26 APONTAMENTOS SOBRE
A PELE E A TINTA*
- O Livro de Cabeceira, de A a Z
Peter
Greenaway
Introdução
Li pela primeira vez O
Livro de Cabeceira de Sei Shonagon em 1972, em uma tradução
para o inglês de Arthur Waley. Dentre suas inúmeras
qualidades, a obsessão pelas listas aparentemente arbitrárias
foi o que primeiro me seduziu. Li uma versão inglesa
mais completa do livro em 1984, ao mesmo tempo em que preparava
uma lista alfabética bem mais ortodoxa para o filme
Um z e dois zeros. Imaginei, então, que um dia
pudesse ser possível inserir os excêntricos deleites
taxonômicos de Sei Shonagon em um filme e dispor as
idéias na ordem do que eu considerava um projeto de
cinema a ser organizado segundo as 26 letras do alfabeto,
sob o nome 26 FATOS SOBRE A PELE E A TINTA.
Devo dizer àqueles
que não leram Sei Shonagon que ela certamente não
teria se reconhecido na narrativa ou nos personagens desse
projeto de filme, embora eu tivesse esperança de que
ela pudesse nele reconhecer muitos dos sentimentos que expressou
e muito de sua própria excitação em relação
à literatura e às coisas do mundo. Eu gostaria
também de pensar que ela teria se reconhecido nas citações
que fizemos de seu texto.
Muitos aspectos deste
roteiro de 1984 mudaram ao longo da jornada que fizemos até
que o filme de 1996 se completasse. Entretanto, todos os elementos
essenciais da primeira sinopse foram mantidos e, tal como
um prefácio ao roteiro definitivo de O Livro de
Cabeceira, imagino que ela possa servir como uma introdução
pertinente.
___________________________________
*
Este texto, construído em forma de verbetes, é
a versão inicial do roteiro do filme O Livro de Cabeceira
(1996), de Peter Greenaway. Escrito em 1984, ele foi incluído
- a título de prefácio - no livro que traz o
roteiro definitivo. Extraído de: GREENAWAY, Peter.
The pillow book. Paris: Dis Voir, 1996, p.6-12. Tradução:
Maria Esther Maciel.
*
A
A pele mais
adequada para ser escrita deve ser muito clara, talvez a de
um corpo cujo cabelo bem escuro sugira o brilho da tinta preta.
B
Estamos especulando
sobre uma fantasia erótica que combina duas fascinações
sem limites: o corpo e a literatura.
C
O Livro de
Cabeceira de Sei Shonagon é uma obra da literatura
clássica japonesa, escrita há mil anos por uma
dama-da-corte imperial. É um elegante e refinado diário,
feito com engenhosidade e muita inteligência por uma
mulher sensível e de forte caráter. O diário,
tal como outros diários do mesmo tipo (este não
era o único existente), era guardado dentro da gaveta
de um travesseiro de madeira, sobre o qual a autora encostava
sua cabeça durante a noite. O filme diz respeito a
uma moderna Sei Shonagon, que vive nos anos 90 em Hong Kong.
E essa história passa, certamente, por uma grande reviravolta.
D
Essa Sei Shonagon
contemporânea é passional, ao ponto de abandonar
tudo pela literatura, pelas palavras, pela escrita, pelos
escritores, poetas e homens de letras. Ela mantém um
armário em sua casa, um grande armário europeu
do século XVIII. Mas dentro não há nenhum
papel . Seu corpo é o papel.
E
Essa mulher
tem vinte, talvez vinte oito, ou mesmo trinta anos, mas não
menos. Ela é bonita. É alta. Tem um corpo ideal
para modelar roupas. É uma exilada do Japão,
com uma história pessoal marcada por uma educação
primorosa. Dona de uma sensibilidade refinada, é afeita
à tradição de decorar o corpo com tatuagens
e cosméticos, e à literatura que, através
da caligrafia, se constitui um meio caminho para a pintura.
Neste momento, vamos supor que essa mulher vem de Kioto, cidade
da própria Sei Shonagon. O seu nome é Nagiko,
o mesmo que alguns historiadores pensam ser o nome familiar
de Sei Shonagon.
F
Nessa narrativa
específica, o pai de Nagiko é um escritor com
uma modesta, porém venerável, reputação:
ele escreve estórias sobre crianças espertas
que solucionam mistérios através da matemática.
