ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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UMA CONVERSA COM EDUARDO MILÁN


Eduardo Milán

por Claudio Daniel

Zunái - Você nasceu em Montevidéu, filho de pai uruguaio e mãe brasileira, mas reside no México desde 1979, onde leciona literatura na UNAM (Universidad Nacional Autó-noma de México). A experiência de viver num país estrangeiro influenciou de algum modo o seu tra-balho criativo?


Milán - A influência do México em minha poesia tem sido funda-mental. É um país aberto à poesia, com uma longa tradição poética e uma igualmente longa tradição de proteção aos poetas. Recordemos que um dos reis pré-hispânicos, Netzhualcóyotl, era poeta. Por outro lado, meus três filhos, Leonora, Andrés e Ale-jandro, nasceram aqui e minha mulher, Gabriela, é mexicana. Aqui encontrei pessoas que em diversos momentos me ajudaram. De modo que estou muito agradecido ao México. Talvez se vivesse em outro país também escrevesse poesia, já que escrevo desde antes de vir ao México. Estación Estaciones (1975) e Esto es (1978), ambos reuni-dos em Manto (1999), foram escritos no Uruguai e publicados lá. Porém, é no México que pude desenvolver minha escritura.


Zunái - Em seus primeiros livros, como Estación, Estaciones (1975), você pra-ticou uma poesia concisa, substantiva, com ênfase na geometria, dissolvendo, pelo humor e paradoxo, qualquer ilusão de aura ou sublimação lírica. Poesia, para você, é uma crítica das formas viciadas do discurso?


Milán - Sim, é. Na linguagem poética, é nítida a busca de devolver o sentido à palavra, tanto na acepção radical mallarmeana (Donner un sens plus pur aux mots de la tribu) como nas distintas acepções que trabalham em um nível não tão puro, o da linguagem coloquial, com a consciência oswaldiana de "contribuição milionária de todos os erros". A linguagem poética, por convicção, por especificidade, pode re-velar sentidos ocultos na linguagem cotidiana, revalorizá-los e outorgar a eles a di-mensão estética. Ou, em operação contrária, que não deixa de ser estética, retira da linguagem comum o desgaste conferido pelo uso. Em ambos os casos se trata, obvi-amente, de uma operação crítica.


Zunái - Você foi colaborador de Vuelta, uma das mais importantes revistas literá-rias da América Latina. Comente um pouco essa experiência e o seu convívio com Octavio Paz.


Milán - Fui colaborador de Vuelta porque Paz ofereceu a mim uma coluna mensal para falar de poesia baseado no comentário ou análise de livros que apareceram no mercado entre 1987 e início dos noventa. Em 1989 publiquei esse li-vrinho, Una cierta mirada, que reuniu dois anos desse trabalho. O que tratei de fazer aí foi que a leitura transcendesse - se é possível dizer assim - a mera contingência, ou seja, o livro em questão. O que ficou foi uma espécie de panorama do que estava ocorrendo em certas zonas da poesia em língua espanhola. Porque essa era minha "visão", desde um ângulo mais ou menos inventivo, crítico, questionador. Não podia ser eterno esse trabalho. E não foi. Minha proximidade com Paz tinha que ver muito precisamente com essa colaboração, não mais que isto. Hoje me ficam duas coisas claras a esse respeito: que disse, a maioria das vezes, o que eu pensava quanto ao es-tado da poesia da língua, e que Octavio Paz foi generoso comigo. Uma reflexão te-mática mais aguda, já fora do âmbito de Vuelta, sobre o estado da poesia atual da lín-gua encontra-se em Resistir Insistencias sobre el presente poético, que publiquei em 1994.


Zunái - No livro Una Cierta Mirada você reuniu ensaios sobre autores latino-americanos que fazem parte de uma tradição de vanguarda no continente. Em sua opinião, o expe-rimentalismo está presente hoje nas gerações mais novas? Quais os autores que considera mais ex-pressivos, na poesia de língua espanhola mais recente?


Milán - Creio que há uma zona que experimenta com a poesia na a-tualidade, zona muito bem vista e reunida en Medusario, a antologia que elaboraram Roberto Echavarren, José Kozer e Jacobo Sefamí, publicada pelo Fondo de Cultura Económica de México em 1996. Posteriormente, Editorial Aldus de México publicou uma antologia que realizamos, o poeta mexicano Ernesto Lumbreras e eu, Prístina y última piedra, em 1999, que intenta ampliar, sem a radicalidade de Medusario, a visão do que está ocurrendo na poesia latino-americana. Quanto a autores precisos, quanto a nomes, há vários. Gerardo Deniz, Perlongher, Echavarren, Kozer, Espina, Coral Bracho, María Auxiliadora Alvarez, Ernesto Lumberas, Roberto Appratto, Elías Uri-arte, sem deixar de mencionar outros, como Salvador Puig ou o falecido Héctor Viel Temperley, que deixou uma obra poética magistral, Hospital británico publicado, se não me engano, em 1987.


