AZUL(1)
Peter Greenaway
Eu
era contrário ao Azul.
Eu
desconfiava de sua ubiqüidade
Eu
era anti-Klein (2), Yves Klein era um artista cheio de si,
um poseur.
Eu
costumava dizer que o azul não existe enquanto cor,
que o azul do céu é uma ilusão. Isso,
porque o céu não é algo concreto, mas
um vazio que - como todos sabem através do fenômeno
da noite e das odisséias espaciais - é negro.
Se o mar é um reflexo do céu, seu azulado também
é uma ilusão - ou pior - uma ilusão de
uma ilusão.
O azul do olho é
um truque da luz, concebido para sustentar eugenias germânicas.
Se você tentasse extrair o azu1 do olho, não
conseguiria.
Impossível reter
cristais azuis ou fluido azul na palma da mão. Miosótis
são azuis. Bem-me-quer, mal-me-quer azul. Já
sinto o azul no cerne azulado da própria flor.
Lápis-lazúli
? Entramos na zona do difícil. O azul foi feito para
ser exclusivo da Virgem Maria, colhido das minas longínquas
das Montanhas Urais. A quintessência da imaginação
religiosa. Jacintos, celacantos, a baleia azul - anomalias,
híbridos, quimeras.
Difícil ser contrário
ao azul para sempre. Continuei tentando.
Fiz um filme em Roma chamado
A Barriga do Arquiteto. Eu quis jogar o jogo dos opostos.
Eu quis que o filme se limitasse a dois conjuntos conceituais
de cor. Primeiro, as cores do filme deveriam ser encontradas
apenas no corpo humano - preto, branco, marrom, rosa, cinza,
sépia - nenhum verde ou azul. Depois, as cores do filme
deveriam ser estritamente relacionadas às cores da
arquitetura de Roma - os muros e os telhados, os ladrilhos
e o mármore. A mesma combinação de cores
do corpo humano.
No filme, usamos filtros
especiais para anular a cor do céu e apagar a cor das
árvores. Fiz algumas raras concessões ao verde,
já que o verde era a cor do inimigo. Os vilões
usavam gravatas verdes e dirigiam carros verdes. Quando o
corpo humano entra em decomposição, torna-se
verde. Mas os limites do azul estavam se rompendo.
Eu nada tinha a ver com
o "blue jay's wing" acompanhado pelo "Blue
Jay Way" de George Harrison, ou com uma pena azul do
rabo do pavão, e a KLM, a companhia aérea holandesa,
ou o azul das asas no vôo do avião. O azul que,
sombrio, se desvia para o infinito. O sangue azul para a nobreza
fisiológica do corpo. Ou Gorgonzola, o queijo azul,
substituído pelo Stilton Azul inglês com amoras,
para um comer azul.
Ou Sinatra como o "Old
Blue Eyes", os "Blue Suede Shoes" de Elvis
Presley, O "Danúbio Azul" de Strauss, a nota
azul, o triste azul, o "Barba Azul" de Bella Bartók.
Os azuis e os pauis, uma memória azul, o "tudo
azul, completamente blue", de Cazuza para cantar e dançar(3)
. Um peixe azul em exílio nas águas de Zurique.
As fichas azuis no cassino de San Remo. O brilho do gelo azul
para os diamantes da África do Sul. Um rumor azul,
o azul absurdo de um nu. Um lápis azul para resumir
a dor. As garatujas da esferográfica azul de Derek
Jarman, Jan Fabre e Amish Kapoor. Para uma arte azul. No cinema,
a "Imensidão Azul" e "A Lagoa Azul".
Uma gorjeta azulada, a
nota de 10 florins com a efígie de Frans Hals em azul.
Por que os italianos colocam grandes pintores em notas grandes
e os holandeses põem grandes pintores em notas pequenas?
E inumeráveis clichês
e provérbios - Faça um rio azul ascender pela
coluna e alcançar o lótus das mil pétalas.
Um vento azul não sopra nada além do azar. A
ágil raposa azul salta sobre o preguiçoso cão
azul. Quem vive em uma casa azul não deveria azucrinar
o vizinho. Ficar azul de ódio. O "tudo azul",
o zum-zum da abelha de Azure. Zoom. Harry Bloom, Bloomingdales,
o manto azul do gato persa, o azul-calcinha, o azul-fantasma,
o quarto azul, o trem azul, azulejos. Fui vencido(4).
Azul
Ai! (uma expressão muito azul) - parece que o azul
tomou conta de tudo. Já não posso seguir no
meu antagonismo à cor. Tanto mais que Giovanni Bogani
encontrou, em seu romance Blu, ainda muito mais azul.
*
Notas:
(1) Este
texto é o prefácio que Peter Greenaway escreveu
para o romance "Blu", do escritor italiano Giovanni
Bogani.
(2) Ives Klein, artista plástico francês (1928-1964),
que fez vários trabalhos monocromático em cor
azul.
(3) Versão livre de: 'Blue moon, I saw you standing
alone', for singing and dancing".
(4) Este parágrafo foi totalmente "transcriado"
a partir de expressões brasileiras e provérbios
orientais.
*
Tradução:
Maria Esther Maciel
*
Leia também:
O
Livro de Cabeceira de A a Z, Os
24 Livros de Próspero, Janelas,
A
Clausura dos Animais, Três
Contos, Filmografia
de Peter Greenaway e conheça a iconografia
de seus trabalhos.
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