ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

ANTOLOGIAS: REDUNDÂNCIA & EXATIDÃO

 

O homem vem a ser a ordem que imprime às coisas e tal ordem exclui a redundância. - Jean Baudrillard

  

Leonardo Gandolfi

Paulo Mendes Campos, ao preparar a Antologia Poética de Jorge de Lima, publicada pela antiga Sabiá, escreveu na advertência que abria o livro: "Escolher o melhor na ampla produção de um poeta é tarefa que depende bastante do gosto pessoal de quem escolhe; mas não há outro modo de fazer uma antologia" (De Lima, 1969, 5). Em geral, esse parece ser, ao mesmo tempo, o maior problema e o maior trunfo dos organizadores de antologias. O problema é apenas aparente, pois em verdade ele nem existe. Vejamos como. Sendo pessoal uma seleção, a obra de um autor não pode ser apreendida de fato numa antologia. Para funcionar, sua escolha precisaria ser objetiva ou, ao menos, impessoal. Assim todos os livros de um autor seriam depreendidos num único livro. O problema é aparente, porque nem mesmo há problema. Tal seleção imparcial talvez seja possível apenas no campo das ciências estatísticas em que o processo de amostragem é considerado apropriado para representar todo o universo pesquisado. Já em literatura a coisa é diferente. É Borges quem escreve:

 

(...) a Arte da Cartografia alcançou tal Perfeição que o mapa de uma única Província ocupava toda uma Cidade, e o mapa do império, todo uma Província. Com o tempo, esses Mapas Desmesurados não foram satisfeitos e os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império, que tinha o tamanho do império e coincidia pontualmente com ele.

(Borges, 1999-II, 247)

 

 

Ou seja, a melhor antologia de um autor seria sua obra completa. Dito isso, restaria apenas aquilo que chamamos aqui de trunfo dos organizadores. Cada antologia de um mesmo autor revela um autor diferente. Assim, a seleção que Paulo Mendes Campos fez diz apenas de um Jorge de Lima, o Jorge de Lima de Paulo Mendes Campos. Assim como a seleção que Eugénio Lisboa fez de Jorge de Sena dá vida a um Jorge de Sena específico[1]. Falamos até aqui de antologias fechadas de autores, mas há também as antologias com recortes espacial e temporal. Recentemente, o fim de século viu uma profusão de edições como essas tanto no Brasil como em Portugal. Nesse tipo de antologia, os critérios - que, como vimos,  já são pessoais por natureza - tornam-se ainda mais maleáveis e o recorte feito acaba sendo criticado com mais veemência por uns e por outros. O último exemplo entre nós foi o livro preparado por Ítalo Morricone, Os 100 melhores poemas brasileiros do século XX, lançado em 2001 pela editora Objetiva. O livro foi pretexto para inúmeras discussões - boas e más - sobre poemas e poetas que não foram incluídos.

 

 O critério de uma antologia, por mais imparcial que o queiramos, quem o fornece é o organizador e somente ele, ou quando muito eles, no caso de a antologia possuir mais de um antologizador. Por isso, esses livros acabam nos revelando mais do que um autor, época ou região, mas o próprio organizador e, com ele, a forma com que vê e recorta as coisas, suas obsessões. Tal fato se torna mais decisivo ainda quando esse organizador é também autor; seja poeta ou ensaísta ou ambos, como é freqüente. Tão decisivo a ponto de lermos uma antologia para estarmos menos com os autores que com o organizador. Há diversos exemplos disso. As escolhas, antologias e traduções de Augusto de Campos revelam mais do que Hopkins, Rilke e cia. - revelam a própria maneira de estar de Augusto na escrita poética[2]. Outros exemplos são as antologias preparadas por Herberto Helder, tanto a de poesia portuguesa, Edoi Lelia Doura (1985)[3], como as outras antologias de difícil classificação, dado o caráter extremamente pessoal de seus critérios: Doze nós numa corda, Ouolof (1997)[4], Poemas ameríndios (1997) e outras. E por falar em Augusto de Campos, seria válido também lembrar de um dos legitimadores desse formato, Ezra Pound. Seu Paideuma talvez justifique a si mesmo[5].

