A
PROFANAÇÃO DA LINGUAGEM EM GIORGIO AGAMBEN
André Dick
Desde o lançamento de Homo sacer, o filósofo
italiano Giorgio Agamben, nascido em Roma, em 1942, vem
recebendo atenção no Brasil. Por meio de Profanações
(Boitempo Editorial) e Estâncias: a palavra e o
fantasma na cultura ocidental (Ed. UFMG),
continua-se a seqüência de lançamentos de títulos desse
filósofo, a exemplo de A linguagem e a morte: um
seminário sobre o lugar da negatividade, Infância
e história: a destruição da experiência e a origem da
história (ambos lançados pela UFMG) e Estado de
exceção (pela Boitempo). Fixemo-nos, no entanto, nos
livros que Agamben dedica mais a fazer uma interseção
entre literatura e filosofia, ou seja, Profanações,
Estâncias, A linguagem e a morte e Infância e
história,
o que fez Derrida entre o fim dos anos 1960 e meados dos
70, com poetas como Mallarmé. Nesse sentido, Agamben,
como Derrida, é um autor limítrofe. Todos esses livros
são múltiplos, mostrando uma obra em plena realização e
não se delimitam ao campo em que Agamben está começando
a ser mais inserido: no do direito, em razão, sobretudo,
dos admiráveis Homo sacer: o poder soberano e a vida
nua I e Estado de exceção, este
continuando uma discussão já iniciada por Derrida em
Força de lei, influenciado por Walter Benjamin. Ou
seja, a procura, aqui, é pela ligação que Agamben, muito
particularmente, faz da filosofia com a literatura - o
que não pode ser totalizado, claro, com este breve texto.
Um assunto recuperado por Agamben no sentido mais
poético, a lingüística se faz presente principalmente na
primeira parte de Infância e história e no
capítulo final de Estâncias,
em que Agamben
faz uma retomada de Émile Benveniste - uma de suas
referências - e de certo pensamento estruturalista e
pós-estruturalista. Em Infância e história,
especificamente, Agamben comenta sobre uma possível
destruição da experiência na vida moderna. No entanto,
permite-se pensar que não há destruição da experiência
para haver o inexperiancível, e sim outro tipo de
experiência, talvez mais lingüística ou talvez mais
profana. A destruição não seria "morada do homem", mas a
sua saída. Como negar que a experiência de Baudelaire é
existencial e empírica, à medida que é lingüística?
Nesse ponto, Agamben ainda tem uma certa posição
improfanável. Agamben recupera a idéia de que o sujeito
da experiência era o "senso comum" , presente em cada
indivíduo, e o sujeito da ciência é o "nous", ou o
intelecto agente, que é separado da experiência
'impassível` e 'divina'".
Ou seja, "inteligência (nous) e alma (psyché)
não são, de fato, para o pensamento antigo [...], a
mesma coisa, e o intelecto não é, como nós estamos
acostumados a pensar, uma 'faculdade' de alma: ele não
lhe pertence de modo algum, mas 'separado, impermisto,
impassível', segundo a célebre fórmula aristotélica,
comunica-se com ela para realizar o conhecimento".
Em busca da certeza, nos diz Agamben, a ciência moderna
abole tal separação e "faz da experiência o lugar [...]
do conhecimento".
Agamben oferece como solução que o velho sujeito da
experiência se duplicou, exemplificando Dom Quixote como
velho sujeito do conhecimento e Sancho Pança como
sujeito da experiência.
Com isso, o filósofo italiano deseja afirmar que "é na
linguagem e através da linguagem que o homem se
constitui como sujeito".
Assim, a subjetividade "nada mais é do que a capacidade
do locutor de pôr-se como um ego, que não pode
ser de modo algum definida por meio de um sentimento
mudo, que cada qual experimentaria da experiência de si
mesmo, nem mediante a alusão a qualquer experiência
psíquica inefável do ego, mas apenas através da
transcendência do eu lingüístico relativamente a toda
possível experiência".
