JOÃO CABRAL, IRMÃOS CAMPOS, LEMINSKI: DIÁLOGOS
(...) tal será a ambição da poesia,
compensar a insuficiência da linguagem e de suas categorias
discretas, pois só ela tem condição de exprimir o contínuo, o impulso
e a duração, ou seja, de sugerir a vida.
— Antoine Compagnon
André Dick
Em “O ocaso da vanguarda”, Octavio Paz percebe e aponta semelhanças entre o romantismo e a vanguarda, considerando ambos “movimentos juvenis”, “rebeliões contra a razão, suas construções e seus valores”, além de afirmarem que “o corpo, suas paixões e suas visões – erotismo, sonho, inspiração – ocupam lugar primordial” e de serem “tentativas de destruir a realidade visível para achar ou inventar outra – mágica, sobrenatural, super-real”. Além disso, em ambos a modernidade se afirma e, ao mesmo tempo, busca sua anulação. Conforme Paz, futuristas, dadaístas e surrealistas sabiam que a negação que faziam do romantismo era um ato romântico que se inscrevia na mesma tradição que concebera o até então visto como inimigo.
A principal semelhança entre os dois movimentos é sua pretensão de unir vida e arte, com a ambição de transformar a realidade, nem que para isso desvirtuar a política vigente e a percepção de mundo generalizada. E ambos o fazem através, sobretudo, da ironia, o que vai reverberar significativamente na poesia francesa que se inicia com Charles Baudelaire, autor do clássico As flores do mal. O fim do tempo linear se estabelece ainda mais com a inclusão de Arthur Rimbaud, que “quer mudar a poesia para mudar a vida”, e do mestre Stéphane Mallarmé. Sem eles, não existiriam Guillaume Apollinaire ou Paul Valéry. As Iluminuras e Uma temporada no inferno, ambos de Rimbaud, mostram essa “alquimia do verbo” que encantava tanto a geração romântica quanto a geração simbolista, sua continuação no plano literário, já às portas da modernidade e das vanguardas.
A resposta moderna ao extremo não viria com Rimbaud, que se reservou ao próprio silêncio, depois de perambular por desertos africanos traficando armas, mas com Mallarmé, que busca, nas palavras de Paz, a “convergência de todos os momentos em que possa desprender-se um ato puro: o poema”. Este poema é Um Lance de Dados, com os “dados lançados em circunstâncias eternas”, que oferece uma “realidade contraditória porque, sendo um ato, é também um não-ato”.
A partir deste ponto, pode-se concordar ainda mais com a proposição de Paz, de que “a vanguarda é uma intensificação da estética de mudança, inaugurada pelo Romantismo”. As primeiras manifestações da vanguarda foram, como observa Paz, cosmopolitas e poliglotas. Thomas F. Marinetti, criador do futurismo, por exemplo, escreveu seus manifestos em francês e foi polemizar em Moscou e em São Petersburgo com os cubofuturistas russos.
Alguns dos autores, no Brasil, ligados ao conceito de vanguarda tem datas significativas em 2009: João Cabral (1920-1999) e Paulo Leminski (1944-1989) se fazem ausentes 10 e 20 anos, respectivamente; Haroldo de Campos (1929-2003) completaria 80 anos; e Augusto de Campos (1931) tem a comemoração dos 30 anos de Viva vaia: poesia 1949-1979. Para Antoine Compagnon, adições como qual a pertinência da literatura para a vida ou qual sua força, “não somente de prazer, mas também de conhecimento, não somente de evasão, mas também de ação” se “tornaram mais imperiosas depois das vanguardas, quando a fé no progresso fez uma pausa”. Afirma ele: “Que se tenha sido a favor ou contra ela, essa fé determinou o movimento da modernidade: a literatura era conduzida pelo projeto de ir sempre além, seguindo um impulso que, com as vanguardas, tomou a forma do ‘sempre menos’: purificação do romance e da poesia, concentração de cada gênero em si mesmo, redução de cada medium à sua essência”. Esses autores foram cercados por essa idéia de impulso, que tomou a forma do “sempre menos”, ou da “poesia menos”, como a de Augusto de Campos. E esses autores também tiveram contato entre si, apesar de mútuas discordâncias, mostrando a ligação da vida com a obra.
