DIZER
É IMPOSSÍVEL, É UM DESERTO, É
ABISSÍNIA
Por Claudio Daniel
Zunái
- Você nasceu em Montevidéu, no Uruguai, mas reside há muitos
anos no México. Fale um pouco sobre a decisão de viver num
país estrangeiro e a influência dessa escolha em tua poesia.
Victor
Sosa - Cheguei ao México em 1983, proveniente da Costa Rica,
país no qual vivi por três anos. O que significa dizer que
saí do Uruguai em 1979, com a idade de 21 anos. Como aconteceu
com muitos uruguaios, minha saída ocorreu por motivos políticos.
A ditadura militar impôs, com muito sucesso, o terrorismo
de Estado e a população estava dividida em três categorias:
A) democratas; B) oposicionistas e C) subversivos. A primeira,
obviamente, catalogava os simpatizantes do regime; a segunda,
todos aqueles que tiveram alguma participação política de
esquerda, e inclusive certos representantes incômodos dos
partidos burgueses, e a terceira se referia aos guerrilheiros
(tupamaros) e aos dirigentes do Partido Comunista (tanto uns
como outros já estavam presos, assassinados ou na clandestinidade).
A mim me honraram com a categoria B. Esse aristotélico ABC
da cidadania foi o estopim para que eu escolhesse o exílio
como melhor opção.
O
exercício da poesia exige assumir, creio eu, certa atitude
de estrangeiro. A poesia tem pouco a ver com a descrição objetiva
de uma realidade (já dizia Aristóteles: "não é ofício do poeta
contar como as coisas aconteceram, mas como deveriam ou poderiam
ter acontecido"), com a noção de pátria, com os valores de
um folclore regionalista e os estereotipados clichês de hinos
nacionais e cantos à bandeira. A poesia é extraterritorial.
Sempre está em outra parte, e essa outra parte talvez se chame
linguagem. Aí se enraíza e aí radica. Quer dizer, nesse magma,
nessa ambulante condição metamórfica da língua, faz sua pátria.
Por isso - já é uma obviedade dizê-lo - a única pátria do
poeta é sua língua.
Esclarecido
o anterior, posso dizer a você que sim, claro, viver vinte
anos no México influenciou a minha poesia. Trata-se de um
país intenso, com um passado pré-colombiano que ainda está
presente nas comidas, na fala, nas maneiras de vincular-se
socialmente. Trata-se, também, de muitas culturas que coabitam
e que se hibridizam dentro do generalizado processo de globalização.
Por exemplo, em meu livro Los animales furiosos (2003)
há um poema chamado Wirikuta que narra uma experiência
pessoal com peyote no deserto mexicano e o "encontro"
com Káuyúmari, o Veado Celestial, deidade à qual rendem culto
os índios huicholes. Essa aparição foi para mim tão importante
como reveladora. Reveladora de que os símbolos não são construções
intelectuais mas verdadeiras portas de iniciação, forças vivas
que operam em algum outro plano da realidade e que, se estamos
atentos e em ótimas condições de receptividade, podem manifestar-se
a nós, podem falar conosco e, às vezes, guiar-nos até uma
compreensão mais íntegra da realidade. Porém, por outro lado,
vivo na Cidade do México, uma metrópole gigantesca, contaminada
e superpovoada, com níveis de violência alarmantes e os maiores
contrastes entre miséria e opulência, entre primeiro mundo
e terceiro mundo. Claro que isso também influi. A energia
de mais de vinte milhões de humanos lutando para sobreviver,
competindo, amando, procriando, matando, é um fenômeno um
tanto monstruoso, é como uma hiperbólica metástase da espécie
que corre a todo vapor até a autodestruição. E eu sou parte
dessa metástase, claro que isso influi em minha poesia! Talvez
daí provenham livros como Mansión Mabuse (2004) e La
saga del Sordo (no prelo), onde uma escritura voraz vai
se multiplicando, ramificando, enredando-se em sua própria
espessa textura proliferante que convida o leitor ao extravio.