Zunái - Você participou de antologias de poesia neobarroca, como Medusário e Caribe Transplatino. Qual é a sua avaliação, hoje, desse movimento literário?


Milán - Sinto um enorme respeito pelo movimento - se se pode chamar assim - neobarroco ou "neobarroso", como dizia Perlongher. Estou trabalhando, graças ao apoio do Sistema Nacional de Criadores de México, em um livro de ensaios sobre poesia latino-americana que inclui um capítulo sobre o movimento neobarro-co. Creio que o neobarroco, mais que um poema, é um campo poético a explorar. A mesma condição proliferante "rizomática" desses poemas torna-os território de ex-ploração. Trata-se de uma atitude ante a linguagem, ou seja, a recuperação precisa do poema como atitude, que é o mais importante em um momento poético como o atu-al, onde as tintas estão carregadas especialmente sobre a realização, sobre a "arte" empregada no poema. São poemas além do poema, numa atitude cara a certa van-guarda.


Zunái - O Fondo de Cultura Económica publicou recentemente o volume Manto, que reúne sua obra poética desde Estación, Estaciones até El Nombre es Otro. O que a pu-blicação desse volume representou para você?


Milán - Como Manto é obra reunida até 1997, o que representou pa-ra mim foi isso: uma reunião do que pude fazer até esse momento. A princípio pen-sei que já não havia mais. Porém, felizmente, pude sair, não sei se para frente ou para o lado ou para trás, do impasse que significa reunir, ou seja, nestes termos, encerrar um ciclo.


Zunái - Em colaboração com Manuel Ulacia, você traduziu para o espanhol uma coletânea de poemas de Haroldo de Campos. O resultado dessa fascinante jornada de recriação lin-güística é o volume Transideraciones. O que significou para você esse diálogo com o autor de Galá-xias? Houve repercussão em sua própria obra?


Milán - Transideraciones foi o primeiro livro de poemas de Haroldo traduzi-do para o espanhol e publicado, creio, em 1986. Pessoalmente, quando o fiz conside-rava a difusão da poesia de Haroldo em espanhol quase como um dever. Em 1976, quase imediatamente à publicação no Uruguai de Estación Estaciones (1975), enviei o livro a Haroldo e ele o recebeu muito generosamente. Por causa dessa recepção e da admiração que tinha - e tenho - pela obra de Haroldo (eu conhecia fundamental-mente seus ensaios) viajei ao Brasil e conheci Haroldo, Augusto, Décio, Régis Bonvi-cino, Duda Machado, Antonio Risério. Essa viagem foi muito importante para mim. Creio que Haroldo é um clássico - a vanguarda também produz clássicos - da po-esia latino-americana, do mesmo modo que o são Augusto e Décio. São poetas pen-sadores, espécie em extinção. Grandes cérebros, poetas insubornáveis (categoria esta também em extinção). E dizer isto é dizer muito em um contexto literário como o brasileiro, com valores como João Cabral, Guimarães Rosa, Drummond, Murilo Mendes Jorge de Lima. Não tenho dúvidas que se trata de figuras excepcionais. E, como clássico presente, vivo, por suposto que Haroldo repercutiu no que fiz. Não saberia dizer com exatidão como e onde, mas sem dúvida o conhecimento de sua o-bra e de suas idéias sobre a poesia e a cultura me marcaram.


Zunái - Você escreveu prefácios para os livros de autores brasileiros contemporâ-neos, como O Livro dos Fracta, de Horácio Costa, e Outros Poemas, de Régis Bonvicino. Qual é a sua opinião sobre a poesia brasileira atual?


Milán - Escrevi prólogos a um livro de Costa, a um de Bonvicino e tam-bém, por que não dizer?, a um livro teu (Claudio Daniel), A Sombra do Leopardo. Insis-to em minha admiração pela poesia brasileira, por sua história, pelo que ocorreu nes-sa história, por sua lucidez, particularmente a de alguns criadores, como os mencio-nados. Creio que a mesma situação de "marginalidade" da poesia brasileira em rela-ção à poesia do resto da América Latina alimentou isso que chamam de "a tradição do rigor". Não apenas de seus poetas "em livro": também a de seus poetas-músicos, alguns mais conhecidos, por uma óbvia questão de meios, que os poetas que traba-lham no campo das letras. O nível de qualidade poética de um Caetano, de um Chi-co, de um Gil, de um Walter Franco, de um Jorge Mautner ou de Arnaldo Antunes é muito difícil de se encontrar em outros poetas-músicos latino-americanos. Por quê? A meu ver, porque existe uma tradição poética atrás que sustenta a experimentação em qualquer meio graças a seu rigor. Por outro lado, nos poetas "de página" há no-mes como o grande Paulo Leminski, Régis Bonvicino, Wally Salomão, Josely Viana Baptista, Glauco Mattoso, Ademir Assunção, Rodrigo Garcia Lopes, Claudio Daniel, Sebastião Uchoa Leite, Sebastião Nunes - estou mesclando gerações, obviamente, porque os nomes aparecem para mim desse modo e não sou, fique claro, um especia-lista em poesia brasileira - que indicam que o processo criativo não se detém - Duda Machado e Antonio Risério. Esquecia-me de Tom Zé, que me impressiona muito. Para sintetizar, creio que a poesia brasileira do século XX é a mais criativa da América Latina.