Se João Cabral representou um exemplo para os irmãos Campos, no sentido de uma poesia rigorosa, sobretudo esses foram exemplo para Paulo Leminski. Obviamente distanciados por uma geração (entre Cabral e irmãos Campos e irmãos Campos e Leminski), esses autores tiveram em comum o rótulo de vanguardistas. Talvez o único que tenha se mantido mais próximo de vanguarda seja Augusto de Campos: Haroldo falaria, a partir dos anos 1980, numa poesia pós-utópica, aproximando-se de um “neobarroco concreto”, mas afastado um tanto da utopia vanguardista do seu irmão “siamesmo” – que veria no irmão o “arco-íris solar”; Leminski se mostraria desconfiado com os conceitos de vanguarda, a partir dos anos 1970; e João Cabral mesmo escreveria a Augusto que não pôde ser “de seu lado”. João Cabral, como diplomata, trabalhou em algumas capitais pelo planeta, e Haroldo também foi um viajante, no sentido mais acadêmico (tendo dado aulas no exterior, como nos Estados Unidos). Augusto e Leminski, por sua vez, eram mais arraigados em suas cidades; Augusto em São Paulo; Leminski, em Curitiba, depois em São Paulo. Cosmopolitas e provincianos ao mesmo tempo, os irmãos Campos viajaram, em matéria de línguas, muito mais do que João Cabral, e Leminski seguiu viagem sobretudo à mitologia greco-latina e aos Estados Unidos de Ferlinghetti e romancistas. Como os irmãos Campos, traduziu Joyce e admirava sobretudo Mallarmé, além de Rimbaud – ambos com menos eco em João Cabral, mais afeito a uma poesia estruturada em quadras, de Guillén e Valéry, menos voltada ao cubofuturismo e à tradição de som e palavra mesclados.
Augusto e Haroldo de Campos trocariam cartas com João Cabral logo após a eclosão da poesia concreta, insinuando uma aproximação a Cabral, demonstrada através de seus textos iniciais, tomando-o como precursor do que faziam. Em um texto sobre o João Cabral, “O geômetra engajado”, Haroldo de Campos diz que ele tinha um “lugar privilegiado: o lugar cartesiano da lucidez mais extrema”. No entanto, Cabral não pode ser visto como antecessor do poema objetivo, conciso e matemático, próprio da poesia concreta, embora tenha pontos de contato exemplares: o desejo de compor uma poesia crítica, ligando-a aos campos da arquitetura e da pintura. A poesia de João Cabral, ao mesmo tempo em que concentra a matéria em seus versos, em cada palavra de seus poemas, dá a sensação de fixar rótulos às coisas que a cercam – para o matemático Ludwig Wittgenstein, rotular é dar nome às coisas – consegue afastá-las: as palavras se realizam não por uma sintaxe analógica (própria da poesia concreta) nem por uma concisão, mas por uma sintaxe continuada pela quebra constante do verso e do pensamento, para retomá-lo em outra direção e pela expansão objetiva. A poesia concreta ortodoxa, inserindo os signos numa ordem plástica, não adentrava no imaginário de cada objeto como faz Cabral. Para João Alexandre Barbosa, a abstração cabralina não seria o contrário do concreto, “mas a estratégia por intermédio da qual é possível retornar, pela linguagem, ao núcleo, ao concreto, das coisas e do homem”. Por isso, embora seja vista, pelo próprio poeta, como uma poesia antimusical, dura, suas raízes crescem exatamente da musicalidade, marcada, então, pela concretude da escritura. Em carta de 22 de janeiro de 1957, em resposta a uma carta de Augusto (resposta esta dirigida a todo grupo Noigandres), Cabral, como lembra Haroldo de Campos, “depois de manifestar seu apreço pelo movimento da poesia concreta e de fazer considerações sobre a predileção pelo ideograma-quadro, que lhe parecia existir da parte do grupo concreto”, escreveu: “Não participo da aversão que vocês sentem pelo verso: isto é, pela frase, pelo discurso. Não creio que a retórica, por pior que seja, tenha o poder de corromper este aspecto da linguagem e do uso possível: o discursivo. O que é possível é introduzir no discurso a preocupação com a estrutura” (observação parecida àquela que Octavio Paz faria do movimento, em carta a Haroldo). Diante dessas observações, os preceitos para a inclusão cabralina nos nomes da teoria concretista – “linguagem direta, economia e arquitetura funcional do verso” – não acompanham, pelo menos como aparenta na poesia concreta, o objetivo do poeta.