Esse microbarroquismo (como o definiu o poeta Juan
Alcántara) tampouco é uma construção intelectual, é
a cifra de uma respiração, de uma pulsão de escritura que
contém em suas linhas o símbolo e o sintoma, o cifrar-se e
o decifrar-se desse perpétuo holocausto que é a vida. Agora,
que o anterior explica pouco ou nada, fica claro no fato de
que poucos ou ninguém escreve dessa maneira na Cidade do México.
As influências podem ser objetivamente deduzíveis mas a poesia,
por sorte, segue e seguirá sendo um mistério.
Qual
é a tua visão sobre a literatura mexicana?
VS
- O
México tem escritores excelentes, do nível de Rulfo - um autor
universal, na verdade um poeta inimitável da prosa latino-americana;
eu acredito que no Brasil quem mais se aproxima dessa poesia
do silêncio é o Graciliano Ramos de Vidas Secas. Depois,
Carlos Fuentes, bem ao contrário de Rulfo, homem cosmopolita,
testemunha da vida urbana e dessa classe média que, desde
os anos cinqüenta, começava a conformar-se como protagonista
de uma literatura mexicana pós-revolucionaria e vinculada
ao chamado boom latino-americano (García Márquez, Vargas
Llosa, Cortázar, Carpentier, entre outros). Juan José Arreola
é, também, um autor importante, sobretudo por esse tom de
humor e ironia borgeana que insufla seus escritos e que tem
seu melhor momento em Bestiario, publicado pela primeira
vez em 1959. Quanto aos poetas propriamente ditos,
José Juan Tablada é uma figura incontornável, o primeiro poeta
vanguardista do México, que introduziu o haiku e a poesia
japonesa na América Hispânica e experimentou com caligramas
nos mesmos anos em que Apollinaire o fez em Paris. José Gorostiza
e Xavier Villaurrutia são os poetas mais importantes dessa
geração chamada Contemporâneos, que inaugura uma poesia
da claridade, limpidez, elegância metafórica e um purismo
devedor de Valéry. Com eles e com Jorge Cuesta inaugurou-se
uma tradição crítica que se verá refletida mais tarde em revistas
literárias como Taller e Vuelta, dirigidas por
Octavio Paz. É certo que o grupo Contemporâneos teve
uma atitude antivanguardista, mas também é certo que os arautos
da vanguarda mexicana, os Estridentistas, não chegaram
muito longe no intento de renovação da poesia em seu país,
sobretudo se os comparamos com movimentos similares da América
Latina, como são o Modernismo brasileiro e o Ultraísmo argentino.
Superando o conservadorismo purista de Contemporâneos,
Octavio Paz virá insuflar ares de renovação na poesia
mexicana, primeiro com os influxos surrealistas e, depois,
com as apropriações formais da Poesia Concreta. Dois poemas
fundamentais de ambos períodos são Piedra de Sol e
Blanco. E um livro inclassificável (prosa, poesia,
diário, reflexão filosófica) e tão notável como inimitável:
El mono gramático.
A
poesia no México tem flutuado entre a renovação e a tradição,
mas o peso de Contemporâneos tem sido definitivo e
a balança foi se inclinando até uma tendência conservadora,
de pouco risco e quase nenhuma experimentação. As revistas
literárias oscilam entre a tendência light, amavelmente
pasteurizada, e a burocratizada inércia acadêmica que reitera
lugares (e autores) comuns. Um panorama bastante deprimente
onde se impõe uma simples e rasa mediocridade é o que impera.
Porém, somos realistas, não pedimos o impossível, pedimos
e esperemos que as novas gerações, ou alguém entre elas (já
que o talento não é geracional, mas individual) nos permita
mudar esta percepção da poesia contemporânea feita no México.
Em
Sunyata, você faz
referência a símbolos, imagens e conceitos da filosofia budista.
Comente um pouco esta relação com o Oriente em sua poesia.
VS
- Sim,
Sunyata (desde o próprio título, que significa vazio/pleno
em sânscrito) remete à filosofia e à estética do zen-budismo.