Reavaliando Kant - um dos filósofos a que recorre -,
Agamben escreve: "O transcendental não pode ser o
subjetivo: a menos que o transcendental signifique
simplesmente 'lingüístico'".
Daí Agamben procurar elementos que possam explicar que o
sagrado está ligado ao profano, ou seja, o artista visto
como uma espécie de representante da humanidade é uma
figura do passado, e a linguagem de cada um pertence à
comunidade com quem convive, observando que a infância
instaura na linguagem a cisão entre língua e discurso,
entre o semiótico e o semântico, entre o sistema de
signos e o discurso. O sujeito da linguagem é fundamento
da experiência e do conhecimento, e a origem
transcendental da linguagem se localiza, portanto, na
infância do homem, a pura língua do discurso humano. A
idéia de uma infância como uma "substância psíquica"
pré-subjetiva revela-se "um mito, como aquela de um
sujeito pré-lingüístico. Isso porque, na visão de
Agamben, infância e linguagem estão intrinsecamente
ligadas, cada uma remete uma à outra em um círculo no
qual a infância é a origem da linguagem e a linguagem a
origem da infância",
isto é, a infância em questão não assinala apenas um
período, mas coexiste originalmente com a linguagem,
"constitui-se aliás ela mesma na expropriação que a
linguagem dele efetua, produzindo a cada vez o homem
como sujeito".
A infância seria o inefável, a transcendência, o que
ocorre nessa passagem do signo ao discurso.
Essa infância é construída, portanto, pela linguagem e
por aquilo que Agamben chama de "Voz" que delineia o
indivíduo. Por isso, para Agamben, em A linguagem e a
morte, a Voz (com maiúscula para distingui-la da voz
como mero som) "tem o estatuto de um não-mais (voz) e de
um não-ainda (significado)", constituindo uma "dimensão
negativa",
produzindo-se por meio dos schifters de Jakobson
e os "índices de enunciação" de Benveniste - produzindo-se
o conhecimento da linguagem. Há uma certa crítica a
Derrida, quando Agamben afirma que a metafísica não é
simplesmente o primado da voz sobre a grammá (a
letra), pois se a metafísica indica um origem indica
imediatamente evoca uma Voz suprimida, negativa. Para
Agamben, a voz (phoné) é, antes de tudo, a
representação da morte - o que, para Derrida, seria
basicamente a vida em detrimento do texto, da escrita, o
que ele trabalhou em A farmácia de Platão (ensaio
de La dissémination, publicado no Brasil como
livro independente). Nesse sentido, o homem é um falante,
pelo qual se constrói o que diz, ou seja, a morte.
Segundo Agamben, vivemos hoje "naquela extrema fímbria
da metafísica em que esta retorna - como niilismo - ao
próprio fundamento negativo".
O pensador lembra que, para Hegel, a linguagem "não era
simplesmente a voz do homem, mas o articular-se desta em
'voz da consciência' através de uma Voz da morte".
A Voz faz parte do Dasein heideggeriano: aproxima-se
intimamente da morte ou seja, ela pensa a morte, daí o
"pensamento da morte" ser "o pensamento da Voz",
e esta se converte sempre em negativo do Ser, na visão
de Agamben, de Hegel a Heidegger. "Ter experiência da
morte como morte significa, efetivamente, fazer
experiência da supressão da voz e do surgimento, em seu
lugar, de outra Voz [...] que constitui o originário
fundamento negativo da palavra humana".
(Há um motivo para esses filósofos lhe servirem de
referência: Agamben assistiu aos seminários de Martin
Heidegger na Alemanha, em Le Thor, entre 1966 e 1968,
sobre Heráclito - que também surge ao longo de sua
exposição filosófica - e Hegel.) Agamben prossegue,
afirmando que "colher a Voz pode significar apenas
pensar além destas oposições: logo, pensar o Absoluto",
pelo qual a filosofia "pensa o próprio fundamento
negativo".