No ensaio “Da antiode à antilira” (em Poesia antipoesia antropofagia), ao analisar A educação pela pedra, a preferência de Cabral por esse discurso, num “discurso-rio”, Augusto comenta: “[...] os poetas concretos poderiam responder-lhe que a alternativa do ‘discurso-rio’ já não é a palavra-poço, ou a palavra-ilha, a palavra em ‘situação-dicionária’, mas a palavra simplesmente ‘em situação’, a constelação intercomunicável de palavras, tal como se dá no ‘mosaico de manchetes’ de um jornal ou na instantaneidade do cartaz e do anúncio publicitário, no mundo simultâneo da comunicação moderna”. Desconheço alguma resposta cabralina a essa consideração de Augusto. De qualquer modo, João Cabral via Augusto como um “herdeiro”: “(...) sinto uma extensão do meu trabalho em relação a Augusto de Campos, embora acredite que ele tenha feito, como seus companheiros, uma obra original estupenda”. Dedica Agrestes a Augusto, escrevendo no poema de abertura que o autor de Viva vaia faz uma poesia “de distinta liga de aço”, capaz de “lavar-se da que existia” – o que talvez seja uma precipitação, pois há muitos elementos impuros na poesia de Augusto –, “cuja vida sempre / foi fazer / catar o novo” e que “talvez veja no defunto / coisas não mortas de todo”, atuando como um “leitor contra”, “leitor malgrado / e intolerante, o que Pound / diz de todos o mais grato: / àquele que me sabendo / não poder ser de seu lado / soube ler com acuidade / poetas revolucionados”. Este lhe responde no poema “joão/agrestes”, incluído na dedicatória de O anticrítico e em Despoesia. Nele, Augusto escreve – contestando o mestre – que na poesia cabralina há “osso tão osso só / que eu procuro e não acho / o adverso do que faço” – apontando, na dicção do mestre, “uma fala tão faca”. “o concreto é o outro”, completa Augusto a respeito de Cabral, considerando-se “aprendiz” e avaliando que nunca “houve um leitor / contra mais a favor”. A discordância, surpreendente, não adquire, no entanto, nenhum tom de inimizade; pelo contrário, é através da negação à consideração de Cabral que cresce a resposta de Augusto.
“Haroldo, de Haroldo nunca ouvi nem uma palavra”
Se Leminski reclamava, em carta a Régis Bonvicino, de 11/7/1977, do silêncio dos irmãos Campos – acrescido ao de Décio Pignatari – sobre Catatau, ele teria uma recepção pós-mortem sobretudo de Haroldo de Campos, que se mostraria admirador incondicional da obra Catatau, não só no artigo “Uma leminskíada barrocodéica”, mas em entrevistas ou conversas cotidianas. Como numa conversa lembrada pelo crítico Wladimir Krysinski:
Recordação: eu o vejo agora num ônibus para Belo Horizonte. Estamos no mês de agosto, 1990, e o inverno brasileiro nos aquece com seu sol estival. Esse ônibus deve levar os participantes do congresso da Abralic ao campus da Universidade. De repente, para me agradar e lembrar que os imigrantes poloneses têm sua parte de grandeza na cultura brasileira, Haroldo se põe a falar de Paulo Leminski. Recordando que Leminski nasceu em Curitiba e que era “mestiço de polaco com negro”, ele fala da comunidade polonesa estabelecida no Brasil. Chama Paulo Leminski de “poeta japa-polaco-brasileiro”. A voz de Haroldo atravessa um espaço fascinante de suas reflexões no seu discurso, ele fala também do barroco polonês e brasileiro, da concisão japonesa e da ironia inclassificável. Lembra que Leminski escreveu um romance louco e bizarro, cujo imaginário literário é fortemente irônico em relação aos formalistas russos (Jakobson, Chlovski, Tynianov), tão populares e tão ardentemente estudados no Brasil. Esse romance se intitula Agora é que são elas. E nele Leminski joga constantemente com as ideias de Vladimir Propp sobre a narrativa. Haroldo se lembrava bem do fim desse romance. O narrador e protagonista diz a derradeira frase: “Eu não quero a vida eterna, professor. EU QUERO O INFERNO”.