Quem chega ao zen - sobretudo no Ocidente - chega por um profundo
cansaço e desencanto por tudo o que foi aprendido em sua cultura,
por todas as mentiras que nos impuseram como valores universais
e, claro está, graças a uma insuspeitável necessidade interior
de reconciliação com a vida, de busca da "verdade" (essa desprestigiada
palavra) e de um propósito de autoconsciência sustentado na
honestidade consigo mesmo. Quer dizer, um ocidental chega
ao zen por reação moral, enquanto um japonês ou um coreano
chegam por tradição. Para nós o zen-budismo é - literalmente
e em todos os sentidos - outra cosa. É uma conquista,
um território espiritual e ético e, por outro lado, um cartucho
de dinamite nos aristotélicos trilhos da ferrovia racionalista.
Também foi e é uma moda, um feng shui de opereta para
legitimar associações a gregarismos sociais e participações
"inteligentes" no penthouse do intelecto. Iniciação
e simulação. Expansão da consciência e retórico travestismo
espiritual no consumismo da tão afamada "nova era".
Disse
que Sunyata remete à filosofia e à estética do zen-budismo
porque filosofia e estética, neste caso, são indivisíveis.
A elipse de significantes e a contenção enunciativa na poesia,
pintura, teatro e outras disciplinas artísticas japonesas
não são meros recursos retóricos, são transposições de estados
da mente, "vazios plenos" - como nos lavados sobre
papel e kakemonos onde um vazio-branco-brumoso ocupa
a maior parte do espaço ressaltando assim o fragmentário,
o elusivo, a indeterminação de todo o criado. Na arte do haiku,
será Bashô quem conseguiu de maneira magistral essa conjunção
de contenção e elegante ligeireza, de silêncio e estalo, de
mística naturalidade carregada de sentido. Entendemos que
isto não se alcança a partir de uma atitude intelectual, de
um simples exercício de estilo, de um momentâneo maneirismo
formal. Fundo e forma são, no zen, a mesma coisa. No entanto
- e isto é essencial -, os artistas zen não estimam a mímese
como método e desacreditam da objetividade, no sentido ocidental
do termo. Não há, não pode haver "realismo"; o transvasar
da realidade objetiva e do mundo dos fenômenos é a meta (uma
das múltiplas "metas") do zen. E isto nos leva ao tema da
linguagem, de como dizemos o mundo e como tentamos dizer aquilo
que está além do dizível e representável. A linguagem é uma
caligrafia sobre a água: é preciso aprender a ler o que nos
mostra em sua desaparição.
Em
Decir es Abisinia você faz outro tipo de experimento com a
palavra poética, inclusive praticando o poema longo.
Já no título da obra, você faz um interessante jogo
entre as idéias de palavra e silêncio (já que a Abissínia
foi o local de exílio onde Rimbaud abandonou a poesia).
Comente um pouco a tua estratégia de criação nesse
livro.
VS
- Se Sunyata foi uma tentativa de sussurro zen, um
tenso tatame de silêncios e mínimas aparições, Decir es
Abisinia marca uma quebra, uma inflexão na dicção e um
retorno a certa eloqüência. Embora as referências ao Oriente
não tenham desaparecido, estas se entremesclaram com outras:
de Rimbaud a Marlene Dietrich, de Chernobil a Kafka, de Santo
Agostinho ao Titanic. O espetáculo do mundo volta em sua perpétua
pantomima, mas volta sob a lupa ou o refletor da suspeita.
Sobretudo na primeira parte, chamada Gerundio, prevalece
uma ironia que é - como toda ironia - um desencanto, um questionamento
da equação palavra-mundo. Já não há maneira de confiar nas
palavras; é conhecido - e assumido - que o vocábulo mente.