O pai pinta, delicadamente, uma mensagem de aniversário
no rosto da filha. A mensagem completa-se com o nome dela
e o seu. Ele pinta a mensagem nas bochechas da menina, em
volta dos lábios e sobre as pálpebras. Ele faz
isso a cada aniversário, desde quando sua filha tinha
três anos até que ela se case, aos dezoito. A
origem desse costume, dizem, remonta a um tempo em que Deus
moldou em argila os primeiros seres humanos e pintou nos olhos,
nos lábios e no sexo de cada um deles um nome e uma
bênção para ajudá-los a seguirem
o seu caminho na vida. Se Deus aprovava a criação,
assinava o próprio nome, e só depois dava ao
modelo de argila pintado o sopro de vida.
Nos primeiros aniversários
de Nagiko, quando seu rosto era delicadamente pintado com
a saudação paterna, ela tinha permissão
para usar os pincéis e o tinteiro do pai, e este a
incentivava a escrever. A partir daí surgiu o desejo
de Nagiko de um dia se tornar uma escritora.
A menina adorava ter o rosto pintado, de aniversário
a aniversário. Isso lhe trazia o conforto e o amor
de sua família - o prazer de viver em uma casa cheia
de livros e palavras. Tudo isso se tornou um profundo deleite
que ela temia perder. Ela, uma mulher no exílio, vive
agora em Hong Kong.
G
Depois de seu
décimo-oitavo aniversário, Nagiko anseia em
vão pela carícia do pincel em suas faces, o
hálito de seu pai em suas bochechas e a sensação
da tinta úmida secando lentamente em sua pele. Ela
agora vive na expectativa de reviver o prazer de seus aniversários
de infância. Ela exige que seus amantes escrevam em
seu rosto, no seu corpo, exatamente como seu pai e o Deus
da criação antes dele. Seus amantes devem caligrafar
em seus olhos, seus lábios e seu sexo. Eles devem escrever
o nome dela e os deles, e outras coisas além disso.
H
Assim a história
é contada em duas instâncias temporais - o "agora"
e o "então" - o "agora" sendo a
cidade de Hong Kong dos anos 90, e o "então"
sendo a infância e a adolescência da mulher em
Kioto, Japão.
No primeiro terço do filme, aos dois tempos é
dado o mesmo espaço, mas gradualmente a história
do "agora" torna-se mais e mais intensa, até
que o passado passa a ser mostrado em brevíssimos flashbacks.
I
A mulher possui
muitos amantes. Ela é corajosa. Ela é insaciável.
Ela se comporta como uma cortesã. Ela gosta de roupas
e comidas finas. Ela tenta reproduzir o conforto da casa de
seu pai. Seus amantes são variados. Há o modesto
calígrafo que só escreve na penumbra. O míope,
homem de meia-idade, que insiste em escrever com as canetas
esferográficas mais baratas, em letras tão pequenas
que se faz necessária uma lupa para decifrá-las.
O jovem impertinente que escreve como uma criança.
O velho viúvo que corrige e rasura constantemente os
seus erros com cuspe, uma esponja úmida e sua própria
língua. O contador que cobre o corpo de Nagiko com
somas aritméticas, subtrações no seio
esquerdo, adições no direito. O cliente brutal
que a arranha com grafitos obscenos, com desenhos de tirar
sangue.
J
Há um
tímido cliente que, para esconder seu óbvio
talento, usa tinta invisível no corpo de Nagiko. Ela
tentar revelar a tinta invisível, banhando-se em água
morna, ficando o máximo que sua ousadia que permite
perto do calor do fogo, lavando seu corpo com suco de casca
de cebola, até que as cebolas a façam chorar
e suas lágrimas provem que é necessário
um solvente para revelar o escrito.
K
Quando um cliente
sai, os lençóis da cama ficam marcados com tinta,
e a mulher, satisfeita, sente-se ao mesmo tempo regozijada
e triste com sua obsessão. Ela ri disso, faz piada
com isso. Ela ironiza sua própria experiência.
Ela se coloca diante dos muitos espelhos de seu apartamento
e avalia, atentamente, as proezas literárias de seus
clientes. Se os textos são bons ou se lhe dão
prazer, ela cuidadosamente vaporiza o corpo com laquê
para impedir que o atrito de suas roupas apague as letras.
Ela se veste tanto para ocultar quanto para exibir os escritos.
Certa noite, ela se coloca na varanda de seu terraço
com vista para Hong Kong e deixa a chuva morna de verão
lavar os poemas de um velho e gentil senhor chinês que,
sentado de pernas cruzadas, vê seu trabalho literário
se diluir. Ao ver que os escritos estão apagados, ela
vai imediatamente para o chuveiro e deixa a água levar
tudo embora, até que a água do banho fique negra
ou roxa de tinta diluída.
