CIAO CADÁVER, UM NECROLÓGIO DA LINGUAGEM
Contador
Borges
A humanidade está doente, conforme o diagnóstico de Nietzsche. Doente de seus valores, de suas crenças. Doente por não permitir ao novo aflorar. Um homem novo capaz
de afirmar a vida e talvez com isso silenciar-se, ou melhor: deixar que a vida fale por si mesma. Eis quando o retorno manifesta seu ser, no aqui-agora, quando o instante se potencializa e a existência se revela em seu mais alto grau.
Lendo Ciao Cadáver, livro incomum de Delmo Montenegro, vê-se que a poesia não só está muito doente, como também já morreu. Ela parece vir ao mundo
despedir-se do leitor: Ciao Cadáver! A linguagem se despede e talvez nós mesmos, leitores, ou, quem sabe, uma certa maneira de ler, de tratar o ethos poético. Como somos aquilo que dizemos, como é a linguagem que, para todos os efeitos, nos diz,
somos nós mesmos que morremos, parece nos dizer os poemas de Delmo Montenegro.
Livro curioso, para dizer o mínimo, instigante, para que se possa continuar falando dele e fazê-lo antes que nos cale (ou será que com ele aprendemos a falar de
outro modo?) Aliás, por isso mesmo, ao lê-lo, tem-se a impressão de que ele continuaria falando por si mesmo (e por nós) indefinidamente, zombando da poesia (de si mesmo), dos poetas e do leitor, com suas imagens mortuárias, seus "poemas-necrose" e tantos
requebros macabros, como se Rimbaud voltasse de repente de sua "temporada no inferno" e nos possuísse por meio de seu espírito maligno, nos contando o que é no fundo apodrecer por dentro, o que é cair nos braços descarnados e ossudos da "indesejada das gentes",
provando que, ao contrário, o terror é fascinante, ou que a beleza, como diz o poema de Rilke, "é o começo do terror que somos capazes de suportar". E se a morte aqui se figura nos despojos da linguagem, seus destroços, talvez seja para nos fazer pensar com
Bataille que ela é "a aprovação da vida até na morte".
Eis que retornamos ao livro de Montenegro engolindo a seco antes de virar a página, nos perguntando o que fazer com tanta violência de linguagem? Afinal, o que aí
se diz se faz no ponto em que "a/ língua/ em estado/ de demência/ (se contrai). A língua é o órgão verde do demônio se revirando, se mostrando, neste começo horripilante de século. E Delmo não tem papas na língua. O que ele nos diz? Que as palavras estão
cansadas de produzir sentidos, que os valores de significação se consumaram, se esvaziaram, que o lirismo está morto e sepultado, que a poesia sobrevive apenas como um inventário de suas próprias mortes ou marcas: "tudo desaba" (...) E o que somos nisso tudo
senão "túmulos-viventes/:formigas/carneapodrecendo/líricas"?
Mas é neste ponto que o catálogo de Ciao Cadáver parece oferecer um viés próprio de leitura. É preciso, pois, penetrá-lo à deriva, e ceder ao movimento
entrópico de sua vertigem. Justamente, quando nada mais parece fazer sentido, tudo faz sentido. É assim que estes signos em decomposição, para além de sua carnalidade ou podridão "bovino-rembrandt: / pirâmide/fecal", se associam para trazer as trevas à luz, ou
fazer estremecer o reino do indizível, do silêncio, que para Wittgenstein segrega os problemas que não conseguimos resolver, reservando-lhes, talvez, alguma saída. E isso de modo a que a leitura se faça em meio a "fraturas verbais" pedindo um "novo amém", a
aceitação da discórdia por um dispositivo nuclear de afirmação. O horror, sim, na verdade "horrível", mas em "serpentinatta", o movimento espiralado do pensamento em linguagem; maneirista, sim, mas no que esta atitude tem de deformante, de aniquiladora do
lirismo servil.
Eis o empreendimento de Delmo Montenegro: fazer falar o recalcado, espremer os olhos, o carnegão dos signos, e entrar de sola no abjeto, o solo sagrado da
linguagem. É horrível sim, o que ele diz, e também como o diz. A repetição claustrofóbica e paranóica da palavra "câncer", por exemplo, termo este durante muito tempo considerado tabu pelo senso comum, palavra impronunciável, ao lado de "desgraçado", e
tantas outras temerárias de entortar a boca e queimar a língua de quem as pronuncia. E no entanto lemos incansavelmente o "câncer", espécie de mote obsessivo, escandaloso, como se ele nos aguardasse inapelavelmente ao fim da página, ao fim da vida: o livro,
alegoria da vida; eis que a repetição malévola deste termo, perversa ao extremo, um recurso deveras incômodo que o poeta utiliza e com o qual parece se divertir com sarcasmo, parece assinalar o próprio movimento de retorno da doença, aqui incurável (na
linguagem), movimento cego que constata a arbitrariedade do impulso do signo, ou melhor, da doença do signo: "apartamento-câncer" (...), "quelóide-câncer" (...), "bico-câncer" (...), "na noite-câncer"...