Haroldo, ainda nesse ônibus para Belo Horizonte, resume um outro romance de Leminski, Catatau (prosa experimental), dando gargalhadas enquanto lembra as aventuras de Descartes no Brasil que o imaginário de Leminski situou nesse romance tresloucado.
Ou seja, Haroldo lembra tanto da novela que Leminski compôs como uma brincadeira com o seu Morfologia do Macunaíma – que se valia da morfologia do conto maravilhoso para desestruturá-la – quanto de Catatau – livro em que é evidente o diálogo com Galáxias e Joyce. Deve-se lembrar que Haroldo também assinou a apresentação de Caprichos & relaxos (1983), na qual relembra que Leminski apareceu na Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, em 1963, em Belo Horizonte, com 18 ou 19 anos, na persona de um “Rimbaud curitibano com físico de judoca, escandinando versos homéricos, como se fosse um discípulo zen de Bashô, o Senhor Bananeira, recém-egresso do Templo Neopitagórico do simbolista filelênico Dario Vellozo”. O biógrafo de Leminski, Toninho Vaz, lembra: “Quando era levado a acumular o cargo de embaixador da cultura local, Leminski gostava de levar os amigos ‘de fora’ ao Templo das Sete Musas, onde Dario Velozzo, o simbolista, construíra um altar de adoração à cultura helênica, uma espécie de maçonaria do conhecimento filosófico. Era o Instituto Neo-pitagórico, onde o centro de todas as atenções, como o próprio nome diz, era Pitágoras. O templo obedecia a uma arquitetura clássica, réplica dos edifícios gregos, mantendo a mística das colunas monumentais”. O Templo foi parcialmente destruído por um incêndio em 1987. No poema “paideuma”, Haroldo relembra “os salvados do incêndio / que devorou a encyclopédie / e o retrato (togado) de dario vellozo / aliás apolônio de tyana” e traz a Grécia a Curitiba, onde – nos degraus do templo neopitagórico de Veloso – está “sentado o fileleno leminski / sob o emblema brônzeo do frontispício”, paquerando as musas – em “curitiba / pilarzinho do mundo”. Haroldo adapta informações da apresentação de Caprichos ao poema e encerra com uma menção ao lugar em que Leminski morava: Cruz do Pilarzinho, em Curitiba – pilarzinho, aqui, também numa referência aos pilares do templo. Em outro poema, “paulo leminski”, Haroldo se refere ao poeta como um “polaco polilingue” e “samurai mestiço” – na apresentação a Caprichos, o poeta das Galáxias utiliza as expressões “polilingue paroquiano cósmico” e “caboclo polaco-paranaense” –, sendo um “jovem rimbaud fileleno / saído / do templo neopitagórico de dario vellozo / (que o incêndio helenófobo / não havia abrasado)”, um “lampiro de curitiba” – na apresentação a Caprichos, Haroldo insere a expressão “lampiro-mais-que-vampiro de Curitiba”; “lampiro” sendo “aquele que ilumina como o fogo”, uma alusão ao Rimbaud “ladrão de fogo” –, um “capiau cósmico” – que remete a “caipira cabotino”, expressão pela qual Júlio Bressane se referia a Leminski, lembrada por Haroldo –, “eletrônico violeiro astral”, que partiu “entremeado às estrelas de iessiênin” (lembre-se que Iessiênin, como Leminski, após uma vida boêmia, acabou por se matar e Maiakóvski lhe homenageou com um poema em que coloca o verso “entremeado às estrelas”). Haroldo, finalmente, encerra seu poema sintetizando a preferência de Leminski pelo simbolismo e pela poesia oriental: “enquanto o crepúsculo roxo / de tua cidade simbolista te chora / / você sonha / como o poeta japonês / o após-sonho dos samurais mortos”. Levemos ainda em consideração que tanto Haroldo quanto Leminski estudaram no Mosteiro de São Bento, e há poemas e fragmentos na obra tanto de um quanto de outro que remetem a essa experiência. E, numa entrevista concedida a Jardel Dias Cavalcanti e Mário Alex Rosa, ele aponta dois lados em Leminski: “personalidade meio hippie, era uma pessoa que nunca trabalhou regularmente, vivia de atividades free-lance aqui e ali” e “seminarista, ele sabia grego, latim, conhecia um pouco de hebraico, conhecia várias línguas, inclusive o eslavo, porque era filho de poloneses”. Para Haroldo, Leminski seria “um exemplo de como uma pessoa pode conciliar essa capacidade vital a uma extrema competência técnica. Quer dizer, ele era um fabbro”. Não há dúvida de que se, por um lado, Haroldo se distancia da imagem de Leminski – não tendo sido uma personalidade meio hippie ou que vivia de atividades de freelance –, por outro, ele se sente próximo pelo conhecimento de línguas. Há muito, ainda, o que se dialogar entre as traduções de Haroldo para Catulo e de Leminski para Satyricon, entre as traduções de Haroldo para Bashô e a biografia do poeta japonês por Leminski. O próprio Leminski interpreta a erudição de Haroldo, na resenha “Além da geleia geral”, sobre A educação dos cinco sentidos:
Haroldo de Campos é culta, árdua, cosmopolita e implacavelmente poliglota. Nesta Educação, que estará chegando às livrarias nos próximos dias, Haroldo não mudou. É sempre através da cultura que ele vê e vive a vida. É através do humano que vê a vida e o mundo.
