ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

OU A SINTAXE ORGÂNICA DE CLAUDIA ROQUETTE-PINTO

 

PARTE UM

 

Franklin Alves (UFF - CNPq)
Leonardo Gandolfi (UFF - CNpq)

   

Por causa de Herberto Helder e José Kozer

Bons poetas possuem suas próprias poéticas. Muitos são os exemplos. No entanto, talvez seja necessário circunscrever algo do que se entende aqui por poética, para que seja possível notar tal pluralidade. Há algum tempo a literatura tem se voltado, senão diretamente contra poéticas como as de Aristóteles, Horácio e Boileu, mas contra pensamentos diretivos de seus meios e/ou fins. No século XX e ao longo dele, esta indisposição ganhou força e se sedimentou como forma de estar quando o assunto é poesia. Poetas e poemas estão colocados sobre fissuras que corrompem o senso comum da linguagem, que também é o senso da sociedade. Por isso, alguns textos, devagar ou contundente, operam seus instrumentos na desmontagem da comunicação. A mensagem é sempre uma outra mensagem, inacabada, incompleta.

Assim, em tempos como estes, em que só com dificuldade as coisas são nomeadas, não é necessário dizer mais acerca do que seja uma poética, talvez seja apenas válido marcar que elas são pessoais e, portanto, únicas. Esta singularidade ganha força e visibilidade na sintaxe que o poema gera. Onde se lê sintaxe, observam-se os jogos de concordância, subordinação e ordem das palavras que, no verso, alteram-se segundo as necessidades impostas pela relação entre sujeito e linguagem. Há algo como a subversão do estabelecido no que tange o que é comunicável. Texto que alarga as fronteiras do mimético, ressemantizando coordenadas e ordens de grandezas de acordo com ângulo e voz que privilegiam ou criam. Enfim, uma linguagem que é física, porque não toca o real, mas o constitui num ir-e-vir de autonomia e dependência, ultrapassando tais demarcações outrora estanques.

Bons poetas possuem suas próprias poéticas, e isto acontece com Claudia Roquette-Pinto. A partir destas considerações, um pequeno percurso de leitura, parece, poder ser trilhado. A imagem examinada será a do orgânico, a da escrita como tecido em que imagens interagem quase que fisiologicamente. É esta a sintaxe poética de Claudia: roubada em sua formação de um modelo metaforicamente botânico. Ou seja, o orgânico enquanto constituição do corpo vivo que é o texto - como se seus versos assimilassem certa estrutura espessa dos vegetais, os pistilos e os estames das flores ou ainda fibra por fibra toda a carne dos frutos. O percurso de leitura se propõe, então, no levantamento dos índices e símbolos que deixam ver esta matéria viva e entreaberta. Segui-lo, de certa forma, é perceber como a linguagem, sem perder sua lucidez, contamina-se por este sistema. Melhor ainda, ler a poesia de Claudia não para ouvir o que diz ou ver o que mostra, mas para compartilhar de sua fisiologia, não exclusivamente como metalinguagem que também é, mas para conviver com sua matéria, participar de seu funcionamento, tocar sua textura, ou, por fim, entrar no corpo do poema e experimentar a escrita, aqui feminina em seu convite.

Essa sintaxe orgânica, no entanto, não pode ser linear, discursiva nem tampouco pacífica em seu desenvolvimento. Para isso, três razões se interpenetram. A primeira diz respeito diretamente à própria maneira de ser do poema - é, portanto, mais histórica do que pessoal, pois concorda com aquele estado irresoluto que a poesia assume na modernidade: questionando o fundamento desenfreado e utilitário da sociedade pelo menos desde meados do século XIX. Isso está também relacionado à, já dita, subversão do comunicável, modo de contravenção do status quo, que talvez seja um último resquício utópico, ainda profícuo, herdado pela poesia contemporânea em geral. Uma segunda razão para a não-linearidade dessa poesia já foi mencionada e paga tributo imediato ao que se chamou de orgânico - pois é constituinte da formação desses tecidos toda uma complexidade natural que, vertida em linguagem no poema, tende também ao intricado. A terceira razão para o aspecto não linear da poesia de Claudia Roquette-Pinto também possui grande importância, já que está relacionado ao fato de ser a subjetividade o maior vetor da poesia em geral. Mesmo quando ausente, o sujeito é o centro do campo de força do poema, e em Claudia isto não se constituirá de forma diferente. Em verdade, não é a sintaxe orgânica o que conduz ao sujeito poético, ao contrário, é a subjetividade, num jogo de presença e recalque, que conduz a tal organicidade de seus versos - processo de subjetivação que terá imensa importância noutra característica de sua poesia: as afinidades eletivas colhidas na literatura, na fotografia e, principalmente, na pintura.


