ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

A PROFANAÇÃO DA LINGUAGEM EM GIORGIO AGAMBEN

 

André Dick

 

 

Desde o lançamento de Homo sacer, o filósofo italiano Giorgio Agamben, nascido em Roma, em 1942, vem recebendo atenção no Brasil. Por meio de Profanações (Boitempo Editorial) e Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental (Ed. UFMG), continua-se a seqüência de lançamentos de títulos desse filósofo, a exemplo de A linguagem e a morte: um seminário sobre o lugar da negatividade, Infância e história: a destruição da experiência e a origem da história  (ambos lançados pela UFMG) e Estado de exceção (pela Boitempo). Fixemo-nos, no entanto, nos livros que Agamben dedica mais a fazer uma interseção entre literatura e filosofia, ou seja, Profanações, Estâncias, A linguagem e a morte e Infância e história,[1] o que fez Derrida entre o fim dos anos 1960 e meados dos 70, com poetas como Mallarmé. Nesse sentido, Agamben, como Derrida, é um autor limítrofe. Todos esses livros são múltiplos, mostrando uma obra em plena realização e não se delimitam ao campo em que Agamben está começando a ser mais inserido: no do direito, em razão, sobretudo, dos admiráveis Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I e Estado de exceção, este continuando uma discussão já iniciada por Derrida em Força de lei, influenciado por Walter Benjamin. Ou seja, a procura, aqui, é pela ligação que Agamben, muito particularmente, faz da filosofia com a literatura - o que não pode ser totalizado, claro, com este breve texto.

Um assunto recuperado por Agamben no sentido mais poético, a lingüística se faz presente principalmente na primeira parte de Infância e história e no capítulo final de Estâncias, em que Agamben faz uma retomada de Émile Benveniste - uma de suas referências - e de certo pensamento estruturalista e pós-estruturalista. Em Infância e história, especificamente, Agamben comenta sobre uma possível destruição da experiência na vida moderna. No entanto, permite-se pensar que não há destruição da experiência para haver o inexperiancível, e sim outro tipo de experiência, talvez mais lingüística ou talvez mais profana. A destruição não seria "morada do homem", mas a sua saída. Como negar que a experiência de Baudelaire é existencial e empírica, à medida que é lingüística? Nesse ponto, Agamben ainda tem uma certa posição improfanável. Agamben recupera a idéia de que o sujeito da experiência era o "senso comum" , presente em cada indivíduo, e o sujeito da ciência é o "nous", ou o intelecto agente, que é separado da experiência 'impassível` e 'divina'".[2] Ou seja, "inteligência (nous) e alma (psyché) não são, de fato, para o pensamento antigo [...], a mesma coisa, e o intelecto não é, como nós estamos acostumados a pensar, uma 'faculdade' de alma: ele não lhe pertence de modo algum, mas 'separado, impermisto, impassível', segundo a célebre fórmula aristotélica, comunica-se com ela para realizar o conhecimento".[3] Em busca da certeza, nos diz Agamben, a ciência moderna abole tal separação e "faz da experiência o lugar [...] do conhecimento".[4] Agamben oferece como solução que o velho sujeito da experiência se duplicou, exemplificando Dom Quixote como velho sujeito do conhecimento e Sancho Pança como sujeito da experiência.

Com isso, o filósofo italiano deseja afirmar que "é na linguagem e através da linguagem que o homem se constitui como sujeito".[5] Assim, a subjetividade "nada mais é do que a capacidade do locutor de pôr-se como um ego, que não pode ser de modo algum definida por meio de um sentimento mudo, que cada qual experimentaria da experiência de si mesmo, nem mediante a alusão a qualquer experiência psíquica inefável do ego, mas apenas através da transcendência do eu lingüístico relativamente a toda possível experiência".[6] Reavaliando Kant - um dos filósofos a que recorre -, Agamben escreve: "O transcendental não pode ser o subjetivo: a menos que o transcendental signifique simplesmente 'lingüístico'".[7] Daí Agamben procurar elementos que possam explicar que o sagrado está ligado ao profano, ou seja, o artista visto como uma espécie de representante da humanidade é uma figura do passado, e a linguagem de cada um pertence à comunidade com quem convive, observando que a infância instaura na linguagem a cisão entre língua e discurso, entre o semiótico e o semântico, entre o sistema de signos e o discurso. O sujeito da linguagem é fundamento da experiência e do conhecimento, e a origem transcendental da linguagem se localiza, portanto, na infância do homem, a pura língua do discurso humano. A idéia de uma infância como uma "substância psíquica" pré-subjetiva revela-se "um mito, como aquela de um sujeito pré-lingüístico. Isso porque, na visão de Agamben, infância e linguagem estão intrinsecamente ligadas, cada uma remete uma à outra em um círculo no qual a infância é a origem da linguagem e a linguagem a origem da infância",[8] isto é, a infância em questão  não assinala apenas um período, mas coexiste originalmente com a linguagem, "constitui-se aliás ela mesma na expropriação que a linguagem dele efetua, produzindo a cada vez o homem como sujeito".[9] A infância seria o inefável, a transcendência, o que ocorre nessa passagem do signo ao discurso.