[...]
Na poesia do autor das Galáxias, sempre houve uma dialética entre o raro e o reles, entre os materiais nobres e os registros mais pedestres. Na Educação, esse lado pedestre parece ganhar terreno: é “mais ou menos como fazer amor / com o Pato Donald”.
Não parece haver dúvida de que esse lado mais “pedestre” de Haroldo se deve também a Leminski, especificamente o bom humor de A educação dos cinco sentidos. Por isso, é notável como Haroldo cita Leminski sobretudo depois de sua morte, lamentando sua perda para a literatura brasileira.
Leminski também admirava a obra de traduções de Haroldo, escrevendo, em “Information retrieval: a recuperação da informação” (texto que recupera a poesia concreta sob o ponto de vista de sua influência para a caracterização de um paideuma poético para leitores contemporâneos):
TRADUZIR
(os campos e pignatari
e principalmente haroldo de campos)
é criar
(as reflexões de haroldo de campos sobre
as traduções
são as mais profundas
amplas
e sólidas
que podemos desejar)
criar
uma co-realidade de um original
que como disse haroldo de campos
passa a ser a tradução de sua tradução
Quando comenta sobre o acesso das massas à literatura, Leminski escreve que em Haroldo existe “a radicalidade extrema de um radical de elite, trabalhando por uma sofisticação máxima da cultura letrada existente, colocando-a em condições de competir, em pé de igualdade, com a mais avançada tecnologia estrangeira”.
Outra aproximação entre os dois se dá sob o aspecto saturnino das obras. Haroldo compôs poemas dedicados a Saturno, à melancolia, em diálogo com as os obras de Walter Benjamin e Baudelaire, como “saturnum in aquario ascendentem”: “o plúmbeo / anel de saturno / os anos de chumbo” e “o ciclo / depressivo / o ciclo- / tímido / o tumor benigno / o rictus saturnino” – que, em sua totalidade, remete ao livro Estâncias, de Giorgio Agamben, como Haroldo refere na nota ao poema. Leminski, por sua vez, embora não tenha composto claramente poemas à melancolia, escreve, em carta a Régis Bonvicino, de 10 de julho de 1979: “muito grilo de saturno (hospital, operação, etc) = pouca motivação para cantar”. Ele subentende a má saúde do filho Miguel, que viria a falecer. Não há dúvida de que o bom humor de Leminski disfarça a melancolia. Diz ele em outra carta, sem data: “não pense que estou de bom humor, miguel não está bem, não estamos mas a gente disfarça”. Há poemas de Leminski que conferem esta acídia: “pompa há tanto conquista / cautela tão mal calculada / pausa na pauta / quem sabe em pio pousada / me passe este meio-dia / atravessa este meio-fio / aplaca em luz / a causa desta madrugada / / atiça-me a calma / em cólera e guerra floresça / toda esta falta minha alma”. Mais ainda, em seus poemas finais, reunidos em La vie en close, quando fala das queimaduras que não cicatrizam, de sua desconstrução pessoal. Poemas no sentido de uma dor concentrada em versos: “a luz se põe / em cada átomo do universo / noite absoluta / desse mal a gente adoece / como se cada átomo doesse / como se fosse esta a última luta” contrariam o que ele diz no poema de encerramento de O ex-estranho: “nada sei de Saturno”. É curioso que Leminski, com sua poesia acidiosa, tenha se aproximado tanto da MPB.