Será em Os dias gagos (1991), seu primeiro livro, que a leitura começa. Os versos "espelhos não refletem / mais a cara do dono" (p. 23) apontam bem o espírito de busca subjetiva que atravessa todo o livro. Como a maioria dos estreantes, a poeta aqui ainda pesquisa linguagens e sonda formas diversas de estar no poema: desde o enfrentamento do tempo, "se desisto do poema empalidecem as pêras" (p. 8), até a encenação de uma escrita que se quer feminina, em diálogos com Sylvia Plath, Adélia Prado e Ana Cristina César. No entanto, a última parte do livro apresenta o que será doravante a tônica na obra de Claudia, tanto em coerência como em qualidade. Sob a epígrafe de um Gullar sensível à matéria das pêras (aliás, é uma pêra que ilustra a capa e quarta capa do livro), a poeta apresenta cinco poemas, o quarto deles, chamado "no ateliê", será praticamente a gênese de sua sintaxe orgânica:

 

de tudo o que podia ter brotado
na luz supérflua da meia manhã
- pólen, formigas, os pequenos rastros,
as asas fáceis que te roçam o lábio -
uma palavra caiu no assoalho.
nem dura era, essa maleável
e nunca dentes para aprendê-la
mas obscura abrupta e hiatos.
abrindo sulcos dentro desse quarto
arrepiando o pêlo das ameixas
(crescia um húmus entre as duas letras)
a boca avessa que se fecha ao tato.
flor impossível para as tuas telas.

(p.50)

Um ateliê é o local preparado para execução de trabalhos de arte. No entanto, este lugar evoca uma materialidade mais própria à pintura e à escultura do que à escrita. Não à toa, o poema acima é plástico, não só na dramatização da queda literal da palavra (táctil com seus hiatos), mas em toda a delicadeza com que assimila e observa um organismo botânico: "(crescia um húmus entre as duas letras)". Ao mesmo tempo, há o impasse, pois existe a palavra como fruto, porém não o fruto-palavra enquanto alimento. Por isso, a boca aqui é avessa, fechada "ao tato" e conservando-se exatamente no espaço entre o alimento e o dizer, ou seja, numa impossibilidade. Materialidade insuficiente estendida ao objeto pictórico final, tocado agora por um feixe de subjetividade que a segunda pessoa possessiva, finalmente, deflagra: "flor impossível para as tuas telas". O poema "no ateliê" partilha da sintaxe orgânica, contaminação botânica da escrita, porém em seu momento embrionário, quando ainda não repercute para além de si mesma - talvez por isso o problema da impossibilidade. Outros momentos desta parte de Os dias gagos são exemplos do que se falou, seja pela contigüidade fonética, seja pela assimilação semântica de texturas, respectivamente em: "cada nêspera / uma véspera" (p. 47), "a pêra envenena o ritmo. / a sala toda orbita a seu favor" (p. 49), e ainda, "a ponta corada machuca / estira outra cor na curva / rubor que amarela e aveluda" (p. 48). O último poema do livro, oportunamente chamado "no jardim", experimenta sem medo uma reverberação ainda maior: "o verão recomeça sua linhagem de folhas" - a própria visão, sentido solicitado, re-aprende o seu ofício segundo a poética pessoal do texto. É por isso que o último verso do poema se escreve com a autoridade e consciência de quem, daqui para frente, apesar das intempéries, acredita saber o que fazer: "eu escuto o que tem que ser dito". (p. 51).