Essa infância é construída, portanto, pela linguagem e por aquilo que Agamben chama de "Voz" que delineia o indivíduo. Por isso, para Agamben, em A linguagem e a morte, a Voz (com maiúscula para distingui-la da voz como mero som) "tem o estatuto de um não-mais (voz) e de um não-ainda (significado)", constituindo uma "dimensão negativa",[10] produzindo-se por meio dos schifters de Jakobson e os "índices de enunciação" de Benveniste - produzindo-se o conhecimento da linguagem. Há uma certa crítica a Derrida, quando Agamben afirma que a metafísica não é simplesmente o primado da voz sobre a grammá (a letra), pois se a metafísica indica um origem indica imediatamente evoca uma Voz suprimida, negativa. Para Agamben, a voz (phoné) é, antes de tudo, a representação da morte - o que, para Derrida, seria basicamente a vida em detrimento do texto, da escrita, o que ele trabalhou em A farmácia de Platão (ensaio de La dissémination, publicado no Brasil como livro independente). Nesse sentido, o homem é um falante, pelo qual se constrói o que diz, ou seja, a morte.

Segundo Agamben, vivemos hoje "naquela extrema fímbria da metafísica em que esta retorna - como niilismo - ao próprio fundamento negativo".[11] O pensador lembra que, para Hegel, a linguagem "não era simplesmente a voz do homem, mas o articular-se desta em 'voz da consciência' através de uma Voz da morte".[12] A Voz faz parte do Dasein heideggeriano: aproxima-se intimamente da morte ou seja, ela pensa a morte, daí o "pensamento da morte" ser "o pensamento da Voz",[13] e esta se converte sempre em negativo do Ser, na visão de Agamben, de Hegel a Heidegger. "Ter experiência da morte como morte significa, efetivamente, fazer experiência da supressão da voz e do surgimento, em seu lugar, de outra Voz [...] que constitui o originário fundamento negativo da palavra humana".[14] (Há um motivo para esses filósofos lhe servirem de referência: Agamben assistiu aos seminários de Martin Heidegger na Alemanha, em Le Thor, entre 1966 e 1968, sobre Heráclito - que também surge ao longo de sua exposição filosófica - e Hegel.) Agamben prossegue, afirmando que "colher a Voz pode significar apenas pensar além destas oposições: logo, pensar o Absoluto", pelo qual a filosofia "pensa o próprio fundamento negativo".[15] Segundo ele, de forma poética, "A filosofia é esta viagem, este retorno, a partir de si para si mesma da palavra humana que, abandonando a própria morada habitual da voz, se abre ao terror do nada e, simultaneamente, à maravilha do ser e, transformada em discurso significante, retorna afinal, como saber absoluto, à Voz",[16] constituindo a epistemologia negativa e uma reinterpretação da própria metafísica.