Segundo ele, de forma poética, "A filosofia é esta
viagem, este retorno, a partir de si para si mesma da
palavra humana que, abandonando a própria morada
habitual da voz, se abre ao terror do nada e,
simultaneamente, à maravilha do ser e, transformada em
discurso significante, retorna afinal, como saber
absoluto, à Voz",
constituindo a epistemologia negativa e uma
reinterpretação da própria metafísica.
Agamben - como Derrida, ao contrário de Habermas -
entende como vital a ligação entre filosofia e
literatura. Em vários momentos, Agamben entrelaça seus
argumentos sobre a negatividade a uma concepção poética:
"Antes de mais nada, a poesia parece assumir desde
sempre aquele caráter - simultaneamente universal e
negativo - do "este", cuja descoberta orientara a
crítica hegeliana da certeza sensível".
A partir de imagens e da construção lingüística do poema
"O infinito", de Leopardi, por exemplo, ele escreve: "A
palavra poética acontece, pois, de tal modo que o seu
acontecimento escapa já sempre em direção ao futuro e ao
passado, e o lugar da poesia é sempre um lugar de
memória e repetição".
Desenha-se uma convergência entre filosofia e poesia:
numa espécie de hermenêutica, o filósofo avalia que a
experiência poética da dicção - com seu trabalho por
meio dos schifters da linguagem - coincide com a
"experiência da linguagem da filosofia".
Aliás, adverte Agamben, "a poesia - toda poesia - contém,
aliás, com respeito a esta, um elemento que já adverte
sempre quem a escuta ou repete de que o evento de
linguagem em questão já foi e retornará infinitas vezes",
rememorando também a concepção de "musa" para os gregos,
que implicava a experiência da "inapreensibilidade do
lugar originário da palavra poética".
A filosofia teria nascido como tentativa de "liberar a
poesia da sua ' inspiração'", e consegue reter a Musa,
para fazer dela, "como ' espírito', o seu próprio
sujeito; mas este espírito (Geist) é,
precisamente, o negativo (das Negative), e a '
voz mais bela' [...], que, segundo Platão, compete à
Musa dos filósofos, é uma voz sem som".
É possível notar, nessa concepção de Agamben, uma
tendência novamente a visualizar a infância, a
negatividade do discurso.
De modo geral, A linguagem e a morte, mesmo com
suas referências literárias, é o livro de Agamben - pelo
menos entre os lançados no Brasil - mais filosófico,
mesclando idéias de Hegel e de Heidegger numa direção
até então não explorada nem por nomes que se dedicaram a
estudar tais autores, como Derrida e Jürgen Habermas.
Além disso, subjacente, há uma concepção religiosa que
apresenta pontos de contato com vários momentos de
Profanações e de Estâncias. Trata-se, além
disso, de um texto fluido, mesmo que longo, que vai
apresentando os pressupostos com enorme domínio,
dispondo as referências - a Aristóteles e a Platão, por
exemplo, com várias citações em grego - sem cansar.
No entanto, é no ensaio "Programa para uma revista",
ainda de Infância e história, que Agamben compõe
a idéia - igual à de A linguagem e a morte -: o
de que a poesia ajuda a solidificar uma compreensão
sobre essa passagem do ser humano para a linguagem.
Nesse sentido, percebe-se que sua interpretação sobre
Leopardi e de autores gregos (em A linguagem e a
morte), Baudelaire, Dante e Cavalcanti (em
Estâncias) e da poesia moderna (em Infância e
história), mostra um autor extremamente plural e
voltado para o sentido da ética literária como um
posicionamento poético, o que ele vai explorar em
Homo sacer. Agamben, nesse sentido, é o oposto do
Platão de A república, preocupado com a sanidade
das pessoas em detrimento dos artistas e, sobretudo, dos
poetas, sendo possível perceber que hoje a poesia é
também uma espécie de homo sacer, que deve ser
morta sem piedade em praça pública. Agamben, no entanto,
prova que a perseguição é nefasta: não se pode,
sobretudo, perseguir a linguagem, inerente ao ser humano.