Embora seja seu segundo livro, Saxífraga (1993) é um dos trabalhos mais densos na obra de Claudia Roquette-Pinto. O movimento neste livro é duplo. O primeiro consiste no fechamento, estreitamento ou intensificação da prática desta sintaxe orgânica - assim, há a afirmação de sua poética em cada poema do livro. O segundo, na abertura, uma vez que assumindo sua linguagem, a poeta ganha a liberdade de ler e descobrir o mundo a partir desta experiência. É esse movimento que introduz em seu texto outros textos, outras fisiologias. E, sobretudo, será a partir daí que Claudia aprimora-se, porque serão suas escolhas de leitura, re-arranjadas e re-materializadas segundo sua escrita, que consolidarão uma certa subjetividade lírica. Daí, as freqüentes referências, explícitas ou não, a nomes como Picasso, Lorca, Rockwell, Guimarães Rosa e tantos outros convidados. O movimento, portanto, é duplo: fechamento e abertura, espécie de oferta e recusa. Leitor e leitura num jogo feminino de sedução.

O poema "rastros" é exemplo do primeiro movimento. Tal procedimento arregaça a linguagem e quem nela se diz, daí um verso como "e eu no espinheiro, sem rumo". A princípio como um Drummond, gauche talvez em sua indeterminação, mas não tanto, pois se no mineiro a flor que vencia a superfície dura possuía uma cor que não se percebia e pétalas que não se abriam (cf. "A flor e a náusea"), a de Claudia, de outro tempo e de outra lógica, nasce num "chão de pedregulhos" e enquanto "flor [de] essência saxátil" (p. 06), ou seja, aquela que vive ou se desenvolve sobre ou entre rochas e pedras. Na aspereza, a flor de Drummond está desamparada, a de Claudia, ao contrário, sobrevive apenas nela.

Pelo mesmo caminho, o poema "minima moralia" é um concentrado metonímico - pequena peça de metalinguagem em que a pétala aqui é a página onde se surpreende a carnadura do poema "sem transparência de luz" (p. 07). Opaca porque densa: não transparece a realidade circundante cuja metonímia aqui é a floresta, com seus sons e fluidos. Pequena flor sozinha, desigual, delicada em sua espera e no corpo dos seus versos. O poema "bãdinjâna" também é peça exemplar da intrincada poética de Claudia, importante momento de confirmação de sua sintaxe orgânica:

 

é o azul       ciano        negro
a fome de cor neste negro
é a pele                   espelho
de virgindade     ancas
que impeles aos céus

ou o turbilhão - que ninas -
de vespas de escuridão
(no teu ventre)
o que
te aparentas
à louca maçã da palavra?

(p. 09)

 
Ao presenciar o vegetal, a discursividade é posta de lado em favor da junção de imagens aparentemente desconexas: as frases nominais adjetivam os versos que, alongados artificialmente pelos espaços em branco, dão aos adjetivos, material cromático, um caráter substantivo; há uma dança semântica em que os sentidos vão desembocando num "turbilhão", e por diversas vias, na carne da berinjela que é o "ventre", corpo da escrita, "maçã da palavra". Nisso vê-se, sobretudo, uma feminilidade que não é feminista, com todos seus clichês de erotização ou fragilidades reclamadas, mas feminina em seu doar-se difícil e saborosa num jogo de sugestão e sedução: vide a surpresa do leitor diante do nome do poema, referência ao étimo árabe da palavra berinjela. Enfim, eis o texto: conjunto de versos coerente em seu propósito de verossimilhança, cujas imagens diversas funcionam entre si em numerosas relações de interdependência e sentido, próximo talvez do funcionamento de qualquer plano filamentoso, seja da berinjela ou da flor, quando surpreendidas de perto.

No poema "tomatl" promove-se, quase por extenso, o encontro da fruta com a palavra, instaurando assim um mover-se, já visto aqui, entre o alimento e o dizer: imbricado ir-e-vir que talvez seja o centro da escrita de Claudia. Apesar dos "laivos de verde" do fruto quando mordido, o que se experimenta, porque o poema se constitui de linguagem, é o som do "l" final, consoante líquida que, a um só tempo, assalta e irriga o fruto: materialidade própria, antes de tudo, à palavra. Ao fundo ainda, a imagem persistente da "maçã amorosa": suficiente para lembrar que aquilo que, implicitamente, o poema faz é um convite, e este é inerente ao feminino. Gênero construído que também se deixa flagrar no detalhe do quadro da pintora barroca holandesa Rachel Ruysch (Flower still life, de 1700) que serve de ilustração para capa do livro: flores de um colorido assimétrico - dramatizadas pela luz - onde se observa uma abelha que as poliniza, numa referência também ao convite do poema.