Agamben - como Derrida, ao contrário de Habermas - entende como vital a ligação entre filosofia e literatura. Em vários momentos, Agamben entrelaça seus argumentos sobre a negatividade a uma concepção poética: "Antes de mais nada, a poesia parece assumir desde sempre aquele caráter - simultaneamente universal e negativo - do "este", cuja descoberta orientara a crítica hegeliana da certeza sensível".[17] A partir de imagens e da construção lingüística do poema "O infinito", de Leopardi, por exemplo, ele escreve: "A palavra poética acontece, pois, de tal modo que o seu acontecimento escapa já sempre em direção ao futuro e ao passado, e o lugar da poesia é sempre um lugar de memória e repetição".[18] Desenha-se  uma convergência entre filosofia e poesia: numa espécie de hermenêutica, o filósofo avalia que a experiência poética da dicção - com seu trabalho por meio dos schifters da linguagem - coincide com a "experiência da linguagem da filosofia".[19] Aliás, adverte Agamben, "a poesia - toda poesia - contém, aliás, com respeito a esta, um elemento que já adverte sempre quem a escuta ou repete de que o evento de linguagem em questão já foi e retornará infinitas vezes",[20] rememorando também a concepção de "musa" para os gregos, que implicava a experiência da "inapreensibilidade do lugar originário da palavra poética".[21] A filosofia teria nascido como tentativa de "liberar a poesia da sua ' inspiração'", e consegue reter a Musa, para fazer dela, "como ' espírito', o seu próprio sujeito; mas este espírito (Geist) é, precisamente, o negativo (das Negative), e a ' voz mais bela' [...], que, segundo Platão, compete à Musa dos filósofos, é uma voz sem som".[22]  É possível notar, nessa concepção de Agamben, uma tendência novamente a visualizar a infância, a negatividade do discurso.

De modo geral, A linguagem e a morte, mesmo com suas referências literárias, é o livro de Agamben - pelo menos entre os lançados no Brasil - mais filosófico, mesclando idéias de Hegel e de Heidegger numa direção até então não explorada nem por nomes que se dedicaram a estudar tais autores, como Derrida e Jürgen Habermas. Além disso, subjacente, há uma concepção religiosa que apresenta pontos de contato com vários momentos de Profanações e de Estâncias. Trata-se, além disso, de um texto fluido, mesmo que longo, que vai apresentando os pressupostos com enorme domínio, dispondo as referências - a Aristóteles e a Platão, por exemplo, com várias citações em grego - sem cansar.

No entanto, é no ensaio "Programa para uma revista", ainda de Infância e história, que Agamben compõe a idéia - igual à de A linguagem e a morte -: o de que a poesia ajuda a solidificar uma compreensão sobre essa passagem do ser humano para a linguagem. Nesse sentido, percebe-se que sua interpretação sobre Leopardi e de autores gregos (em A linguagem e a morte), Baudelaire, Dante e Cavalcanti (em Estâncias) e da poesia moderna (em Infância e história), mostra um autor extremamente plural e voltado para o sentido da ética literária como um posicionamento poético, o que ele vai explorar em Homo sacer. Agamben, nesse sentido, é o oposto do Platão de A república, preocupado com a sanidade das pessoas em detrimento dos artistas e, sobretudo, dos poetas, sendo possível perceber que hoje a poesia é também uma espécie de homo sacer, que deve ser morta sem piedade em praça pública. Agamben, no entanto, prova que a perseguição é nefasta: não se pode, sobretudo, perseguir a linguagem, inerente ao ser humano. Ele é uma prova cabal de que a lingüística, cada vez mais dominada por elementos afastados do poético, guarda o caminho para que a literatura também se manifeste por uma ética do discurso.

Nesse sentido ainda, sobre o programa de uma revista, Agamben ainda assinala: "Um dos princípios pragmáticos aos quais a revista deverá ater-se, retomando a definição de Vico que inclui entre os filólogos 'poetas, historiadores, oradores, gramáticos', será o de considerar exatamente no mesmo plano disciplinas crítico-filológicas e poesia".[23] Mas não se trata, segundo Agamben, de fazer com que os poetas passem a fazer obras de filologia e os filólogos a escreverem poesia, "mas de se colocarem ambos em um lugar em que a fratura da palavra que, na cultura ocidental, divide poesia e filosofia torne-se uma experiência consciente e problemática, e não uma canhestra remoção".[24] Agamben pede, assim, que pensemos "não somente em autores como Benjamin ou Poliziano, Calímaco ou Valéry, este tão difícil de classificar em uma categoria precisa, mas também naqueles poetas, como Dante e o autor de Zohar, Hölderlin e Kafka, que, em situações culturais diversas, fizeram da defasagem entre e verdade e transmissibilidade a sua experiência central. E, nesta perspectiva, é à tradução, considerada como auto crítico-poético por excelência, que deverá ser dada uma atenção toda especial".[25] Sob um ponto de vista utópico, é proposto o projeto de uma "disciplina de interdisciplinaridade", "na qual convirja, com a poesia, todas as ciências humana, e cujo fim seja aquela 'ciência geral do humano' que de vários cantos se anuncia como a tarefa cultural da próxima geração".[26]