Ele é uma prova cabal de que a lingüística, cada vez
mais dominada por elementos afastados do poético, guarda
o caminho para que a literatura também se manifeste por
uma ética do discurso.
Nesse sentido ainda, sobre o programa de uma revista,
Agamben ainda assinala: "Um dos princípios pragmáticos
aos quais a revista deverá ater-se, retomando a
definição de Vico que inclui entre os filólogos 'poetas,
historiadores, oradores, gramáticos', será o de
considerar exatamente no mesmo plano disciplinas
crítico-filológicas e poesia".
Mas não se trata, segundo Agamben, de
fazer com que os poetas passem a fazer obras de
filologia e os filólogos a escreverem poesia, "mas de se
colocarem ambos em um lugar em que a fratura da palavra
que, na cultura ocidental, divide poesia e filosofia
torne-se uma experiência consciente e problemática, e
não uma canhestra remoção".
Agamben pede, assim, que pensemos "não somente em
autores como Benjamin ou Poliziano, Calímaco ou Valéry,
este tão difícil de classificar em uma categoria precisa,
mas também naqueles poetas, como Dante e o autor de
Zohar, Hölderlin e Kafka, que, em situações culturais
diversas, fizeram da defasagem entre e verdade e
transmissibilidade a sua experiência central. E, nesta
perspectiva, é à tradução, considerada como auto
crítico-poético por excelência, que deverá ser dada uma
atenção toda especial".
Sob um ponto de vista utópico, é proposto o projeto de
uma "disciplina de interdisciplinaridade", "na qual
convirja, com a poesia, todas as ciências humana, e cujo
fim seja aquela 'ciência geral do humano' que de vários
cantos se anuncia como a tarefa cultural da próxima
geração".
Em Profanações,
com textos curtos, alguns quase em forma de fragmentos e
de aforismos - no melhor estilo dos textos de Schlegel e
Novalis, do romantismo de Iena, mas como uma visão menos
ideológica, não percebendo o artista como salvador da
humanidade -, Agamben continua a linha de Walter
Benjamin e Michel Foucault ao propor a recuperação de
uma modernidade situada na saturação de uma certa
paisagem romântica.
Agamben convida a profanar o sagrado, analisando a
relação entre religião e capitalismo. Para ele, o
profano é o que é restituído ao mundo dos homens, ao uso
comum. Agamben observa que religio não deriva de
religare (o que liga e une o humano e o divino),
mas de "relegare", indicando a "atitude de escrúpulo e
de atenção que deve caracterizar as relações com os
deuses, a inquieta hesitação (o "reler") perante as
formas - e as fórmulas - que se devem observar a fim de
respeitar a separação entre o sagrado e o profano".
Desse modo, "religio" não é o que une homens e deuses,
"mas aquilo que cuida para que se mantenham distintos",
havendo uma ligação entre as esferas do sagrado e do
jogo, trazendo à cena o pensamento infantil. O jogo traz
algo de sagrado, mas não sai da esfera do profano, o que
remete à ligação e a constituição do homem na infância -
na discussão proposta em Infância e história.
Agamben avalia, baseado em Benjamin, que o capitalismo
não representa apenas uma "secularização da fé
protestante", mas ele mesmo é um "fenômeno religioso,
que se desenvolve de modo parasitário a partir do
cristianismo".
No lugar da religião, que havia uma passagem do sagrado
para o profano e do profano para o sagrado, o
capitalismo institui o vazio do consumo, realizando a
"pura forma da separação, sem mais nada a separar":
a religião capitalista "está voltada para a criação de
algo Improfanável".
Ou seja, ela almeja o consumo absoluto, e, perdendo-se
no vazio, faz com que o ser humano não consiga profanar
esse mesmo consumo, e não se separe da idéia de que esse
consumo é um fetiche.
A avaliação que Agamben faz da religião capitalista
guarda correspondência direta com a seção "No mundo de
Odradek: a obra de arte frente à mercadoria", de
Estâncias, em que é traçado uma ponte entre Marx e
Baudelaire, com seu fetiche pela mercadoria. Para
Agamben, esse fetiche leva à irrealidade.