O poema seguinte, "castanhas, mulheres", confirma esse erotismo proposto, pois aparece aqui "como resultado de um corpo-a-corpo vitalizante com a própria linguagem" (Pedrosa, 1999, p. 147). A sintaxe orgânica com que a poeta fere a mensagem - comunicação cotidiana - é simbolizada aqui pelo alfabeto avesso às mãos que, porém e mesmo assim, elas seguraram - alfabeto ou castanhas. (Pequenas mãos que têm, no poema, algo de delicado, análogo ao famoso verso de Cummings: "nobody,not even the rain,has such small hands"). Claudia Roquette-Pinto fere a mensagem numa corporeidade cuja espessura é, outra vez e ao mesmo tempo, a da escrita e do "gomo [que] lateja". Em outras palavras, mulheres que são castanhas, castanhas que são palavras, palavras que são mulheres, tudo girando feito um grande sistema, onde o todo é a leitura, o enfrentamento: "ela e ela / desabotoa / entre os dedos" (p. 11).

Há ainda muito em Saxífraga. Na seção "ele", última parte do livro, intensifica-se a questão desta feminilidade. Conforme a insistência, em Claudia o poema é convívio com o leitor, convite. Sua botânica, emaranhado vivo, é o próprio ato de leitura, mecanismo de mútua interpenetração - espécie de sexualidade dotada de outra fragilidade, de outra erótica. Primeiro o jogo de sedução, depois o acesso ao corpo, o alimentar-se, e por fim o estranhamento, a pausa crítica, a dúvida, o outro: que de certa forma é início e fim de sua poesia. O poema "presença" trabalha de perto com tais questões:

 

página vazia, nua pál
pebras al
fombra de gesso em prévia o
calcanhar au
sência de som que ama
cia o poema (cúpula trê
mula à intenção de
transbordar) assim
eu frente ao teu
corpo
súbito!
varando o ar

(p. 29)

 

Chama atenção a quebra das palavras ao fim de alguns versos, dando luz a outras imagens e, também, a estranheza de certos sintagmas e suas texturas, "al / fombra de gesso", "cúpula trê / mula à intenção de", que parecem simular o ato sexual, a escrita. O eixo masculino-feminino, em "presença", é paradoxalmente contorcido, ou melhor, invertido: masculina pode ser a página em branco; feminino pode ser o lápis e a caneta com que se escreve, ou ainda, o dedo com que se digita e datilografa. E ainda, na mesma direção, as mesmas insinuações: masculino pode ser o ar que a primeira pessoa escrita atravessa, "eu frente ao teu / corpo / súbito! / varando o ar" (p. 29); feminino é aquilo ou aquele que passa por dentro, escrevendo. Porque quem entra no poema também se deixa penetrar. Estereótipo tencionado: o poema como a carne do mundo, oferecida e desejada.

Em "poema submerso", o convite é novamente feito, numa série de cortes que também parecem acompanhar os movimentos do jogo sedutor (a escrita?): "olho: peixe-olho que / desvia a mão enguia / a pele lisa a / té o umbigo e logo / a flora de onde aflora / (na virilha) o / barbirruivo an / fíbio: glabro". E o outro, o masculino, acessa o corpo, e logo é incorporado ao fim do texto, não sem surpresa, com a morte que o gozo (o poema escrito?) proporciona: "ei-lo ao pé da frincha que / borbulha (esbugalha?) / roxo incha e mergulha em / brasa estala / e agora murcha / peixe-agulha e / vaza / vaza" (p. 32). Estereótipo revisto: o poema enquanto dúvida, impossibilidade, morte, porém, encontro.

A seção "o olho armado", penúltima do livro, é a intensificação do já mencionado movimento de abertura na poética de Claudia Roquette-Pinto: o convite ao leitor estende-se agora a outras obras de arte, como a fotografia, e, especialmente, a pintura. Seus exercícios de écfrase, representações verbais de representações visuais, porém, não funcionam como impedimento da leitura do poema escrito, uma vez que o quadro e a fotografia funcionam como algo adicionado, acima e além daquilo que está inteiramente presente, ou seja, o texto escrito na página. Isto porque muito mais do que tematizar a forma já pintada, ou a forma revelada, predisposta para a transposição, forma formada, tematiza-se a forma que se dá a ver, forma formante, pois o mais importante será aquilo que gemina a criação do poema e seus mecanismos (Lima, 2002, p. 173). O conhecimento das práticas ou sintaxes destes artistas será uma possibilidade de reconhecimento, pois frente ao outro que o texto de Claudia se constituirá como de fato seu. No escolher das preferências pessoais, o poema forma o autor, suas características constitutivas, vontades e razões de ser. É o lúcido pôr em prática da máxima de Rimbaud - Je est un autre. Borges, no epílogo de O fazedor, figura em cores e sons esse procedimento:

Um homem se propõe a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos, povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de moradas, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem de seu rosto (2000, p. 254).