João Cabral era visto como alguém avesso à música, ao contrário de Haroldo de Campos – que se baseou no serialismo de Pierre Boulez para realizar Galáxias e dizia que sua visão da tradição era musical –, Augusto de Campos – que mantinha contato com músicos de vanguarda e de MPB, a exemplo de João Gilberto e Caetano – e Paulo Leminski – apreciador, sobretudo, da MPB de Caetano Veloso e Gilberto Gil. A extrema literariedade de Cabral fez com que, nos anos 1970, Paulo Leminski dissesse que o lia apenas “por dever de ofício”. Numa resenha sobre Museu de tudo e depois, falaria, captando a essência melancólica do poeta pernambucano, sobre sua estagnação temática: “Toda a poesia de João Cabral está construída em cima de alguns focos permanentes de interesse, que funcionam como verdadeiras obsessões. O Recife e o Pernambuco da infância e da mocidade, a cana-de-açúcar, o engenho, o rio Capibaribe. A Espanha, a Andaluzia, Sevilha, a tourada, o flamenco, a dura paisagem hispânica. As agruras do povo do Nordeste”. Estagnação que repara também em “A mudança do ficar”: “Cabral descobriu o Brasil, João Cabral descobriu o cristal. E cristais João Cabral vêm concretando há mais de trinta anos. Igual. Idêntico. Impecavelmente idêntico a si mesmo”. No ensaio “Teses, tesões”, Leminski assinala: “Para Cabral, poesia é olho: para ‘O engenheiro’ (que, por sinal, não gosta de música), a produção do verbo lírico é arquitetura, artes plásticas, Mondrian, Miró, dança flamenca, imagem ótica, miragem semiótica”. No entanto, como especifica em “Sobre poesia e conto”, as referências iniciais de Leminski foram outras: “No ponto de origem, a empolgação pelo legado heleno-latino. Horácio, Ovídio, Catulo. Clareza e saúde mediterrânea. A descoberta do haiku. Síntese e vazio zen. O encontro com a poesia concreta, a vanguarda, o espaço, o ideograma, as linguagens industriais. O impacto de Maiakvski. Caetano, Gil, Tropicália”.
Destaque-se a presença de Maiakóvski, poeta russo, segundo Jakobson, com pressa de futuro, e, como Leminski, preocupado com uma arte de qualidade para as massas – através de um pensamento de que deve ser igual para todos, na mesma linha de Oswald de Andrade. No entanto, como pensaria Leminski 20 anos depois da queda do Muro de Berlim? – que Leminski, que se autointitularia numa das cartas a Régis Bonvicino, “zenmarxistaconcretista”, e queria um diálogo mais explícito com as massas do que queriam os poetas concretos, nem chegou a presenciar. Será que Leminski ainda acreditaria num determinado pseudossocialismo que se anuncia? Numa das cartas a Bonvicino, ele escreve, num tom que não traria surpresa ao Ferreira Gullar mais populista, dos anos 1960 e 1970: “só uma poesia capaz de estender a mão e o coração para um contexto mais justo vai ser nova porque dialoga com um futuro geral, uma coisa maior do q essa jângal implosiva em q vivemos”.