Em Profanações, com textos curtos, alguns quase em forma de fragmentos e de aforismos - no melhor estilo dos textos de Schlegel e Novalis, do romantismo de Iena, mas como uma visão menos ideológica, não percebendo o artista como salvador da humanidade -, Agamben continua a linha de Walter Benjamin e Michel Foucault ao propor a recuperação de uma modernidade situada na saturação de uma certa paisagem romântica.

Agamben convida a profanar o sagrado, analisando a relação entre religião e capitalismo.  Para ele, o profano é o que é restituído ao mundo dos homens, ao uso comum. Agamben observa que religio não deriva de religare (o que liga e une o humano e o divino), mas de "relegare", indicando a "atitude de escrúpulo e de atenção que deve caracterizar as relações com os deuses, a inquieta hesitação (o "reler") perante as formas - e as fórmulas - que se devem observar a fim de respeitar a separação entre o sagrado e o profano". Desse modo, "religio" não é o que une homens e deuses, "mas aquilo que cuida para que se mantenham distintos",[27] havendo uma ligação entre as esferas do sagrado e do jogo, trazendo à cena o pensamento infantil. O jogo traz algo de sagrado, mas não sai da esfera do profano, o que remete à ligação e a constituição do homem na infância - na discussão proposta em Infância e história. Agamben avalia, baseado em Benjamin, que o capitalismo não representa apenas uma "secularização da fé protestante", mas ele mesmo é um "fenômeno religioso, que se desenvolve de modo parasitário a partir do cristianismo".[28] No lugar da religião, que havia uma passagem do sagrado para o profano e do profano para o sagrado, o capitalismo institui o vazio do consumo, realizando a "pura forma da separação, sem mais nada a separar":[29] a religião capitalista "está voltada para a criação de algo Improfanável".[30] Ou seja, ela almeja o consumo absoluto, e, perdendo-se no vazio, faz com que o ser humano não consiga profanar esse mesmo consumo, e não se separe da idéia de que esse consumo é um fetiche.

A avaliação que Agamben faz da religião capitalista guarda correspondência direta com a seção "No mundo de Odradek: a obra de arte frente à mercadoria", de Estâncias, em que é traçado uma ponte entre Marx e Baudelaire, com seu fetiche pela mercadoria. Para Agamben, esse fetiche leva à irrealidade.

Para isso, Agamben parte de uma interpretação de Freud sobre o fetiche: a negação do menino da ausência do pênis materno, e a sua negação dessa ausência, cria uma analogia para se estabelecer uma ponte com o objetivo da poesia moderna. O objeto-fetiche é algo concreto, mas, como "como presença de uma ausência", é, ao mesmo tempo, "imaterial e intangível, por remeter continuamente para além de si mesmo, para algo que nunca se pode possuir realmente",[31] sendo que o valor de uso não é maior, hoje, do que o valor de troca, o que mostra a inapreensibilidade do objeto: a sua presença-ausência. Sob o ponto de vista poético, a razão é que tornar a obra num fetiche implica aceitar a sua própria intocabilidade. No entanto, é preciso profaná-la, ou seja, transformá-la em mercadoria: a poesia, sob esse ângulo, passa a ser utilizada não mais como arte ou como mercadoria, mas como uma espécie de mistura, em que as duas se anulam.

Para Agamben, a grandeza de Baudelaire foi ele transformar em mercadoria e em fetiche a própria obra de arte. A partir da idéia de que a poesia não tem outro fim senão ela mesma, Baudelaire imprime à obra de arte o valor de troca que possui a mercadoria. Desse modo, ele impôs à obra um caráter de mercadoria absoluta, cujo valor seria a inutilidade, ou seja, o Improfanável. A mercadorização absoluta da obra de arte.

