspecionado, dissecado, anatomizado. Os
poemas fazem isso com eles. E deles. Se penso no sapateiro
Jacob Boheme, não penso em leituras parciais, que fiz de sua
obra: vejo apenas um homem de vocação pobre, sovela
em mãos, abrindo furos
em um calçado que logo coloca no vão
de uma janela, num casebre meio desordenado
onde vive acompanhado de seus pensamentos, de sua relação
com Deus, e claro está, com a manufatura de sapatos, que (bem
o sabia Tolstoi) é um modo de entrar em contato com a Divindade.
Assim, esses poemas não são por definição filosóficos, são
mais bem (valha a redundância) poetizações de personagens
admiráveis, luminosos, que procuro, como um cego, desejoso
de iluminar-me; e de ser possível por sua vez iluminar o próprio
texto, desde sua própria irradiação, essa irradiação que tende
a fazer brotar luz do texto e simultaneamente apropriar-se
dessa luz.
Como
foi que um cubano, filho de judeus imigrados da Europa Oriental,
se aproximou do zen-budismo e da cultura oriental? O que isso
trouxe para a sua poesia e a sua vida?
Daí
a pensar nesse cubano de pais judeus (e que se sente muito
judeu, ele próprio) que se entrega, parcialmente, ao zen-budismo,
não há mais que um passo. O passo dá na função poética, e
no sentido de uma descategorização de fundamentos de realidade
filosófica, que por uma vez Kierkegaard, creio, pensou mal.
Pois Kierkegaard diz que das três altas categorias do pensamento,
e por fim, do acesso a Deus, a mais baixa é a estética, um
degrau acima a ética, e no mais alto o degrau religioso. Falhou
para mim o Mestre Soren. Estas categorias se dissolvem entremescladas,
e o estético está marcado por uma ética como a ética não é
de todo separável do religioso. Não se trata, querido Kirkegaard,
de uma ordem piramidal, com elementos superiores e inferiores,
mas de um entremesclamento das categorias que, nada claras,
nada aclaram. Tudo pura luta, busca interminável. Assim, fazendo
poemas, foi que me fiz amante do zen-búdico. Não sou adepto,
não tive Roshi ou Mestre zen (meu zen não teve senso), mas
sim percorri, pluma na mão, o jardim até o satori (que por
suposto jamais alcancei): eu o percorri, e o percorro, a partir
de uma fiação de poemas "espirituais" onde se juntam a mim, ou ao poema,
fundamentos estéticos que, repito, são éticos e religiosos.
Este judeu que sou se suaviza com o roçar
zen-budista, que permite ao poema uma diafaneidade que não
vejo no judeu: um poema judeu, em meu modo de ver, está cheio
de excrescências, de manchas,
tem rasgos e fiapos, solta
gotas de sangue: um poema de tonalidade oriental é límpido,
se aproxima do imaculado
da quietude. Eu
preciso fazer ambos tipos de textos: quase que os alterno.
Num se expressa uma desavença comigo mesmo, em outro se confirma
a postura de lótus que, concentrado, respira junto, respira
suavidade. Este alternar, de algum modo, e desde a continuidade
de meu trabalho, tem sido minha fonte de saúde: sou de corpo
frágil, mas estes poemas me deram fortaleza.
Qual
é o sentido de fazer poesia hoje, numa época regida pela violência
e pela banalidade?
Por
último, devo dizer que fazer poesia hoje em dia é como sempre
uma atividade marginal. Foi assim no Século de Ouro e também
no Romantismo. É assim hoje em dia. Uma possível diferença
é que hoje o sistema já não mata os poetas de fome, ou melhor,
os poetas não se deixam matar de fome pelo sistema. Eles são
colocados à margem, mas não se pode negar-lhes o acesso ao
ganha-pão, que, em muitos casos, depende da docência, da vida
universitária. Ganhamos a vida, bem ou mal, e bem ou mal organizamos
nossa vida para fazer poemas, para executar esse percurso
tonal, musical, estranho, fundamentalmente irreal, que é passar
uma vida fazendo ou desejando fazer poemas. Porque, a verdade
seja dita, eu ao menos tenho estado escrevendo todo o tempo,
jamais preocupado pelo que dirão, em ter leitores ou ser um
triunfador. Ah, não. Ao diabo. Fazer poemas, e fazer poemas,
e se o destino desses poemas é perdurar, muito bem; e se não
for, eu os fiz, os fiz a cada vez que pude e como melhor pude:
a partir do amor e não da vanglória; a partir da tranqüilidade
mais que por uma euforia até a exterioridade. Amo a vida,
o que em meu caso é dizer, do mesmo modo, que amo a poesia.
*
José
Kozer
nasceu em Havana (Cuba) em 1940, mas vive nos EUA desde 1960.
Entre
suas principais coletâneas poéticas estão Y
así tomaron posesión en las ciudades (1979), Jarrón
de las abreviaturas (1980), La
rueca de los semblantes (1980), Bajo
este cien (1983), La
garza sin sombras (1985), Prójimos.
Intimitates
(1990), et mutabile
(1996) e Farándula
(2000). No Brasil, foi publicada a antologia Madame Chu e Outros Poemas, com traduções de Claudio Daniel e Luiz
Roberto Guedes (Travessa dos Editores, 2003).
*
Leia
também poemas
de José Kozer, traduções
de Claudio Daniel e um ensaio
do autor sobre o Neobarroco.
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