Há um conflito, e complemento, ao longo da trajetória de Leminski, entre o underground e o mainstream, entre o popular e o erudito, entre a MPB e a ópera, e, claro, entre capitalismo e socialismo – um artista que apreciava o trotskismo, mas, ainda assim, se preocupava com a circulação da poesia como um produto, como uma peça de entendimento que pudesse ser vendida (não por acaso, Leminski apreciava a teoria dos mass media de Pignatari). Como escreve em outro artigo, já citado, Leminski pondera: “Invoca-se o interesse das grandes massas para legimitar a mediania e a banalidade. Em nome do povo, produz-se uma literatura que subliteratura dos padrões da elite. Essa literatura não é popular, no verdadeiro sentido do tempo. Não é efetivamente consumida pelo povo ou – muito menos – produzida por ele. É apenas a média da literatura da classe dominante de gosto médio”. Leminski, em ensaios de Anseios crípticos, tem consciência de que, apesar da poesia ser um “inutensílio” – e isto ser sua força programática –, a “arte da segunda metade do século XX é integralmente mercadoria. O cinema e a canção gravada [em que Leminski se especializou a partir de meados dos anos 1980] são as artes de hoje. Ambas mercadorias no mais supremo grau. [...] Essa transformação da arte em mercadoria faz de cada artista burguês um cúmplice e beneficiário da ordem capitalista como um todo”. Aqui, nem Marx nem Trótski impedem qualquer pensamento contrário. No poema “dialética”, Haroldo, por sua vez, contesta a crítica de Roberto Schwarz ao poema “pós-tudo”, de Augusto: “o / crítico / sociologóide / dono e / tutor da verdade / perguntou-se / (a sério) / / o que seria do / poema ‘pós-tudo’ / (do augusto) – no qual / não soube ler a linha / cruzada ‘ria’ – num / país socialista? / / o muro de berlim / (riu) / r / u / i / u”.
No entanto, era Augusto de Campos o poeta predileto de Leminski. Na resenha dedicada a Viva vaia: poesia 1949-1979, publicada na revista Código (1980), Leminski escreve uma peça típica de seu pensamento literário e político, analisando o contexto em que a obra é produzida e apresentada:
Poemas de oposição. Oposição ao conservadorismo. Ao academicismo. A inércia. A inépcia. Ao oportunismo carreirista (tudo coisas em que somos dos grandes produtores mundiais).
[...]
A atenção se foca naturalmente nos momentos mais íngremes, desafiadores e "excessivos" dessa poesia limite, feita com raio laser, paulista, industrial, internacionalista, planetária.
E se admira ao ver que, ao contrário do que garantem os acadêmicos bem‑comportados, essa poesia expressa, é emoção, é paixão. Os acadêmicos não conseguem ver sentimento na poesia experimental (eles só enxergam o experimento), assim como não conseguem ver realidade na prosa experimental.
Augusto de Campos é poeta romântico, seus poemas são poemas de amor, à mulher, à própria poesia, ao semelhante (seu poema "Greve", de 1961, é dos grandes poemas políticos da poesia brasileira).
Mas Augusto é, também, poeta que trabalha na infraestrutura das formas, inconformado com os recursos herdados, ampliando, a cada poema, o campo do expresso e do expressável. Para isso, convoca todo o arsenal de linguagens industriais, socialmente desenvolvidas, mas, hoje, sequestradas pela publicidade, a serviço da iniciativa privada (letra‑set, foto‑montagem, grafias e grafismos vários).
Sua poesia é um caso quase limite, na poesia escrita brasileira, de mensagem materialmente imprevisível, improvável, original, portadora de altíssimo teor de informação estrutural.
[...]
A poesia brasileira dominante, hoje, reporta‑se a padrões drummondianos e cabralinos (ou mais recentemente oswaldianos), canonizados como "normalidade". As mudas da "Rosa do Povo” do Drummond dos anos 40, saída da "Rose Publique", de Paul Éluard, de 1934, continuam a dar pé. Mas agora como situação, como classe dominante da poesia (mesmo com pretextos participantes ou populistas). A poesia de "Poesia" convoca pontos de referência novos, extraídos da melhor poesia universal de todas as épocas (provençais, "metaphisical poetry" inglesa, etc.), da qual Augusto é exímio tradutor.
Só a má fé ou a colossal burrice poderiam negar a "Poesia" o lugar que ocupa, no anêmico e raquítico panorama poético nacional, onde não se vê a ousadia, a bravura, o risco, mas apenas o requentar reiterado dos mesmos recursos, das mesmas soluções, do mesmo sempre igual.
O lugar de um momento único.
Essas palavras, que completam quase 30 anos, mostram o quanto Leminski estava correto ao considerar Augusto como um poeta antiprovinciano – denominação que pode ser dada também a Haroldo e a Pignatari –, com “pontos de referência novos, extraídos da poesia universal de todas as épocas”, sobretudo os provençais e os poetas metafísicos ingleses. Por isso, Viva vaia pode ser visto como a obra experimental por excelência de um período da poesia brasileira. Mostrando obras como O rei menos o reino, estreia de Augusto, Poetamenos, os poemas concretos e a série Stelegramas, Viva vaia é um dos maiores livros de poesia já feitos no Brasil.