A lição que Baudelaire deixou à poesia moderna "é que o único modo em superar a mercadoria consistia em levar ao extremo suas contradições, a ponto de ela acabar abolida enquanto mercadoria, com o objetivo de devolver o objeto à sua verdade",[32] e, a partir daí, Agamben avalia que como o sacrifício "restitui ao mundo sagrado o que o uso servir degradou e tornou profano, assim também, através da transfiguração poética, o objeto é arrancado tanto da fruição quanto da acumulação, e restituído ao seu estatuto original".[33] Esse estatuto serve da própria descoberta da linguagem. Assim, "Se é só através da destruição que o sacrifício consagra, assim também é só através do estranhamento que a torna inapreensível, e através da inteligibilidade e da autoridade tradicionais, que a mentira da mercadoria se transforma em verdade. Esse é o sentido da teoria da art pour l'art, o que de modo algum significa gozo da arte por si mesma, mas destruição da arte por obra da arte".[34]

O equívoco de Agamben parece ser de que a condição para esta tarefa sacrifical é o artista levar às últimas conseqüências o "princípio da perda e do desapossamento de si".[35]  Agamben, a partir daí, incursiona constantemente na impessoalidade de fundo romântico, quando afirma: "Da mesma maneira que a obra de arte deve destruir e alienar a si própria para se tornar uma mercadoria absoluta, também o artista-dandy deve transformar-se em cadáver vivo, tendendo constantemente para um outro, uma criatura essencialmente não-humana e anti-humana".[36]  Segundo ele, "Depois de ter transformado a obra em mercadoria, o artista joga agora também sobre si a máscara desumana da mercadoria e abandona a imagem tradicional do humano. O que os críticos reacionários da arte moderna esquecem, quando denunciam sua desumanização, é que o centro de gravidade da arte nunca residia, no caso das grandes épocas artísticas, na esfera humana"[37] - uma afirmação que pode ser contestada pela própria descoberta da linguagem proposta por Agamben em seus textos. Com a poesia moderna, há a novidade de que, "diante de um mundo que glorifica o homem na mesma proporção em que o reduz a objeto, ela desmascara a ideologia humanitária [...]".[38] Agamben toma o caminho da impessoalidade no sentido do sublime, o que é sempre um risco, quando afirma que, por meio de autores como Apollinaire, Rimbaud, Lautréamont, Mallarmé, Matisse, Montale e Celan, a poesia moderna "sinaliza para essa região inquietante, na qual já não existem nem homens nem deuses, e onde, como um ídolo primitivo, só se eleva incompreensivelmente além de si mesma uma presença que é, ao mesmo tempo, sagrada e miserável, fascinante e tremenda, uma presença que carrega consigo, contemporaneamente, a fixa materialidade do corpo morto e a fantasmática inapreensibilidade do ser vivo".[39] Ora, o que parece desumano ainda é lingüístico e profano. Daí, neste caso, Agamben se contradizer, quando afirmar que há uma destruição da experiência na poesia moderna. A experiência, como vemos em Infância e história, continua sendo a descoberta constante da linguagem.

Em Estâncias, além disso, Agamben tenta desenhar - no que remete novamente a Walter Benjamin, em sua Origem do drama barroco alemão - novamente o panorama da melancolia. Para isso, parte de um clássico texto de Freud, "Luto e melancolia". Nesse ensaio referencial, Freud observa - e algumas idéias são recuperadas por Agamben - que, para algumas pessoas, o luto se dá como reação à perda de alguém querido ou de algum objeto (um livro esquecido na infância, um lugar não mais visitado), ou de alguma abstração (como o "país", a "liberdade" ou o "ideal de alguém"), e a melancolia age às vezes em razão dos mesmos fatores, com a diferença de que se torna sintomática, da qual o sujeito tem dificuldades de se livrar, vivendo-a continuamente.[40] Porém, Freud se pergunta por que às vezes o sujeito consegue superar a perda de alguém que lhe é estimado, mas nunca consegue se livrar de um sentimento de melancolia. É que, para Freud, o objeto perdido é como um sentimento recalcado, dando-se no inconsciente no sujeito e recaindo sobre o ego,[41] pois a "apresentação (da coisa) inconsciente do objeto foi abandonada pela libido"[42] e, se a libido é abalada, a perda do objeto se transforma na perda do próprio ego, lembrando-se, aqui, que, nas categorias de Lacan, o Imaginário tem muitos elementos daquele.