L
Em Hong Kong
há um estudante de 17 anos chamado Bara, membro de
uma barulhenta facção política. Para
se exibir, Bara escreve palavras de ordem e slogans políticos
no corpo de Nagiko. Nagiko é raptada. Os raptores são
muito jovens e, apesar da aparência viril, sexualmente
desastrados. Nagiko é corajosa. Com ousadia, ela permite
que seu corpo seja fotografado de forma a revelar os segredos
de seu amante político. Os raptores tentam obliterar
as palavras escritas em seu corpo com tinta-spray, mas são
impedidos por um belo fotógrafo japonês chamado
Hoki. Este se apaixona por Nagiko e se torna seu secreto,
tímido e não-correspondido admirador. Ele faz
cursos de poesia por correspondência e se esforça,
esperando ganhar os favores de Nagiko.
M
Quando Nagiko
completa dezoito anos, seu pai pinta sua face como um presente
de aniversário pela última vez. No dia seguinte,
ela já está casada. Seu marido não se
interessa por palavras, livros ou escritores. Ele maltrata
Nagiko. Ela busca refúgio nos livros, monta uma pequena
biblioteca e tenta ser, ela mesma, uma escritora. O novo marido
tenta anular esse desejo. Sua afronta final é queimar
os diários da mulher. Ela o deixa e é, conseqüentemente,
obrigada a sair de Kioto. Viaja para Hong Kong, esperando,
enfim, deixar o Oriente para sempre e viajar para a América.
N
Nagiko chega
em Hong Kong. Ela se junta a uma comunidade japonesa que lá
vive em exílio. Ela se torna uma bibliotecária
e depois modelo de uma casa de modas japonesa. No início,
ela se envolve apenas com homens japoneses ligados a negócios
de costura. Acaba por se tornar uma discreta celebridade.
Ela tenta reproduzir em seu elegante apartamento de Hong Kong
a casa e a biblioteca de seu pai. Ela ganha uma certa reputação
como mulher requintada, culta, que encanta os escritores.
Mas ela está sempre sentindo falta de alguma coisa.
Ela sente falta da escrita, dos amantes escritores e do toque
do pincel e da caneta na sua pele. Ela equipara o mais intenso
prazer sensual à imagem das palavras sobre o seu corpo.
Ela pede isso aos seus amantes. Eles cedem aos seus caprichos.
Eles a obedecem. Ela quer fazer amor com escritores de verdade,
mas há poucos escritores japoneses exilados em Hong
Kong. Ela é obrigada a negociar sua obsessão
com homens mais velhos, assim como seu pai. Ela passa, então,
a se envolver com escritores não-orientais, com escritores
franceses e italianos, e depois americanos. No início,
sente repulsa pelo toque e pelo cheiro desses homens; e pela
primeira vez, seu corpo é coberto de línguas
estranhas: o francês, o italiano e o inglês.
O
A mulher revive
seu desejo de tentar se transformar em uma escritora. Primeiro,
ela escreve no papel com uma máquina de escrever, mas
se decepciona com o resultado. Ela começa, então,
a escrever no próprio corpo. Inclinando-se de bruços
sobre a cadeira, escreve nos próprios joelhos, nas
coxas, na barriga, no antebraço esquerdo e nas costas
de sua mão esquerda. Por causa dessa singular posição
para escrever, quando se levanta vê que toda a escrita
fica de cabeça para baixo. As tentativas de se tornar
uma escritora são inúteis. Ela tem pouca inspiração
para escrever em si mesma.
Ela se prepara, então, para tentar escrever em seus
amantes, retribuir a eles os escritos que nela fizeram. Ela
não se sente confiante para escrever na pele de seus
amantes japoneses, mas aprende a escrever em seus parceiros
europeus. Ela escreve em japonês caligráfico,
de modo que seus amantes europeus não entendam o que
escreve. Ela escreve melhor em seus clientes mais velhos:
senhores inofensivos e benevolentes que lembram seu pai.
P
Recordando-se
da sessão fotográfica daquele dia do rapto no
terraço, Nagiko contrata o tímido e apaixonado
fotógrafo, Hoki, para fotografar os escritos nos corpos
de seus clientes mais velhos enquanto estes dormem. Ela ironicamente
apelida o jovem fotógrafo de "mata-borrão",
pois depois de ter acidentalmente nele derramado um pouco
de tinta, descobriu que na pele espantosamente absorvente
do rapaz a tinta se espalhava em grande escala e em horríveis
manchas. Hoki está convencido de que nunca poderá
se tornar um amante de Nagiko.