Para isso, Agamben parte de uma interpretação de Freud
sobre o fetiche: a negação do menino da ausência do
pênis materno, e a sua negação dessa ausência, cria uma
analogia para se estabelecer uma ponte com o objetivo da
poesia moderna. O objeto-fetiche é algo concreto, mas,
como "como presença de uma ausência", é, ao mesmo tempo,
"imaterial e intangível, por remeter continuamente para
além de si mesmo, para algo que nunca se pode possuir
realmente",
sendo que o valor de uso não é maior, hoje, do que o
valor de troca, o que mostra a inapreensibilidade do
objeto: a sua presença-ausência. Sob o ponto de vista
poético, a razão é que tornar a obra num fetiche implica
aceitar a sua própria intocabilidade. No entanto, é
preciso profaná-la, ou seja, transformá-la em mercadoria:
a poesia, sob esse ângulo, passa a ser utilizada não
mais como arte ou como mercadoria, mas como uma espécie
de mistura, em que as duas se anulam.
Para Agamben, a grandeza de Baudelaire foi ele
transformar em mercadoria e em fetiche a própria obra de
arte. A partir da idéia de que a poesia não tem outro
fim senão ela mesma, Baudelaire imprime à obra de arte o
valor de troca que possui a mercadoria. Desse modo, ele
impôs à obra um caráter de mercadoria absoluta, cujo
valor seria a inutilidade, ou seja, o Improfanável. A
mercadorização absoluta da obra de arte.
A lição que Baudelaire deixou à poesia moderna "é que o
único modo em superar a mercadoria consistia em levar ao
extremo suas contradições, a ponto de ela acabar abolida
enquanto mercadoria, com o objetivo de devolver o objeto
à sua verdade",
e, a partir daí, Agamben avalia que como o sacrifício
"restitui ao mundo sagrado o que o uso servir degradou e
tornou profano, assim também, através da transfiguração
poética, o objeto é arrancado tanto da fruição quanto da
acumulação, e restituído ao seu estatuto original".
Esse estatuto serve da própria descoberta
da linguagem. Assim, "Se é só através da destruição que
o sacrifício consagra, assim também é só através do
estranhamento que a torna inapreensível, e através da
inteligibilidade e da autoridade tradicionais, que a
mentira da mercadoria se transforma em verdade. Esse
é o sentido da teoria da art pour l'art, o que de
modo algum significa gozo da arte por si mesma,
mas destruição da arte por obra da arte".
O equívoco de Agamben parece ser de que a condição para
esta tarefa sacrifical é o artista levar às últimas
conseqüências o "princípio da perda e do desapossamento
de si".
Agamben, a partir daí, incursiona constantemente na
impessoalidade de fundo romântico, quando afirma: "Da
mesma maneira que a obra de arte deve destruir e alienar
a si própria para se tornar uma mercadoria absoluta,
também o artista-dandy deve transformar-se em cadáver
vivo, tendendo constantemente para um outro, uma
criatura essencialmente não-humana e anti-humana".
Segundo ele, "Depois de ter transformado a obra em
mercadoria, o artista joga agora também sobre si a
máscara desumana da mercadoria e abandona a imagem
tradicional do humano. O que os críticos reacionários da
arte moderna esquecem, quando denunciam sua
desumanização, é que o centro de gravidade da arte nunca
residia, no caso das grandes épocas artísticas, na
esfera humana"
- uma afirmação que pode ser contestada pela própria
descoberta da linguagem proposta por Agamben em seus
textos. Com a poesia moderna, há a novidade de que,
"diante de um mundo que glorifica o homem na mesma
proporção em que o reduz a objeto, ela desmascara a
ideologia humanitária [...]".