Agamben realiza essa recuperação do conceito de melancolia - sobretudo, sua concepção de sentimento condenatório, pela religião, que a via como a acídia, o enfraquecimento da alma e uma fuga ao divino - como que para estabelecer um diálogo com o conceito de "fantasma", na análise que faz, sobretudo, da Vita nova de Dante. Nesse misto entre poesia e prosa, o poeta esquece que nunca possui Beatriz - mas lamenta sua perda. Essa perda do "fantasma" que nunca possuiu indica uma melancolia particular, uma imagem congelada remete aos textos de Agamben sobre a fotografia e, sobretudo, ao texto "O ser especial", de Profanações, em que retoma a idéia, provinda de Dante e de Cavalcanti, de que o amor é como um "acidente em substância" - imagem, aliás, de Vita nova. A imagem - ou o fantasma da melancolia - "é gerada a cada instante de acordo com o movimento ou a presença de quem a contempla".[43] Para o filósofo italiano, "Entre a percepção da imagem e o reconhecer-se nela há um intervalo que os poetas medievais denominavam amor".[44] Ao se prolongar o intervalo "entre a percepção e o reconhecimento, a imagem é interiorizada como fantasma, e o amor recai na psicologia".[45] O "fantasma" remete à melancolia, que, por sua vez, indica a voz da morte, negativa, de  A linguagem e a morte.

Agamben investiga constantemente a infância e, através da voz impressa, relembra a imagem do "fantasma" dos poetas medievais, no que se liga a ensaios de Estâncias e aos shifters de Jakobson ou os "índices de enunciação" de Benveniste, em A linguagem e a morte e Infância e história: "A descoberta medieval do amor por obra dos poetas provençais e estilnovistas é, deste ponto de vista, a descoberta de que o amor tem como objeto não diretamente a coisa sensível, mas o fantasma; é, portanto, simplesmente a descoberta do caráter fantasmático do amor. Mas, dada a natureza medial da fantasia, isto significa que o fantasma é, também, o sujeito e não simplesmente o objeto do eros.".[46] Diante disso, não há um contato com a corporeidade, mas com a imagem, uma "nova pessoa", "na qual se abolem os confins entre subjetivo e objetivo, corpóreo e incorpóreo, o desejo e seu objeto".[47] Com esta fantasia, surge o "espírito fantástico" A noção de fantasia, sob esse aspecto, é também lembrada num momento de Infância e história - indicando o inexperenciável.

O conceito que perpassa essa idéia de infância - ou seja, faz uma convergência - é o de história, que Agamben reconhece a partir de "Sobre o conceito de História", de Benjamin, contrapondo-o aos conceitos de história de Aristóteles e Marx. Giorgio Agamben, analisa, parece-me que no mesmo sentido de Vattimo, que a "história, na realidade, não é, como desejaria a ideologia dominante, a sujeição do homem ao tempo linear contínuo, mas a sua liberação deste: o tempo da história é o cairós em que a iniciativa do homem colhe a oportunidade favorável e decide no átimo a própria liberdade. Assim como ao tempo vazio, contínuo e infinito do historicismo vulgar deve-se opor o tempo pleno, descontínuo, finito e completo do prazer, ao tempo cronológico da pseudo-história deve-se opor o tempo cairológico da história autêntica".[48] Embora talvez Agamben não se alinhe com Vattimo, há em ambas as posições a idéia de que o tempo histórico se dissocia da idéia de que ele é contínuo, de um início até um fim.