Nagiko transcreve para o papel os escritos fotografados e
os envia anonimamente a um velho editor japonês que
vive em Hong Kong e que um dia conheceu seu pai. Ele declara
que os escritos não valem o papel em que foram escritos.
Nagiko fica ressentida. Ela está determinada a fazer
com que o editor veja que ela tem valor como escritora. Ela
resolve, então, seduzi-lo. Em vão. Esse editor
não se interessa por mulheres. Ele tem um amante, um
jovem escritor inglês. A moça, mudando seus planos,
decide, cinicamente, seduzir o rapaz inglês.
Q
Ela consegue.
O escritor é seduzido. Ele é um jovem vistoso,
muito talentoso, indolente, arrogante e parasita. Ele faz
a vida como tradutor. Ele organiza livros sobre história
oriental e escreve poesia. Eles fazem amor, escrevem no corpo
um do outro. Eles se vêem regularmente. Ela experimenta
no corpo uma tinta indelével, que permanecerá
por quinze dias na pele, até ir desaparecendo gradualmente.
Ela se dá conta de que está apaixonada pelo
jovem poeta. Excitada com o corpo do amante, ela encontra
a inspiração que lhe estava faltando. E faz
planos para um trabalho maior.
R
Imagens de anatomia
humana, vestida e desnuda, ocupam a tela inteira, em uma mistura
ornamental de estampas lisas e coloridas, em estilo japonês,
combinada ao claro-escuro europeu. Um festim visual envolvendo
carne e pele, palavras e caligramas, um mix de Oriente
e Ocidente. Este não é um filme japonês,
mas um filme europeu que deve muito a Utamaro, Hokusai e Hiroshige,
bem como à pintura européia que foi influenciada
pelo Japão: um pouco de Gauguin, um pouco de Degas,
um pouco de Whistler, um certo Schiele, um certo Toulouse-Lautrec,
talvez algum Vuillard e Klimt, e antes deles, as não
poucas chinesices do século XVIII.
S
O filme se vale
dessas influências para uma longa apoteose, um clímax
sensual. A mulher e o escritor passam dias e noites juntos,
fazendo amor, escrevendo, tomando banho, fazendo amor, escrevendo,
tomando banho, escrevendo, fazendo amor. Eles trocam mensagens
amorosas escritas na pele, em japonês, francês,
italiano, inglês, chinês, com caracteres kanji,
hiragana e katakana, letras góticas, fontes exóticas,
experimentos caligráficos particulares. Os lençóis
da cama tornam-se uma melée de palavras impressas.
O rapaz escreve nos lugares inacessíveis do corpo de
Nagiko, de modo que ela tenha dificuldade em ler o texto,
mesmo com a ajuda de dois espelhos. Ele escreve em um ponto
mínimo de suas costas. Entre as pernas. Sobre as pálpebras.
Nagiko se contorce diante dos espelhos para transcrever a
escrita de seu amante. Hoki, o jovem fotógrafo apaixonado,
conhecido como "mata-borrão", é às
vezes um voyer dessas horas de amor. Ele está
profundamente enciumado.
T
O novo amante
inglês de Nagiko a estimula a assumir o papel de escritora.
Ele urde um plano. Propõe que seu próprio corpo
- familiar também ao editor - seja por ela usado de
forma a conseguir uma publicação. Ela deveria
escrever seus textos no corpo dele para que o editor pudesse
vê-los.
U
O amante se
apresenta ao editor. Ele se despe na loja abarrotada de livros
e o editor lê, com espanto, os escritos no corpo do
rapaz, excitado com o material e com a forma como este está
apresentado. O texto está escrito com tinta indelével,
de forma a não se apagar imediatamente. O editor concorda
em publicá-lo e ordena às suas pudicas secretárias
que transcrevam a exótica escrita do corpo.
V
Excitada, Nagiko
está impaciente para escrever mais, mas o velho editor
insiste em manter esse recém-descoberto corpo-texto
junto dele para continuar sua verificação. Ele
está certo de que a transcrição leva
um longo tempo. Com relutância, a impaciente Nagiko
arruma outros amantes, secretamente. Sua escolha recai em
homens bonitos, de pele a mais clara possível, incluindo
gêmeos albinos. Seus novos amantes a exaurem, mas ela
persiste. Ela resolve drogar suas vítimas. Ela envia
"suas páginas" dopadas ao editor. O efeito
das drogas às vezes passa e os empregados do editor
têm que sair correndo atrás dos textos que fogem
pelas ruas, em meio aos fervilhantes restaurantes noturnos.