É certo que tal postura diante do poético faz com que ele diga o que habitualmente não se diz, mesmo que se constate que, por puro jogo, o associar livre seja no
fundo eleição e arbítrio, convenção em nome do desejo da língua estigmatizar-se e acumular ali o dado novo do arquivo (oculto império). "Vamos sujar os olhos e a boca com essa poética gosmenta, fétida e putrefata", parece nos pedir o autor. E isso, não por um
mero impulso destrutivo, anárquico, ou menos ainda por insensatez nefasta de rebeldia esnobe, típico registro de viés decadente, mas por nos fazer repensar os códigos poéticos nos advertindo que a matéria da poesia, e, no extremo, a língua, as linguagens todas,
apodreceram de seu uso compulsivo, e estão morrendo de esclerose múltipla. A glossolalia de Ciao Cadáver não é ato estéril que se esgota no próprio gesto. Ela continua falando para além de seus efeitos.
A esta altura, cabe perguntar, haverá alguma "ética" neste livro? Afinal, qual o propósito de um livro tão "mau-comportado", tão "mau-criado", senão alguma
transvaloração do poético? A seu favor, pode-se dizer que ele não passa despercebido pelo odor exalado de sua "carne auschwitz", de seu "arame-cabelo", ou do esgar provocado por esta incrível "gonorréia-tv". O tom do livro é afinado com a lira torácica mais suja
e degradante, com o que há de pior e mais pegajoso nos baixos-corporais. Mas é por aí mesmo que sua pragmática funciona, na medida (ou desmedida) que incomoda e leva este incômodo ao mais intolerável limite.
Sim, pode-se perguntar: para que serve esta poesia, a que veio este poeta, como se ele produzisse sua arte não sobre ensolarada escrivaninha, mas nauseante mesa de
autópsia?
A propósito, "Ciao Cadáver", deste autor carniceiro, perverso, faz coro com aquele "hay cadáveres!" do argentino Nestor Perlonguer, um de seus pares
nesta poética sacrifical da linguagem. Sim, os cadáveres estão em toda parte, em qualquer direção que olhemos, folha seca ou lesma, barata esmagada, carcaça fétida como já anunciara Baudelaire, ou homem putrefato em sua caixa de morto: Hay cadáveres! Ciao
cadáver! Outros fingem que não vêem, que não é com eles. Poemas intragáveis, indigestos, estes! Mas Montenegro traz os cadáveres da linguagem para conspurcar as belas letras, como quem varre de volta os mortos para dentro de casa. Certamente haverá leitores
(sempre há), mas como seria vê-lo passando de mão em mão, na Academia Brasileira de Letras, durante o requintado (ou requentado) chá com madeleines?
Digressões à parte, o livro de Delmo Montenegro diz algo sobre a poesia de hoje que merece ser ouvido. Afinal, para que serve a poesia, esta forma de dizer que é
também uma forma de se pensar o homem e a linguagem? "Que horror!" insinuou Olavo Bilac quando finalmente lhe apresentaram os poemas de Augusto dos Anjos: "é este o teu poeta?" Até que ponto não ecoaria esta mesma crítica ou algo parecido em outra volta da
espiral do tempo? Mas numa época, a nossa, em que os que se dizem "transgressores" mesmerizam estilo e ditam moda no mercado editorial?
À produção de textos de "beleza" convencional e de lirismo bem-comportado, Delmo Montenegro responde com seu necrológio poético, elevando à potência o signo em
decomposição, gesto que não se faz sem pensamento sobre a linguagem e sua ruína. Nascerão dos cadáveres poéticos e de seus congêneres novos valores para a poesia, para o homem? Afinal, como fazer poesia sem levar em conta suas múltiplas e inevitáveis "mortes"?
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Contador Borges, poeta, tradutor e ensaísta, nasceu em São Paulo
(SP), em 1954. Publicou os livros de poemas Angelolatria (1997), O reino da pele (2003) e A morte dos olhos (2008), traduções de Sade e Char, entre outros títulos.
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