Se Vattimo separa esta idéia da modernidade, situando-o num universo "pós", Agamben ainda sustenta mais o raciocínio de que há uma verdadeira historicidade, que está intrisecamente ligada à concepção marxista. Lembra, por exemplo, que para Heidgger, o Ser-aí (Dasein) se fundava na negatividade, na morte, e o filósofo alemão afirmava que a historiografia marxista ainda era superior a outras existentes. O foco dado por Heidegger é o seguinte: "a experiência não é mais o instante pontual e inaferrável em fuga ao longo do tempo linear, mas o átimo da decisão em que o Ser-aí experimenta a própria finitude, que a cada momento se estende do nascimento à morte [...] e, projetando-se além de si no cuidado, assume livremente como destino a sua historicidade originária".[49] O ser humano não "cairia" no tempo, mas sim existiria como "temporalização originária". Em Marx, a história não é mais determinada, como em Hegel, pela negação da negação, mas a partir da "praxis", da atividade concreta como essência e origem do homem.[50] A história não seria mais a "alienação do homem" - também como em Hegel -, mas a sua origem e natureza, o "primeiro ato histórico", "o ato de origem da história, compreendida como o tornar-se natureza, para o homem, da essência humana e o tornar-se homem da natureza".[51] Para Agamben, o homem moderno, para Agamben, ainda está situado entre o "seu ser-no-tempo, como fuga inaferrável dos instantes, e o próprio ser-na-história, entendido como dimensão original do homem",[52] e a duplicidade da concepção moderna de história - como realidade sincrônica e realidade diacrônica, que não coincidem temporalmente - acaba exprimindo a "impossibilidade do homem, que se perdeu no tempo, de apoderar-se da própria natureza histórica"[53] - e, pode-se afirmar, a impossibilidade de encontrar uma voz e uma linguagem que não estejam em constante perda e negatividade.

O que se destaca em Agamben é sua predileção por uma certa infância da linguagem, idéia extraída não só dos românticos e dos seus sucessores - Benjamin afirmava que o Adão havia sido o primeiro filósofo, e há na sua figura uma representação dessa infância a que Agamben se refere -, que coloca a vida como um jogo entre rito e linguagem. No último texto de Profanações, em que ganha relevo essa visualização benjaminiana, a profanação é vista como uma colocação dessa linguagem em plano comum. Não deixa de ser uma obsessão de Agamben, pois, em Infância e história, ele já recorria à essa infância da linguagem, mesmo no homem adulto, e em A linguagem e a morte, em que a voz é a representação negativa da morte, baseado numa leitura de Heidegger e Hegel. Mas se para Heidegger a metafísica não acaba - como propôs seu continuador direto Derrida -, em Agamben ela se confunde à própria linguagem. É um tanto paradoxal que o mesmo autor que propõe um autor mais ligado à construção da linguagem, em Infância e história, fale, em Profanações, da figura do Gênio, que traria aquela impessoalidade apregoada por Schlegel e Novalis, entre outros românticos, tributária à concepção do sublime. No entanto, não é essa a idéia de Foucault, em que Agamben se baseia para produzir o texto "O autor do gesto". O eu impessoal de Foucault esconde uma intertextualidade, na qual o próprio Agamben se insere. Ora, Agamben não é um gênio, e seus textos são tributários da própria tradição que ele quer levar adiante. Do mesmo modo, a idéia de "infância da linguagem", embora poética, nunca chega a se concretizar, pois a modernidade é o período em que mais transparece a experiência negativa do autor, aquela que Agamben estuda como "voz" da morte em A linguagem e a morte. Logo, a experiência moderna não é impessoal como a romântica; pelo contrário: o panorama em que está inserida mostra a superação dessa idéia. Deixando-se de lado esse detalhe, a obra de Agamben é uma das poucas, no cenário contemporâneo, que convidam à reflexão.

O discurso de Agamben se situa num ponto que navega entre a infância e o que resta da infância no universo adulto. Para ele, a filosofia é um jogo de armar, explorando como Benjamin, o universo infantil. O adulto, para Agamben, perdeu a magia do rito, da magia, do profanável - sobretudo quando se entrega ao capitalismo. Saindo desse universo, parece restar o juízo final que Agamben enxerga nas fotografias ou na exploração da tragédia, como avalia em "O dia do juízo": "A fotografia é para mim, de algum modo, o lugar do Juízo Universal; ela representa o mundo assim como aparece no último dia, no Dia da Cólera";[54] "Graças à objetiva fotográfica, o gesto agora aparece carregado com o peso de uma vida interior; aquela atitude irrelevante, até mesmo boba, compendia e resume em si o sentido de toda uma existência."[55]  Toda essa remissão à infância é trabalhada com fôlego em Infância e história, em ensaios como "O país dos brinquedos" e "Fábula e história"; em ensaios como "Magia e felicidade", "Genius" e "Os ajudantes", de Profanações. Nesse sentido, Agamben é um filósofo da infância, como se apresentou Benjamin em alguns de seus textos, a exemplo de "Livros infantis antigos e esquecidos", "História cultural do brinquedo" e "Brinquedo e brincadeira. Observações sobre uma obra monumental",[56] os quais o italiano explora e complementa. A infância, afinal, é o início da profanação da linguagem, ou seja, de sua descoberta, principalmente poética. Afinal, diz Agamben, " a linguagem é nossa voz, a nossa linguagem. Como agora falas, isto é a ética".[57] E a infância, sem dúvida, carrega o sentido de toda uma existência.

