ARTE
DE ENLOUQUECER CRISTAIS
Claudio Daniel
Víctor
Sosa (Uruguai, 1956) é um poeta capaz de construir estranhas
arquiteturas verbais, alucinando o idioma. Seu meticuloso
trabalho com a metáfora parece aproximá-lo do surrealismo
e do neobarroco, numa primeira leitura de sua escrita transtornada.
Porém, o tráfico de estilemas e códigos do imaginário, em
sua poesia (que navega entre símbolos e paisagens orientais,
mas também nas tradições místicas e poéticas do Ocidente,
na alquimia das vogais de Rimbaud e no mergulho em cenários
devastados de nossa triste época) não se resume a poucos pontos
luminosos. A experiência vital, a pulsação do agora, dos movimentos
contínuos do ser no tempo, está gravada (ou grafada) em suas
linhas e estrofes, numa consciente mescla de sensação, onirismo
e escritura: arte mandálica, que combina e transfigura cores
e elementos geométricos em camadas de som e sentido. Um poeta
raro, que não se satisfaz com o olhar fotográfico, imediato
e conciso da aparência dos fenômenos. Seu jorro verbal, caudaloso
e multifacetado, sem economia do obscuro e do paradoxal, indica
uma visão da realidade como algo que não se reduz à simples
montagem de um quebra-cabeças de poucas peças. Nada é tão
linear, tão lógico e previsível como a crônica de jornal.
A Natureza, que criou o lagarto e a vulva, os cristais e o
caramujo, a lepra e a madrepérola, é uma deusa bizarra e caprichosa;
e o poeta, seu sacerdote, por dever de ofício e devoção à
deidade, não pode fazer por menos. Limitar-se à contemplação
rotineira das coisas, longe de ser uma postura realista, conduz
a um afastamento do "real", esse ente metafísico que não se
distingue, em seu significado mais profundo, da mente e do
universo.
A
concepção do poeta como um pequeno deus ou taumaturgo, expressa
pelo chileno Vicente Huidobro, sem dúvida está presente nas
insólitas partituras de Víctor Sosa desde o seu livro de estréia,
Sujeto Omitido (1983),
até o mais recente, Mansão
Mabuse (2003), perfazendo vinte anos de jornada criadora.
Cada um de seus livros, porém, tem o sabor de ser o primeiro,
de mostrar um novo enfoque ou experiência, de tramar um outro
jogo com os vocábulos. Sunyata (1992) traz poemas breves que recordam pinturas chinesas ou
bordados em seda (sem omitir, na aparente delicadeza, a brutalidade
semântica e referencial que faz contraponto com a busca do
maravilhoso). No poema
(modus vivendi)
o poeta nos diz, com a síntese abrupta de um haicai: "empinado no galho; retráteis / as garras. / pulsão de sangue / ante sua presa
o tigre / salto e sobressalto: uma / única chispa; imóvel
/ anoitece", que parece dialogar com o nosso Sousândrade ("num
relâmpago o tigre atrás da corça"). Nesse mesmo volume, no
entanto, surge, imprevisto, um poema de outro fôlego, beirando
a prosa e o excêntrico discurso visionário: "mitologia do
Ocidente: mitologia da paixão / um homem / clama a Deus por
sua alma que arde: Santo Agostinho e as / trapaças da dúvida / Nosferatu senta-se com sua futura / vítima lamentando-se por séculos
de solidão". Esta peça (bem como outras composições do final
do volume) anuncia a experiência de títulos posteriores, e
em particular Dizer é Abissínia (1991), onde o poema longo se impõe (não raro como seqüência
de breves imagens, mas também como tecido contínuo, uníssono).
Os versos (ou antiversos?) deste livro, tramados como
jogos de metamorfoses, brincam com a aproximação e distanciamento
entre palavra e coisa, conceito e representação, num fascinante
esconde-esconde que revela, além da veia taumatúrgica, a
crescente ausência de significados de nossa época: "diga-o
assim, sem baixar muito a voz - e veja / - veja com os olhos
da voz - como o céu / a desenha, a fixa em uma nuvem fugaz
e a dissolve / nessa alegre tempestade que estala".