 

A figura do organizador é central; escolher nomes, poemas e inclusive a ordem é o que basta. Re-arranjar a obra de um autor segundo uma ótica é renová-la, é dar-lhe outra perspectiva. A palavra re-arranjo é boa, na medida em que numa antologia ela possibilita novas relações entre os textos, nomes e épocas. Por exemplo, alguns dicionários de poesia francesa [6], justamente por serem dicionários, utilizam a ordem alfabética e confundem as datas, dando sincronidade aos nomes, ou seja, perturbando a história: Corbière ao lado de Corneille, La Fontaine ao lado de Laforgue que por sua vez está ao lado de Lamartine. E o que dizer de Verlaine e Villon juntos? A contigüidade altera e instaura novas relações. Exemplo significativo também disso é a Antologia poética de Drumonnd. Aqui o próprio autor se tornou organizador (coisa que, aliás, é bem comum). No entanto ao escolher e ordenar seus poemas, Drumonnd preferiu separá-los por temas[7]. Tornou vizinhos assim textos de épocas bem distintas, aproximados, porém, pela temática. Nesse trabalho, é claro, acabou estabelecendo núcleos temáticos que, sim, alteraram o andamento de sua obra anterior. Vale lembrar que a criação dos temas foi de Drumonnd e, embora ele seja o autor (a essa altura isso já não significa grande coisa), ela diz respeito a ele; outro organizador poderia ter feito parecido, mas não igual; o resultado portanto seria diferente.

 

O que queremos é ver que, numa antologia, estamos diante tanto dos textos escolhidos quanto de quem os escolheu. Como disse já Paulo Mendes Campos, o gosto pessoal não é só decisivo, ele é o princípio legitimador de organização, ou seja, é incontornável. Por isso, se há uma forma de estudar as antologias, essa forma passaria, antes de tudo, pela subjetividade da escolha. Tal subjetividade acarreta um movimento duplo e complementar. Por um lado uma antologia des-historiciza o texto, ao retirá-lo de seu lugar primeiro; por outro, acaba por re-historicizá-lo segundo a subjetividade, quando lhe impõe outro contexto, re-arranjando e fazendo recortes [8].

 

Para entendermos tal processo, recorramos a Jean Baudrillard e a seu Sistema de objetos. Sua análise diz respeito principalmente à relação do homem e dos objetos que o circundam. Desses objetos, os mais recorrentes são a mobília residencial. Baudrillard avisa-nos de uma mudança na forma como lidamos com as coisas. Segundo ele, "os valores simbólicos e os valores de uso esfumam-se por trás dos valores organizacionais". É claro que em uma antologia de poesia, o valor do poema não se transforma completamente devido a uma mudança de ordem. Mas para o autor "a substância e a forma dos velhos móveis são definitivamente abandonados por um jogo de funções extremamente livre" (Baudrillard, 2004, 27). Ou seja, essa extrema liberdade legitima a presença do sujeito: as coisas são e estão assim, pois alguém as escolhe e as dispõem dessa forma. A figura do organizador de antologias agora começa a se confundir com a do colecionador.

 

Colecionar é formar a si mesmo, já nos avisava Benjamim ao desempacotar toda sua biblioteca[9] (Benjamim, 1997, 227). E é justamente a partir disso que Baudrillard anota: "pois sempre colecionamos a nós mesmos". Isto é, mesmo sob o pressuposto da imparcialidade, não se pode fugir de si mesmo: ao escolher algo, escolhemos o que nos constitui enquanto tal, ao mesmo tempo em que somos o que escolhemos. Para terminar este pequeno esboço de percurso, de novo Baudrillard: "A coleção é feita de uma sucessão de termos, mas seu termo final é a pessoa do colecionador". Aliás, a própria pluralidade da coleção que fazemos nos caracteriza na medida em que também nos dispersa, dando à noção de subjetividade aqui expressa um importante caráter crítico: "Reciprocamente, este [a pessoa do colecionador] se constitui como tal somente ao ser sucessivamente substituído por cada termo da coleção" (Baudrillard, 99). Ou seja, cada antologia em sua particularidade - boa ou má (não é isso o que está em jogo aqui) - é exata, porque exclui a redundância.

 

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Bibliografia

 

Baudrillard, Jean. O sistemas dos objetos. 4.ed. Trad. Zulmira Ribeiro Tavares.     São Paulo, Perspectiva, 2004.

 

Benjamim, Walter. Rua de mão única. Obras escolhidas II. Trad. Sergio Paulo     Rouanet. São Paulo, Brasiliense, 1997.