 

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André Dick nasceu em Porto Alegre (RS), em 1976. Publicou os livros de poesia Grafias (2002) e Papéis de parede (2004). Organizou, com Fabiano Calixto, o livro A linha que nunca termina - pensando Paulo Leminski (2004). É doutor em Literatura Comparada pela UFRGS.

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Leia também poemas de André Dick e ensaios do autor sobre Augusto de Campos, Paulo Leminski,  o Jardim de Camaleões, de Claudio Daniel, João Alexandre Barbosa e Carlos Drummond de Andrade.

 

 


 

[1] Destacam-se as traduções excelentes desses livros: as de Selvino José Assmann para Profanações e Estâncias, e as de Henrique Burigo para A linguagem e a morte e Infância e história. As de Burigo, por exemplo, contêm glossários apresentado o significado termos latinos e gregos utilizados por Agamben. A tradução de Profanações, por sua vez, apresenta um índice dos principais nomes e termos citados ao longo do livro, feito por Ivana Jinkings e Selvino J. Assmann.

[2] AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: a destruição da experiência e a origem da história. Trad. de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005, p. 36.

[3] Ibidem, p. 27

[4] Ibidem, p. 28.

[5] Ibidem, p. 56.

[6] Ibidem, p. 56.

[7] Ibidem, p. 58.

[8] Ibidem, p. 59.

[9] Ibidem, p. 59.

[10] AGAMBEN, Giorgio. A linguagem e a morte: um seminário sobre o lugar da negatividade. Trad. de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006, p. 56.

[11] Ibidem, p. 74.

[12] Ibidem, p. 76.

[13] Ibidem, p. 82.

[14] Ibidem, p. 118.

[15] Ibidem, p. 126.

[16] Ibidem, p. 127.

[17] Ibidem, p. 104.

[18] Ibidem, p. 105.

[19] Ibidem, p. 106.

[20] Ibidem, p. 106.

[21] Ibidem, p. 107.

[22] Ibidem, p. 108.

[23] AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: a destruição da experiência e a origem da história. Trad. de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005, p. 166.

[24] Ibidem, p. 166.

[25] Ibidem, p. 166.

[26] P. 166.

[27] AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Trad. e apres. Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 66.

[28] Ibidem, p. 70.

[29] Ibidem, p. 71.

[30] Ibidem, p. 71.

[31] AGAMBEN, Giorgio. Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Trad. de Selvino José Assmann. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007, p. 62.

[32] Ibidem, p. 84.

[33] Ibidem, p. 84.

[34] Ibidem, p. 85.

[35] Ibidem, p. 85.

[36] Ibidem, p. 85.

[37] Ibidem, p. 86.

[38] Ibidem, p. 86.

[39] Ibidem, p. 86-87.

[40] FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: _______. Obras psicológicas de Sigmund Freud - Vol. XIV (1914-1916). Tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 249.

[41] Ibidem, p. 254.

[42] Ibidem, p. 261.

[43] AGAMBEN, Giorgio. Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Trad. de Selvino José Assmann. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007, p. 51.

[44] Ibidem, p. 53.

[45] Ibidem, p. 53.

[46] AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: a destruição da experiência e a origem da história. Trad. de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, p. 35.

[47] Ibidem, p. 35.

[48] Ibidem, p. 128.

[49] Ibidem, p. 125-126.

[50] Ibidem, p. 121.

[51] Ibidem, p. 121.

[52] Ibidem, p. 121.

[53] Ibidem, p. 121.

[54] AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Trad. de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 27.

[55] Ibidem, p. 28.

[56] Cf. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre Literatura e História da Cultura. Trad. Sergio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, vol. I, p. 235-253.

[57] AGAMBEN, Giorgio. A linguagem e a morte: um seminário sobre o lugar da negatividade. Trad. de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006, p. 147.

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