Falar - querer falar - chega a ser insensatez, ato gratuito,
impotente artimanha ilusionista desenhada no quarto dos fundos
da vida. No entanto, não temos outro remédio que falar, que
atuar através das palavras: essas máscaras, essas marionetes
"da arte que entretecem ninharias" (Borges). O próprio
título Decir es Abisinia, diz muito a respeito. Abissínia
é o território onde Rimbaud não escreveu. Esse homem
que buscava uma língua, encontrou na Abissínia o silêncio,
ou talvez não encontrou nada, mas da mesma forma cessou de
escrever. Dizer é impossível, é um deserto, é uma enteléquia,
é Abissínia. Porém, além dessa impossibilidade e contra essa
impossibilidade é preciso dizer, é preciso navegar nesse balbucio,
é preciso inventar um mundo no qual permaneça a realidade,
embora só permaneçam ruínas, embora só permaneçam palavras.
Em Los Animales
Furiosos você reuniu três poemários: Wirikuta, que narra sua
experiência com alucinógenos; Ver uma luz, um poema lírico
longo, quase abstrato, e a peça que dá título ao volume, um
estranho bestiário de animais existentes e inventados. Como
surgiu o conceito dessa obra?
VS
- São três poemas distintos, porém - vistos já à distancia
- dialogam graças a suas diferenças. O primeiro, Wirikuta,
relata uma experiência com peyote no deserto mexicano,
uma experiência de revelação mais que de simples alucinação;
uma viagem no tempo, na geografia e na linguagem; um documento
de comunhão. Ver una luz, é um poema erótico, um diálogo
com a mulher, com o eterno feminino, e um diálogo também com
a história e a mitologia, essas duas zonas e manifestações
do desejo. Por último,
Los animales furiosos, o mais extenso e experimental
dos três poemas, é uma crítica da razão aristotélica, um questionamento
da linguagem e do ato de nomear o mundo. Por exemplo, há uma
longa lista taxonômica de animais com suas denominações científicas
que, por um lado, tende à rarefação, ao distanciar, ao demonstrar
o artificioso de toda nomeação, de todo intento de apreender
a coisa a partir do nome - essa abstração, esse valor agregado
- e, por outro, tende a substantivar o valor fonético, musical
e rítmico dos vocábulos liberados de sua função operativa
e utilitária. Outra vez o problema da linguagem em sua dupla
vertente: como possibilidade de mundo e como substituição,
como transcendência e simulacro, como sentido e como som.
A palavra é um colorido frontispício impenetrável ou é um
profundo caminho transitável? Fica a esperança que seja ambas
as coisas e que, através da poesia, possamos abolir a aparente
dicotomia e reconciliar essas duas noções do mesmo. De maneira
um tanto esquemática, poderia dizer a você que o livro Los
animales furiosos se compõe de três movimentos: um místico,
um erótico e um ético (definição, apesar de tudo, absolutamente
aristotélica); os três se interconectam e se confundem e se
fundem, tornam-se um só na diversidade inclassificável (mais
Lao Tsé que Aristóteles) do não-dito. Como surgiu a idéia
desse livro? Surgiu o livro, depois o conceito.
Você publicou um interessante
ensaio na revista mexicana Crítica onde analisa o surrealismo
e sua relação com as demais vanguardas e a herança romântica.
Qual é a sua relação com o pensamento surrealista?
VS
- Minha relação com o surrealismo é fundamental porque meu
primeiro contato realmente importante com a poesia foi através
dos surrealistas. Tinha lido os poetas espanhóis, Antonio
Machado, depois a geração de 27: Rafael Alberti, Miguel Hernández,
García Lorca (que me pareceu trivial e insuportável), Vicente
Aleixandre (que me deslumbrou por sua obscuridade) e, claro,
a poesia uruguaia: Delmira Agustini, María Eugenia Vaz Ferreira,
Sara de Ibáñez (três excelentes poetas pós-modernistas), Julio
Herrera e Reissig, entre outros (anos depois surgiram as leituras
e o descobrimento de Vallejo, Huidobro e Girondo, fundadores
da vanguarda latino-americana). Porém, foi o surrealismo que
me inoculou o veneno da poesia, sobretudo de um ponto de vista
moral. Essa idéia romântica de que fazer poesia não tem nada
que ver com a beleza, mas que é uma atitude moral, um compromisso
pessoal ante um estado de coisas (sobretudo ante à endógena
imbecilidade de uma sociedade confortavelmente alienada),
me pareceu de uma coragem e uma honestidade insuperáveis.