 

Borges, Jorge Luis. O Fazedor In Obras completas. Trad. Josely Vianna Baptista.     São Paulo, Globo: 1999-II.

 

Compagnon, Antoine. O trabalho da citação. Trad. Cleonice P. B. Mourão. Belo      Horizonte, Editora ufmg, 1996.

 

De Lima. Jorge. Antologia Poética. Sel. Paulo Mendes Campos. Rio de Janeiro,      Sabiá, 1969.

 

Helder, Herberto. Ouolof. Lisboa. Assírio&Alvim: 1997.

 

Maciel, Maria Esther. A memória das coisas. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.

 

Pound, Ezra. ABC da Literatura. 2.ed.Trad. Augusto de Campos e José Paulo Paes.     São Paulo, Cultrix, 1973.

 

Sousândrade. Poesia. 2.ed. Org. Augusto e Haroldo de Campos. Rio de Janeiro:     Agir, 1979.

 



[1] Partindo disso, há o Carlos de Oliveira de Manuel Gusmão, o Eugénio de Andrade de Arnaldo Saraiva, o Horácio Costa de Haroldo de Campos, a Sophia de Mello Brayner Andresen de Vilma Arêas etc.

[2] Dos poetas brasileiros, Haroldo e Augusto de Campos escolhem Sousândrade e nele optam por algo que de certa forma lhes interessa: "Realmente os dois ciclos infernais do Guesa (...) fazem-no credor de uma posição precursora de importantes linhas na pesquisa de poesia atual, e, em particular, temática e estilisticamente, dos Cantares de Ezra Pound." (Sousândrade, 1979, 10)

[3] Edoi Lelia Doura, antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa, é uma espécie de linhas mestras de poesia surrealizante portuguesa segundo, é claro, o critério de Herberto Helder.

[4] Em Ouolof Helder reúne tanto extratos transcritos de cantos maias e de índios Caxinauás como poemas de Zbigniew Herbert, Emilio Villa, Jean Cocteau, Marina Tsvataieva e Malcom Lowry. Se procurarmos um critério, encontraremos somente o critério da liberdade total de juntar num mesmo livro idiomas e estilos tão distintos, tal critério teria como denominador comum nada mais do que a própria poesia de Helder. Sobre isso o mesmo escreve: "Essa fala, queremos fazê-la nossa" (Helder, 1997, 44).

[5] Segundo Pound, Paideuma é "a ordenação do conhecimento de modo que o próximo homem (ou geração) possa achar, o mais rapidamente possível, a parte viva dele e gastar um mínimo de tempo com itens obsoletos" (Pound, 1973, 161). O poeta elegeu trechos da obra de alguns autores que, na edição brasileira, cronologicamente vão de Homero a Laforgue. Bem à sua maneira, Pound, transforma a sua lista na lista das próximas gerações. Reservas à parte, sua seleção ecoa diretamente em seu decisivo poema The Cantos.

[6] Entre eles, utilizamos o pequenino Dictinnaire anthologique de la poésie française de Pierre Ripert (Maxi-poche Références, 1998).

[7] Carlito Azevedo, anos mais tarde, repetiu a estratégia de Drumonnd em seu Sublunar (2001).

[8] "Abstraído de seu contexto, [o objeto] perde sua presentidade, desloca sua temporalidade para a espacialidade de um repertório fixo, no qual a história é substituída pela classificação" (Maciel, 2004, 19). Acrescentaríamos somente que talvez essa história citada seja apenas substituída por uma outra história.

Outra manifestação desse processo de deslocamento (feito inclusive por nós muitas vezes neste texto) é o recurso à citação de textos: "O mesmo objeto, a mesma palavra muda de sentido segunda a força que se apropria dela: ela tem tanto sentido quantas são as forças suscetíveis de se apoderar dela. O sentido da citação seria, pois, a relação instantânea da coisa com a força real que a impulsiona" (Compagnon, 1996, 35).

[9] Na seqüência, Benjamim ainda escreve que "a existência do colecionador é uma tensão dialética entre os pólos da ordem e da desordem" (Idem, 228). Essa desordem talvez seja apenas uma outra ordem possível, que é subjetiva e que é a do gosto.

 

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Leonardo Gandolfi é mestrando em Literatura Portuguesa pela UFF.

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Leia também poemas do autor e seus ensaios sobre Claudia Roquette-Pinto, Carlos de Oliveira e Júlio Castañon Guimarães.

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