W
O escritor inglês,
enciumado, vê os amantes temporários de Nagiko
deixarem o apartamento dela e os segue até a livraria
do editor. Ele acredita que a perdeu e que perdeu também
o interesse do editor. Hoki, o "mata-borrão",
com ciúmes do escritor, conta-lhe detalhadamente sobre
as infidelidades de Nagiko. O escritor jura forjar um suicídio
para assustá-la. Ele toma pílulas de dormir
com tinta negra indelével. Ele se deita sobre a cama
da amante, entre os lençóis que trazem as marcas
dos textos que ela escreveu em outros homens.
X
Nagiko encontra
o corpo do amante. A boca dele está negra de tinta.
A combinação de pílulas e tinta o matou.
Esta está atordoada. Ela escreve um longo poema erótico
sobre o corpo do rapaz, cobrindo cada centímetro de
sua pele. Ela providencia um elaborado funeral e forja uma
bela nota suicida.
Y
O jovem fotógrafo,
que continua com ciúmes obsessivos do escritor, mesmo
estando este morto e enterrado, fala ao editor sobre o poema
que a mulher escreveu no cadáver. O editor toma providências
para que o cadáver seja desenterrado. A receber o corpo,
remove deste toda a pele e faz com ela um livro. Passa, então,
a dormir com o livro, seu livro-de-cabeceira, marcando com
os dedos a página 28, a página feita dos lábios
de seu amante.
Z
Com pesar e
horror diante do que aconteceu e sentindo-se responsável
por tudo, Nagiko volta para o Japão. Ocasionalmente,
talvez uma ou duas vezes por ano, jovens escritores japoneses
desventurados chegam em Hong Kong com instruções
de visitar o velho editor e oferecer a ele seus corpos para
transcrição, em troca do Livro de Cabeceira
feito com a pele do inglês. O editor se recusa a desfazer-se
de seu tesouro, mas oferece dinheiro em troca, vastas somas
de dinheiro, na esperança de que isso possa apaziguar
Nagiko e encorajá-la a mandar mais rapazes com os corpos
caligrafados com sua excelente escrita. Muitas vezes os textos
se apresentam meio ilegíveis, seja porque o mensageiro
se lavou, seja porque não se lavou e o suor do corpo
fez com que a tinta se diluísse e passasse para a roupa.
Em outras ocasiões, fica difícil achar o texto,
por ter sido escrito no peito do pé, entre os dedos,
sob o cabelo, na orelha ou na pele convoluta do escroto dos
rapazes. Às vezes não há nada para se
ler. Nesse caso, um embuste deliberado. O velho editor vai
ficando cada vez mais obsessivo por esse jogo de mensageiros
e textos.
O ciumento e apaixonado
fotógrafo, o"mata-borrão", engaja-se
radicalmente em movimentos políticos extremistas. Ele
faz contínuos piquetes diante da livraria do editor,
atrapalhando seus negócios. Mas o ânimo se foi
para o resignado editor. Ele vive para qualquer coisa que
Nagiko lhe envie, esperando pacientemente por mais e mais
textos. Ele esvazia sua livraria e demite os funcionários.
Podemos vê-lo, vestido com elegantes roupas japonesas,
sentado com as pernas cruzadas à meia-luz, ou deitado
com os olhos arregalados em direção à
porta da livraria e a cabeça encostada sobre o travesseiro
de madeira onde está o seu livro de cabeceira. Ele
espera, dia após dia.
Certa noite, um robusto
rapaz oriental com um corpo de lutador de Sumô bate
à porta da livraria. O velho editor deixa-o entrar.
O jovem se despe cerimoniosamente. O editor, à meia-luz,
vê, em estado de êxtase, o longo poema escrito
no corpo do rapaz. Este, por sua vez, se move pacientemente
ao ritmo dos olhos do editor. Virando o corpo, inclinando-se
para frente, estirando-se, levantando e descendo os braços,
ajuda-o a ler o texto. O velho acompanha a escrita, movendo
os lábios à medida que lê uma ameaça
de morte que só pode ser para ele mesmo. Ele se dá
conta de não haverá mais belos rapazes com requintados
textos sobre o corpo.
O editor termina de ler
o texto e, silenciosamente, retira da gaveta de seu travesseiro
de madeira o livro do amante de Nagiko. Com reverência,
vira as páginas, beijando cada uma, e o entrega ao
rapaz. Então o editor dá um sinal com a cabeça
e o jovem corta-lhe a garganta.
*
Tradução: Maria Esther Maciel
*
Leia também: Os
24 Livros de Próspero, Janelas,
A
Clausura dos Animais, Três
Contos, Azul,
Filmografia
de Peter Greenaway, e conheça a iconografia
de seus trabalhos.
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