O DINHEIRO NAS MARCAS SIMBÓLICAS DA ÁGUA
Abreu Paxe
A água está presente em múltiplas atividades do Homem e, como tal, é utilizada para finalidades muito diversificadas, em que assumem maior importância o abastecimento doméstico e público, os usos agrícolas e industrial e a produção de energia elétrica. Por outro lado, as águas do rio, da chuva e do mar estão ligadas à divindade. Não é, propriamente, destes aspectos que vamos falar. Vamos, é sim, falar dos elementos ligados à água que podem ajudar a dar medida e corpo aos dados apresentados acima. Por se tratar dum assunto complexo que cruza os plano da história e da linguística, o que nos propusemos é desenhar o nosso trabalho sob três eixos. A água, deste modo, será vista como do mar, do rio e da chuva e será compreendida pela designação das moedas kumbú, zimbu e sal, relativos ao mar, kwanza, ao rio, e o pula, à chuva.
O que nós pretendemos, por via da especulação, é falarmos, para confirmar as nossas antigas suspeitas, da importância e do valor simbólico da água ligada à vida econômica, mais propriamente à moeda, como objeto com valor de troca. Trata-se de analisarmos esta relação, inventariando a partir das práticas sociais angolanas e não só, mais concretamente na língua, os nomes e os lugares ligados ao mar e ao rio ou à chuva ao longo da história como acima já indicamos. Na verdade, o que queremos demonstrar é que a água, ou os elementos a ela relativos, liga-se aos símbolos de riqueza, nomeadamente a moeda.
Deste modo, vamos olhar para a ilha de Luanda como banco emissor “da moeda” do antigo reino do Kongo. E analisar, aí, alguns designativos. Olhar também para o kwanza, que é o maior rio de Angola, ou ainda olhar para a chuva e o sal. Precisamos a partir deste pressuposto conhecer as palavras como o kumbu, zimbu, sal, kwanza, pula, desde a sua origem. Adotado este método para o nosso estudo, falaremos da sua etimologia, palavra de origem latina que significa, étimos (real, verdadeiro) e logos (estudo, descrição, relato). Hoje é o estudo científico e da origem e da historia das palavras. Conhecer a evolução do significado de uma palavra desde a sua origem significa descobrir seu verdadeiro sentido e conhecê-la de forma mais completa. Para o trabalho que estamos a fazer, o estudo etimológico da palavra, além do aspecto curioso, demonstra as origens comuns e semelhanças encontradas no plano do vocabulário e cultural.
A ilha de Luanda era o banco emissor do reino do Kongo, deste modo, geograficamente, tínhamos os Bakongo como povos situados no litoral, próximos do mar, e no interior, afastados do mar. Os últimos, talvez por este motivo, passaram a designar o lugar onde estavam os primeiros: kumbu, ou Kuna-mbu, onde também estava o sal. Isto aproxima-nos da suspeita do termo Kumbú, que significa em língua kikongo “ku-mbu”, designativo de algo relativo ao mar ou para o mar. Este termo traduz-se mais usualmente no calão como dinheiro. Neste registo de língua, kumbu significa dinheiro. Confirmamos o mesmo em conversa com o investigador de práticas populares angolanas António Fonseca, ao ficarmos a saber que o termo kumbu, segundo o dicionário de Adriano Correia Barbosa, citado pelo professor Américo Correia de Oliveira, designa o lugar onde se guarda algo de valor, portanto, dinheiro ou moeda de troca. Neste caso, o local que é o mar (kumbu) passou a designar o próprio dinheiro ou as coisas de valor, incluído o sal.
Por outro lado, o termo zimbu, zi-mbu, plural de mar, é a designação de uma das moedas de troca do reino do Kongo. O mesmo nomeava um objeto duro que se parece a uma pedra. Este objeto era a concha, em português. Ficamos ainda a saber que os Ambundu e os Bakongo, ainda nos nossos dias, chamam ao dinheiro de (ki)tadi. Estes povos, ao designarem deste modo a pedra e o dinheiro (este último em moeda ou em nota), ficam com a sua diferença marcada pelo contexto, aqui a imagem física (da pedra por analogia zimbu, concha), aproxima-nos ao significado cultural, conceito mental de dinheiro, que está intimamente ligado à concha/zimbo, objeto que deriva da água do mar, ou também do rio que também é símbolo do poder da divindade nas sociedades antigas; tomamos como exemplo o kalunga, que é deus e que é morte.
O outro lado ainda, o produto designado pelo termo sal, provém do mar. Termo de origem latina da área econômica que significa salarium argentum, “pagamento em sal”. O mesmo tinha o valor de moeda de troca entre os povos do interior e do litoral.
Por outro lado, também sabemos que o kwanza, a nossa moeda nacional, adota a designação do maior rio de Angola. Ou ainda a moeda nacional do Botswana, que recebeu a designação de pula, que significa chuva em língua Setswana. Pensamos ainda no sal, produto que provém do mar, da água portanto, com o seu valor de moeda de troca entre os povos do interior de Angola.
Neste trabalho, vimos que a água atravessa ou orientou o nosso trabalho, as histórias do Kumbu, do zimbo ou do sal, ou ainda do pula, ou mesmo do kwanza; quisemos demonstrar como é que estes nomes que se dão a moedas se juntam à simbologia da água. Esta está no centro. Em suma, os Bantu, pelo menos os de Angola, pelo que especulamos, tiveram suas vidas e orientações de riqueza, ou mesmo da própria sobrevivência, ligadas à água: falamos do mar, do rio ou mesmo da chuva. É só vermos os rituais a ela ligados. Suspeitamos ainda, para terminar, que temos uma das maiores bacias hidrográficas do mundo. Portanto, temos muitos recursos hídricos. Qual é o impacto desta riqueza em nossas vidas? De que forma olhamos para estes recursos à luz do desenvolvimento sociocultural? Este, na verdade, é um trabalho que se pretende mais aprofundado e amplo.
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Leia também poemas do autor, as Cartas de Luanda (I) e (II), uma entrevista com o poeta e um ensaio de Claudio Daniel.
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Abreu Castelo Vieira dos Paxe nasceu em 1969 no vale do Loge, município do Bembe (Angola). Licenciou-se no Instituto Superior de Ciências da Educação (ISCED), em Luanda, na especialidade de Língua Portuguesa. É docente de Literatura Angolana nesta mesma instituição e membro da União dos Escritores Angolanos (UEA), onde é secretário para as atividades culturais. É técnico de comércio externo pela escola de comércio. Publicou A chave no repouso da porta (2003), que venceu o Prêmio Literário António Jacinto, e O Vento Fede de Luz. No Brasil, foi publicado nas revistas Dimensão (MG), Et Cetera (PR), Zunái (SP) e Comunità Italiana (RJ), e em Portugal, na antologia Os Rumos do Vento, (Câmara Municipal de Fundão).
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