Agamben toma o caminho da impessoalidade
no sentido do sublime, o que é sempre um risco, quando
afirma que, por meio de autores como Apollinaire,
Rimbaud, Lautréamont, Mallarmé, Matisse, Montale e Celan,
a poesia moderna "sinaliza para essa região inquietante,
na qual já não existem nem homens nem deuses, e onde,
como um ídolo primitivo, só se eleva
incompreensivelmente além de si mesma uma presença que
é, ao mesmo tempo, sagrada e miserável, fascinante e
tremenda, uma presença que carrega consigo,
contemporaneamente, a fixa materialidade do corpo morto
e a fantasmática inapreensibilidade do ser vivo".
Ora, o que parece desumano ainda é lingüístico e profano.
Daí, neste caso, Agamben se contradizer, quando afirmar
que há uma destruição da experiência na poesia moderna.
A experiência, como vemos em Infância e história,
continua sendo a descoberta constante da linguagem.
Em Estâncias, além disso, Agamben tenta desenhar
- no que remete novamente a Walter Benjamin, em sua
Origem
do drama barroco alemão
- novamente o panorama da melancolia. Para isso, parte
de um clássico texto de Freud, "Luto e melancolia".
Nesse ensaio referencial, Freud observa - e algumas
idéias são recuperadas por Agamben - que, para algumas
pessoas, o luto se dá como reação à perda de alguém
querido ou de algum objeto (um livro esquecido na
infância, um lugar não mais visitado), ou de alguma
abstração (como o "país", a "liberdade" ou o "ideal de
alguém"), e a melancolia age às vezes em razão dos
mesmos fatores, com a diferença de que se torna
sintomática, da qual o sujeito tem dificuldades de se
livrar, vivendo-a continuamente.
Porém, Freud se pergunta por que às vezes o sujeito
consegue superar a perda de alguém que lhe é estimado,
mas nunca consegue se livrar de um sentimento de
melancolia. É que, para Freud, o objeto perdido é como
um sentimento recalcado, dando-se no inconsciente no
sujeito e recaindo sobre o ego,
pois a "apresentação (da coisa) inconsciente do objeto
foi abandonada pela libido"
e, se a libido é abalada, a perda do objeto se
transforma na perda do próprio ego, lembrando-se, aqui,
que, nas categorias de Lacan, o Imaginário tem muitos
elementos daquele.
Agamben realiza essa recuperação do conceito de
melancolia - sobretudo, sua concepção de sentimento
condenatório, pela religião, que a via como a acídia, o
enfraquecimento da alma e uma fuga ao divino - como que
para estabelecer um diálogo com o conceito de "fantasma",
na análise que faz, sobretudo, da Vita nova de
Dante. Nesse misto entre poesia e prosa, o poeta esquece
que nunca possui Beatriz - mas lamenta sua perda. Essa
perda do "fantasma" que nunca possuiu indica uma
melancolia particular, uma imagem congelada remete aos
textos de Agamben sobre a fotografia e, sobretudo, ao
texto "O ser especial", de Profanações, em que
retoma a idéia, provinda de Dante e de Cavalcanti, de
que o amor é como um "acidente em substância" - imagem,
aliás, de Vita nova. A imagem - ou o fantasma da
melancolia - "é gerada a cada instante de acordo com o
movimento ou a presença de quem a contempla".
Para o filósofo italiano, "Entre a percepção da imagem e
o reconhecer-se nela há um intervalo que os poetas
medievais denominavam amor".
Ao se prolongar o intervalo "entre a
percepção e o reconhecimento, a imagem é interiorizada
como fantasma, e o amor recai na psicologia".
O "fantasma" remete à melancolia, que, por sua vez,
indica a voz da morte, negativa, de A linguagem e a
morte.
Agamben investiga constantemente a infância e, através
da voz impressa, relembra a imagem do "fantasma" dos
poetas medievais, no que se liga a ensaios de
Estâncias e aos shifters de Jakobson ou os
"índices de enunciação" de Benveniste, em A linguagem
e a morte e Infância e história: "A
descoberta medieval do amor por obra dos poetas
provençais e estilnovistas é, deste ponto de vista, a
descoberta de que o amor tem como objeto não diretamente
a coisa sensível, mas o fantasma; é, portanto,
simplesmente a descoberta do caráter fantasmático do
amor. Mas, dada a natureza medial da fantasia, isto
significa que o fantasma é, também, o sujeito e não
simplesmente o objeto do eros.".