A
sensação de esvaziamento do discurso (sunyata,
em sânscrito, significa Vazio), que corresponde à perda
de sentido das utopias passadas, trazendo inevitável solidão
espiritual, atinge seu ponto máximo em Os
Animais Furiosos (2003). Neste poema perturbador, dividido
em seções (como os movimentos de uma peça para concerto),
o poeta erige um longo bestiário, que tem como prelúdio certa
enumeração caótica de animais possíveis ou imaginários, numa
prosa permeada de poesia que recorda os inventos de Gertrude
Stein:
"os animais furiosos; os animais mansos; os animais
anômalos; os animais carnívoros; os animais anfíbios; os animais
articulados; os animais inarticulados; os animais microscópicos;
os animais letais". Logo, porém, o poeta muda de tom, intercalando
uma longa seqüência de versos para depois alcançar uma deliberada
sinfonia de ruídos: letras e sílabas dispostos de maneira
geométrica no espaço em branco do papel, sinalizando a abstração
e a lacuna, e logo a abolição da linguagem (com ressonâncias
não do Lance de Dados
de Mallarmé, mas dos cantos finais de Altazor,
de Huidobro).
Destruição
do signo e do significado, mergulho no Absoluto, que é também
Ausência. Tornar a escrita fluida e transparente como a Água
dos Tempos. Esse deslizar no grau zero da grafia, voz que
é silêncio, tem como contraparte dialética a tarefa de reordenação
da escritura, ou refundução do real pela palavra (Heidegger).
Tal é a direção (paralela) seguida em Ver
uma Luz, onde o abstrato se concretiza na formulação de
uma realidade autônoma, "com sua própria fauna e flora", no
dizer do chileno. Víctor: "Ver-te assim há que ver: / halógena
de halo e vertebrada / entre os sóis da tarde um dia. / Côncava
a tarde como côncavo / o germe do desejo no desejo do germe;
/ um inconcluso conclave de luz nos inocula / e lambe, lindo,
o lombal alazão e lindamente / ondula no dominó de teu olhar"
(aqui, em tradução de Luiz Roberto Guedes). Curiosamente,
esta composição bizarra, que resiste a qualquer tentativa
de hermenêutica, foi incluída no mesmo volume que Os Animais Furiosos, fazendo um tríptico com a jornada alucinógena
intitulada Wirikuta.
Três movimentos distintos, opostos, contraditórios, que
se completam numa unidade multipolar ou balé prismático que
nos convida a ver o mundo de maneira não rotineira e viciada.
Neste sentido, o que temos aqui não é uma elegia grave e melancólica,
mas um convite à dança, ao encantamento, à redescoberta das
palavras e do mundo. Ler e traduzir Víctor Sosa (que ora lança
uma nova e desafiadora coletânea, Mansão
Mabuse) é um fascinante desafio, que só vem explicitar
ainda mais a urgência do diálogo com a literatura experimental
de língua espanhola, possuidora de nomes fundamentais como
Eduardo Milán, Roberto Echavarren, Sílvia Guerra, Marosa di
Giorgio e Eduardo Espina (para citarmos apenas autores do
Uruguai, esse território tão próximo e tão distante de nós
brasileiros). Este livro é menos um convite que uma incitação
à descoberta - para ver
uma luz.
*
Claudio Daniel, poeta, tradutor e ensaísta, publicou,
entre outros títulos, o Romanceiro
de Dona Virgo (2004),
Figuras Metálicas
(2005) e Jardim de Camaleões,
A Poesia Neobarroca
na América Latina (2005). O autor irá lançar, pela editora
Lumme, o livro Sunyata e Outros Poemas,
primeira antologia de Victor Sosa publicada em português.
*
Leia
também uma entrevista
com Victor Sosa, um ensaio
do autor sobre as vanguardas e poemas
em espanhol e traduzidos
ao português por Claudio Daniel.
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