Uma enorme identificação moral me uniu ao surrealismo porque
- tal como Voltaire - Breton foi um moralista, um franco-atirador,
um indignado. E a indignação é necessária para não sucumbirmos ao "Grande Costume" (como dizia
Cortázar) e à grande lobotomia - cirurgicamente legal - implantada
por todos os sistemas de mando: exércitos, igrejas, legisladores,
Papas, presidentes, policiais - disparar contra o Papa, especialmente,
me parecia a ação surrealista por excelência. Essa mescla
entre Rousseau e Bakunin é própria de certos espíritos adolescentes
e o surrealismo - em sua primeira etapa heróica e ainda devedora
de Dadá - encarnava esse estado de espírito, essa implacável
ação parricida tão lúcida como lúdica, ainda que apelando
às turvas razões do inconsciente. Porém, havia outros valores
que equilibravam o caráter puramente destrutivo. Por exemplo:
o amor e a liberdade, o reconhecimento do maravilhoso-cotidiano
que abarca tanto o mundo visível como o invisível e a poesia
como expressão desse assombro. Poesia como assombro mas também
como fonte de conhecimento. Poesia como epistemologia. Todavia,
me atrai essa concepção de Tzara - em sua fase surrealista
- da poesia como "atividade do espírito" contraposta à poesia
como "meio de expressão". Creio entender que a primeira instância
estabelece um limite com o "artístico", com o cânon poético
(seja qual for este) e com o ideal do belo. A escritura automática
foi uma tentativa de abolir esse conceito de "poesia" demasiado
desprestigiado e rançoso para então, de que a escritura (poética
ou não) serviria a fins mais nobres e se diferencie da desgastada
moeda corrente da linguagem, a poética, inclusive. Esse radicalismo
é primordial; depois, como sabemos, viriam as excomunhões,
canonizações, comercializações e defecções, próprias de todo
movimento (no sentido social e também físico do termo), mas
o espírito libertário do surrealismo continua em vigor, como
um recordatório de que os mecanismos de cretinização
generalizada e de lucro imoral, de hipocrisia e de exploração
estão intactos, mais sofisticados e ainda mais eficazes do
que antes. Além
disso, o surrealismo me levou a Lautréamont (um LSD poético
e moral), a Rimbaud (outro Grande Indignado inesquecível),
às frias águas delirantes de um Raymond Roussel (Impressões
da África) e um Marcel Duchamp. A Hegel, ao Bosco, a Dante,
a Lennon, ao 68 francês, a Heráclito, a Jodorowsky, ao I Ching,
a Samuel Beckett, ao Popol Vuh. Exagero? Claro que sim! Porém, o surrealismo foi
um transbordar e um amplificar, uma anormalidade - um sair
da norma e da fôrma -, portanto, um reverendo exagero: uma
nova maneira de ver e de ler o mundo.
Além
de poeta, tradutor e ensaísta você também é pintor, tendo
participado de exposições individuais e coletivas na América
Latina, Europa e Canadá. Fale um pouco sobre esta outra faceta
de teu trabalho.