Diante disso, não há um contato com a corporeidade, mas
com a imagem, uma "nova pessoa", "na qual se abolem os
confins entre subjetivo e objetivo, corpóreo e
incorpóreo, o desejo e seu objeto".
Com esta fantasia, surge o "espírito fantástico" A noção
de fantasia, sob esse aspecto, é também lembrada num
momento de Infância e história - indicando o
inexperenciável.
O conceito que perpassa essa idéia de infância - ou seja,
faz uma convergência - é o de história, que Agamben
reconhece a partir de "Sobre o conceito de História", de
Benjamin, contrapondo-o aos conceitos de história de
Aristóteles e Marx. Giorgio Agamben, analisa, parece-me
que no mesmo sentido de Vattimo, que a "história, na
realidade, não é, como desejaria a ideologia dominante,
a sujeição do homem ao tempo linear contínuo, mas a sua
liberação deste: o tempo da história é o cairós
em que a iniciativa do homem colhe a oportunidade
favorável e decide no átimo a própria liberdade. Assim
como ao tempo vazio, contínuo e infinito do historicismo
vulgar deve-se opor o tempo pleno, descontínuo, finito e
completo do prazer, ao tempo cronológico da pseudo-história
deve-se opor o tempo cairológico da história autêntica".
Embora talvez Agamben não se alinhe com Vattimo, há em
ambas as posições a idéia de que o tempo histórico se
dissocia da idéia de que ele é contínuo, de um início
até um fim.
Se Vattimo separa esta idéia da modernidade, situando-o
num universo "pós", Agamben ainda sustenta mais o
raciocínio de que há uma verdadeira historicidade, que
está intrisecamente ligada à concepção marxista. Lembra,
por exemplo, que para Heidgger, o Ser-aí (Dasein)
se fundava na negatividade, na morte, e o filósofo
alemão afirmava que a historiografia marxista ainda era
superior a outras existentes. O foco dado por Heidegger
é o seguinte: "a experiência não é mais o instante
pontual e inaferrável em fuga ao longo do tempo linear,
mas o átimo da decisão em que o Ser-aí experimenta a
própria finitude, que a cada momento se estende do
nascimento à morte [...] e, projetando-se além de si no
cuidado, assume livremente como destino a sua
historicidade originária".
O ser humano não "cairia" no tempo, mas sim existiria
como "temporalização originária". Em Marx, a história
não é mais determinada, como em Hegel, pela negação da
negação, mas a partir da "praxis", da atividade concreta
como essência e origem do homem.
A história não seria mais a "alienação do homem" -
também como em Hegel -, mas a sua origem e natureza, o
"primeiro ato histórico", "o ato de origem da história,
compreendida como o tornar-se natureza, para o homem, da
essência humana e o tornar-se homem da natureza".
Para Agamben, o homem moderno, para Agamben, ainda está
situado entre o "seu ser-no-tempo, como fuga inaferrável
dos instantes, e o próprio ser-na-história, entendido
como dimensão original do homem",
e a duplicidade da concepção moderna de
história - como realidade sincrônica e realidade
diacrônica, que não coincidem temporalmente - acaba
exprimindo a "impossibilidade do homem, que se perdeu no
tempo, de apoderar-se da própria natureza histórica"
- e, pode-se afirmar, a impossibilidade de encontrar uma
voz e uma linguagem que não estejam em constante perda e
negatividade.