Assim, os poemas de "o olho armado" são todos decisivos. Quase todos os poemas fazem referência óbvia a nomes como os de Frieda Kahlo, Monet, Man Ray, Marc Chagall e outros. Este mecanismo será importante para a constituição da própria voz que fala no poema, desenhada a partir daquilo que, criticamente, é selecionado no processo de subjetivação: a poeta, pacientemente, coleciona presenças e as incorpora à sua sintaxe pessoal, monta seu paideuma com imagens várias e, logo, a imagem do seu rosto. Não à toa, os poemas com Picasso e Munch fazem menção direta a auto-retratos, eles reconhecem a representação da própria imagem da face dos outros como importante forma de construir a subjetividade de seu texto. É como se, da mesma maneira que Borges, cada nome, cada obra fosse um ponto contíguo a outro, e a ligação destes formasse, devagar, um todo que é o corpo do texto - pêlos, músculos, língua, e, por fim, o rosto. Neste sentido, a epígrafe de Cézanne aponta bem a relação sempre mediada destas formações subjetivas: "pintura é a natureza vista através de um temperamento". A primeira parte do poema "stabile (calder)" exemplifica esse movimento de abertura, incorporação e reconhecimento:

i. lá: uma mínima lua, e pensa
já: uma boca que se con
centra em o - entre
as duas circunferências
tudo que se diz
tende (e pênd
ula) propende        ao poema

(p. 22)

Mais uma vez o texto lança mão da não-dircursividade. Aqui e ali, há a impressão do caos e, paradoxalmente, a impressão da simetria. As imagens seriam inverossímeis se a feitura dos versos, seu arranjo, não dispusesse as palavras de modo coerente com sua poética - o rosto que, indiretamente, se forma. O stabile, a princípio, faria contraposição ao móbile, escultura em movimento, que foi a tônica, a partir dos anos 30, na obra do citado artista norte-americano Alexander Calder. São eles esculturas que interagem com o lugar onde estão, porque respondem às correntes de ar ou à ação do observador, de certa forma, alterando as relações espaciais. O poema, embora se chame Stabile, guarda fortes características dos móbiles e, talvez, tenha este nome porque impresso e materialmente imóvel na página. Isso talvez sirva apenas para tencionar ainda mais as forças semânticas dos versos de Claudia. Todo o texto é o mover de um pêndulo, que primeiro é analogia da forma lunar. Esta imagem depois da pausa crítica ("e pensa / já") torna-se a imagem da boca. Boca, língua, voz, fruta, flor, mãos, texto e rosto. Subjetividade movente surpreendida em construção. Metamorfoses que dispersam o poema, mas o tornam, ao mesmo tempo, irresistivelmente coeso em seu propósito orgânico.

Continua no próximo número da Zunái  

 

Franklin Alves nasceu no Rio de Janeiro. Poeta e ensaísta, é autor do livro de poemas (inédito) Céu Vermelho.

Leonardo Gandolfi é poeta e ensaísta.

Leia também ensaios de Franklin Alves e Leonardo Gandolfi sobre Glauco Mattoso, Júlio Castañon Guimarães, Jorge Luis Borges e o texto Da pintura ao poema.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.
BORGES, Jorge Luis. O fazedor. In: Obras completas (volume II). São Paulo: Editora Globo, 2000.
CUMMINGS, e.e. Poem(a)s. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1999. [tradução de Augusto de Campos].
LIMA, Luiz Costa. Abstração e visualidade, uma proximidade distante. In: Intervenções. São Paulo: Edusp, 2002.
PEDROSA, Celia. Políticas da poesia hoje. In: Luso-Brazilian Review. Madison: University of Wisconsin-Madison, no. 36, 1999.
ROQUETTE-PINTO, Claudia. Os dias gagos. Rio de Janeiro: edição da autora, 1991.
______. Saxífraga. Rio de Janeiro: Salamandra, 1993.

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