O polaco escreveria a Bonvicino, em carta de 1980, sobre um encontro com Augusto ter sido “uma ducha gelada” em seu “cio poético”, já que o mestre lhe trazia “arquipélagos de idéias-constelação”, uma imagem definidora para a obra de Augusto: a obsessão pelas palavras como estrelas e a solidão dos arquipélagos, correspondendo-se diretamente com as “subdivisões prismáticas da Idéia” de Mallarmé. É este o poeta que direciona tanto Augusto quanto Leminski, embora em ambos caiba o diálogo profícuo com Rimbaud. Leminski, num de seus poemas derradeiros, escreve em francês os versos: “perdi a minha vida / / por delicadeza? / / sim, / rimbaud / eu / também” – comparando sua trajetória à do poeta francês. Do mesmo modo, é Mallarmé o responsável pela “gaveta de um armário impossível”, do papel em branco musical. Situado entre a poesia implosiva de Mallarmé e a poesia explosiva de Rimbaud, como Augusto de Campos classifica cada um dos poetas franceses, Leminski persegue a página em branco e as palavras da tribo, no poema “Ao pé da pena”: “todo sujo de tinta / o escriba voltou pra casa / cabeça cheia de frases alheias / frases feitas / letras feias / linhas lindas / a pele queima / as palavras esquecidas / formas formigas / todas as palavras da tribo”, pelas quais, completa Leminski, “trocou a vida / dias luzes madrugadas”. Numa carta a Régis Bonvicino, ele já se referia a Augusto no sentido de que uma possível esterilidade não interferir na qualidade: “Augusto e Mallarmé deixaram meia dúzia de coisas”. Poderia completar o raciocínio com a opinião que trazia de Rimbaud: “A melhor poesia de Rimbaud esteve em seu gesto final: a recusa do ‘sucesso’, a escolha do ‘fracasso’, a derrota da literatura, inimiga da poesia, para que esta triunfasse”. Augusto é, portanto, a meu ver, a principal influência de Leminski: este escreveu sobre a atividade tradutória de Augusto – Mais provençais, Linguaviagem, A serpente e o pensar, Poesia russa moderna –, em resenhas publicadas na Veja e Istoé. Por sua vez, numa entrevista recente, ao falar da “prosa de arte”, Augusto cita, do Brasil, alguns nomes: Machado de Assis, Euclides da Cuha, Mário de Andrade (Macunaíma), Oswald (João Miramar, Serafim Ponte Grande), Guimarães Rosa, a “poesiaprosa” de Haroldo, a “prosapoesia” de Décio e o Catatau, de Leminski. Na biografia de Leminski, Augusto o considera “o maior poeta de sua geração”.
Na proximidade de uma nova década do século XXI, que os três – acrescidos a João Cabral – ainda sejam exemplos de uma “ética da linguagem”, contra a lama que cobre um certo plano-piloto, como escreve Haroldo de Campos, num dos poemas de seu póstumo Entremilênios. Todos se destacam por uma abertura inteligente para o diálogo – mais do que criar um debate, afinal, é preciso merecê-lo –, são poetas e críticos capazes de diferentes interpretações, mas ainda assim com o intuito da descoberta tanto da própria obra quanto da obra alheia. João Cabral, os irmãos Campos e Leminski, para assinalar alguns nomes da história da literatura brasileira, souberam, como poucos, utilizar a postura de diálogo literário, que, no sentido verdadeiro, antes de tudo, é vida e sobrevida.
NOTAS:
MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 1999, p. 517-518.
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André Dick nasceu em Porto Alegre (RS), em 1976. Publicou os livros de poesia Grafias (2002) e Papéis de parede (2004). Organizou, com Fabiano Calixto, o livro A linha que nunca termina - pensando Paulo Leminski (2004). É doutor em Literatura Comparada pela UFRGS.
Leia também outros poemas de André Dick e seus ensaios sobre Agamben, Drummond, Augusto de Campos, Paulo Leminski, João Alexandre Barbosa e o livro Jardim de Camaleões, de Claudio Daniel, e ainda o ensaio A aceitação do difícil.
Leia um ensaio de Ronald Polito sobre André Dick. |