VS
- Ver e ler o mundo, para alguns, não é suficiente, daí a
necessidade de escrever e pintar. A tradição de poetas-pintores
é ampla: recordemos Michelangelo, Blake, Víctor Hugo, Strindberg,
Hesse, Cocteau, Michaux, Jean Arp - quase todos os dadaístas
e surrealistas praticaram ambas linguagens -, e depois as
confluências pictogramáticas do futurismo, do letrismo e dos
poetas concretos; sem esquecer, claro, dos antigos poetas-pintores
chineses e japoneses. Só a alienante especialização e divisão
do trabalho capitalista impede a compreensão de que isto é
o mais natural no mundo. No meu caso, depois de uma iniciação
figurativa ("Porque o imitar é co-natural ao homem desde criança",
como disse o peripatético) derrapei até uma abstração, primeiro
geométrica (sob os influxos de Kandinsky e os construtivistas
russos) e logo até um lirismo informal e gestual (sob os influxos
japoneses e do expressionismo abstrato norte-americano). Respirações,
flutuações orgânicas, "atividade do espírito" e "meio de expressão"
ao mesmo tempo. Porém, meio de expressão que exige conhecimento
desse "meio". Não se trata de passar com felicidade e sem
dificuldades da linguagem escrita à pictórica (que é cromática,
textual, objetual e mais material que o poema escrito), trata-se
de outra imersão no desconhecido, de outra iniciação em outra
região do dizer, paralela, comunicante, mas distinta da escritura
poética. Expressão e atividade do espírito que exigem uma
luta metalúrgica, um intuitivo tato que nos informe
sobre a resistência dos materiais, sobre a temperatura
e o temperamento da matéria. A pintura é coisa de engenheiros
e de pedreiros, além de ser essa "cosa mentale"
que disse Leonardo.
Você conhece a poesia
brasileira contemporânea? Qual é a sua opinião sobre ela?
VS
- Eu acredito que a poesia brasileira contemporânea vive um
bom momento e talvez seja uma das mais vitais e propositivas
do continente (incluindo todas as Américas). Minha opinião,
claro, está condicionada pela distância, pelo entorno em que
vivo e por escolhas afetivas muito pessoais, já que meu precoce
contato com a MPB, depois com o Modernismo e a Antropofagia,
e em seguida com a Poesia Concreta de Noigandres, fazem
que minha opinião a respeito seja bastante subjetiva (mas,
como dizem Deleuze & Guattari: "só quisemos citar com
amor"). Citarei com amor e quase por associação livre alguns
nomes: Augusto de Campos, Arnaldo Antunes, Glauco Mattoso,
Antônio Moura, Claudio Daniel, Ricardo Corona, Rodrigo Garcia
Lopes, Ademir Assunção, Wilson Bueno, Roberto Piva, Virna
Teixeira, Francisco dos Santos... alguns herdeiros da doxa
concreta, mas expandindo-se até outras zonas (antes não aceitas)
e ganhando inexplorados territórios para a poesia. Outros,
coloquiais, neobarrocos, surrealizantes, prosaicos
prosadores das hibridizações da língua, eletrônicos-internéticos,
minimalistas, visuais-conceituais, sonoro-musicais etc.
O notável da poesia brasileira contemporânea é, como você
diz no ensaio Pensando a poesia brasileira em cinco
atos (Coyote # 13) ao caracterizar "a poesia brasileira
dos anos 80 e 90 como uma arte mestiça, impura; não há lugar,
aqui, para uma linha de força, mas para uma pluralidade de
poéticas possíveis". Esta definição é sumamente acertada e
talvez não seja exclusiva para o caso brasileiro (a horizontalidade
de estilos e "formatos" na criação é uma benéfica característica
da pós-modernidade), mas é no Brasil que ele adquire uma maior
consistência e força em sua diversidade. Insisto em outra
particularidade admirável do Brasil: a feliz confluência de
música e poesia, essas bodas alquímicas que
se dão, pelo menos, desde a bossa nova (João Gilberto, Vinicius
de Moraes, Tom Jobim), a Tropicália (Caetano Veloso,
Gilberto Gil), até a atualidade (Arnaldo Antunes, Adriana
Calcanhotto...), coisa que dificilmente sucede nos países
falantes do espanhol. Talvez seja arriscado dizê-lo, mas creio
que essas bodas são causa e sintoma da boa saúde que
goza a poesia brasileira contemporânea.
*
Leia
também um ensaio
sobre Victor Sosa, poemas do autor em espanhol
e traduzidos
por Claudio Daniel, e também um ensaio
escrito pelo poeta uruguaio.
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