Zunái - Em 1990, você participou do encontro A Palavra Poética na América Latina, organizado por Horácio Costa, em São Paulo. Pensa em fazer nova visita ao Brasil?


Milán - Esse encontro que Horácio Costa organizou foi algo muito bem realizado. O Memorial se portou à altura dos acontecimentos até onde sei. Horácio reuniu uma série de pessoas com discordâncias e conseguiu que de alguma maneira dialogassem, não sem atritos nem sem altercações. Porém era disso que se tratava. Não era um brinde, era uma reunião. Por certo, Horácio Costa me parece também um poeta muito respeitável. Há pouco tempo, quando foi publicado Estação da fábula, o livro que tive a honra de que você traduzisse, o Memorial convidou-me a ir a São Paulo. Porém, não pude ir por razões de trabalho. E por suposto, de familia. Sou to-talmente dependente de minha mulher e de meus filhos. Mas gostaria muito de poder voltar ao Brasil, não na qualidade de turista, senão para ver como está o Brasil com Lula, que é uma grande esperança para toda a América Latina. Ir para ver meus ve-lhos conhecidos mas também para trabalhar, dar um curso ou falar da outra poesia latino-americana, a de língua espanhola.


Zunái - Qual é o sentido de escrever poesia numa época regida pelo "monoteísmo do mercado" (Garaudy) e pelos programas de reality show? A criação artística é capaz de alterar a realidade?


Milán - O sentido de escrever poesia, para mim, é o sentido das práticas de-salienantes em um mundo reduzido ao economicismo. Estamos mundialmente, de maneira menos intensa em alguns lados, muito intensa em outros, reduzidos a nossa mínima expressão, vítimas da necesidade e como condenados a "ganhar tempo", bloqueada a possibilidade de futuro. Eu sou um dos néscios que crêem que outro mundo é possível. Nesse outro mundo possível a poesia será necessária, voltará a ser necessária. Claro que me refiro a escrever poesia como eu creio que é a poesia, e não como exercício de sobrevivência entre outras linguagens que são dominantes por uma simples mudança de suportes. Nesse sentido creio que a poesia pode abrir espaços na realidade, nas linguagens massificantes que consumimos e falamos co-tidianamente.


Zunái - É possível haver invenção estética na era do pós-moderno, que decretou a extinção das utopias?


Milán - É verdade que vivemos entre o pensamento pós-utópico e a re-alidade pós-utópica, reitero, como "condenados" em um sentido kafkiano ao presen-te, a este "é o único que há" que prestigia a ideologia dominante, se bem que agora atua encoberta de valores como a libertade, a defesa da segurança nacional e dos va-lores democráticos. Trata-se de um enunciado não apenas enganoso senão totalmen-te ridículo. Esses enunciados em países de cem milhões de habitantes ou mais que têm mais de 50% de sua população submergida na pobreza quando não na indigência mais degradante, é algo hipócrita, cínico e insustentável. O modelo mundial não só é um modelo guerreiro, agressivo e excludente, mas também é difícilmente suportável sem o exercício constante da guerra - parece que passamos das sociedades de con-trole às sociedades do terror, do terrorismo de estado (que agora é terrorismo impe-rial) ao antiterrorismo de estado mediante o mecanismo da guerra que, como disse alguém, passou da pràtica comum à teoria, à instrumentalização de um pensamento guerreiro. Isso significa, em poucas palavras, a destruição de toda alternativa. A poe-sia é criação, não pode acompanhar essa ideologia nem ser neutra em relação a ela. Esse é o modelo da antivida; a poesia tem o modelo do movimento da vida, não da norma, do movimento da vida. Como dizia uma pichação em um muro de Montevi-deo: "Ânimo, companheiros: a vida pode mais". Estamos nessa disjuntiva: pela vida ou contra ela. Dizendo de outro modo: a utopia está presente no ato poético, o so-nho da utopia, que é muito mais que o enquadramento dos modelos utópicos totali-tários quando são vítimas da necessidade. A poesia conta com a necessidade mas se situa além dela. A utopia é irrenunciável para a poesia segundo a entendo. O outro é escrever como acompanhamento da vida. E acredito que a vida se acompanha bem sozinha. Claro, esta vida que estamos vivendo, não a que desejamos, que é a vida cri-ativa. O discurso pós-moderno, com sua tecla de "vale tudo", reciclagem de formas, consumo do passado como se fosse novo por uma mera distância temporal, pareceria que anula as possibilidades de invenção. Mas esse é o discurso. Outra coisa é a reali-dade: a realidade indica que o que está em jogo é a imaginação criadora, dentro da poesia mas também fora, na linguagem poética mas também no comportamento humano.

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Leia também poemas de Eduardo Milán e ensaios do autor sobre o Neobarroco e Haroldo de Campos.

Leia também traduções do poeta feitas por Claudio Daniel.

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