O que se destaca em Agamben é sua predileção por uma
certa infância da linguagem, idéia extraída não só dos
românticos e dos seus sucessores - Benjamin afirmava que
o Adão havia sido o primeiro filósofo, e há na sua
figura uma representação dessa infância a que Agamben se
refere -, que coloca a vida como um jogo entre rito e
linguagem. No último texto de Profanações, em que
ganha relevo essa visualização benjaminiana, a
profanação é vista como uma colocação dessa linguagem em
plano comum. Não deixa de ser uma obsessão de Agamben,
pois, em Infância e história, ele já recorria à
essa infância da linguagem, mesmo no homem adulto, e em
A linguagem e a morte, em que a voz é a
representação negativa da morte, baseado numa leitura de
Heidegger e Hegel. Mas se para Heidegger a metafísica
não acaba - como propôs seu continuador direto Derrida
-, em Agamben ela se confunde à própria linguagem.
É um tanto paradoxal que o
mesmo autor que propõe um autor mais ligado à construção
da linguagem, em Infância e história, fale, em
Profanações, da figura do Gênio, que traria aquela
impessoalidade apregoada por Schlegel e Novalis, entre
outros românticos, tributária à concepção do sublime. No
entanto, não é essa a idéia de Foucault,
em que Agamben
se baseia para produzir o texto "O autor do gesto". O eu
impessoal de Foucault esconde uma intertextualidade, na
qual o próprio Agamben se insere. Ora,
Agamben não é um gênio, e seus textos são tributários da
própria tradição que ele quer levar adiante. Do mesmo
modo, a idéia de "infância da linguagem", embora poética,
nunca chega a se concretizar, pois a modernidade é o
período em que mais transparece a experiência negativa
do autor, aquela que Agamben estuda como "voz" da morte
em A linguagem e a morte. Logo, a experiência
moderna não é impessoal como a romântica; pelo contrário:
o panorama em que está inserida mostra a superação dessa
idéia. Deixando-se de lado esse detalhe, a obra de
Agamben é uma das poucas, no cenário contemporâneo, que
convidam à reflexão.
O discurso de Agamben se situa num ponto que navega
entre a infância e o que resta da infância no universo
adulto. Para ele, a filosofia é um jogo de armar,
explorando como Benjamin, o universo infantil. O adulto,
para Agamben, perdeu a magia do rito, da magia, do
profanável - sobretudo quando se entrega ao capitalismo.
Saindo desse universo, parece restar o juízo final que
Agamben enxerga nas fotografias ou na exploração da
tragédia, como avalia em "O dia do juízo": "A fotografia
é para mim, de algum modo, o lugar do Juízo Universal;
ela representa o mundo assim como aparece no último dia,
no Dia da Cólera";
"Graças à objetiva fotográfica, o gesto
agora aparece carregado com o peso de uma vida interior;
aquela atitude irrelevante, até mesmo boba, compendia e
resume em si o sentido de toda uma existência."
Toda essa remissão à infância é trabalhada com fôlego em
Infância e história, em ensaios como "O país dos
brinquedos" e "Fábula e história"; em ensaios como
"Magia e felicidade", "Genius" e "Os ajudantes", de
Profanações. Nesse sentido, Agamben é um filósofo da
infância, como se apresentou Benjamin em alguns de seus
textos, a exemplo de "Livros infantis antigos e
esquecidos", "História cultural do brinquedo" e
"Brinquedo e brincadeira. Observações sobre uma obra
monumental",
os quais o italiano explora e complementa. A infância,
afinal, é o início da profanação da linguagem, ou seja,
de sua descoberta, principalmente poética. Afinal, diz
Agamben, " a linguagem é nossa voz, a nossa linguagem.
Como agora falas, isto é a ética".
E a infância, sem dúvida, carrega o sentido de toda uma
existência.
*
André Dick
nasceu
em Porto Alegre
(RS), em 1976. Publicou os livros de poesia Grafias
(2002) e Papéis de parede (2004). Organizou, com
Fabiano Calixto, o livro A linha que nunca termina -
pensando Paulo Leminski (2004). É doutor
em Literatura Comparada
pela UFRGS.
*
Leia também
poemas de André Dick e ensaios do autor sobre
Augusto de Campos,
Paulo Leminski, o
Jardim de Camaleões, de Claudio Daniel, João
Alexandre Barbosa e
Carlos
Drummond de Andrade.
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