ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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ANDRÉ DICK

 

 

 

 

FLORA

 

 

1.

 

o esqueleto de um camaleão

(pelo qual a tartaruga atravessa

na retomada de uma cor da estação anterior)

um lagarto e os cupins nos livros

talvez como a lentidão do pátio,

um ouriço, a asa de bem-te-vi

ou na escuridão o som dos grilos,

das cigarras, as asas – únicas –

um lagarto pela passagem

do seu espaço e o tamanho das violetas

sem o último rastro, salamandras,

estrelas sobre a grama noturna

 

2.

 

tartarugas lentas, cães, caracóis

são agora listras de abelha, cavalos no jardim

de casa, flores crescem fora da primavera

manadas de elefantes e grupos de zebras

muradas de flores, lesmas, penhascos para águias

para pesca corredeiras, gansos e sicômoros

ante os jazidos de vidro, pedras do vazio,

galhos pendurados em abismos

pombos florescem mais vermelhos nos hortos,

com galos, pela manhã, pernalonga e seus homônimos

 

 

 

 

 

 

PRAIA

 

Para a Clara e o Pedro

 

Crianças dão a volta

na quadra de bicicleta

enquanto o som do mar

complementa as pedras

com a ressaca de meados

de janeiro

quase alcançam as dunas

ruas de paralelepípedos

com os pinheiros

curvados,

os gramados

verdes da casa

e plantas que só

cresceriam

antes – no

fundo do oceano.

 

Se há razão

para a distância e o olhar

da varanda

para o cercado

alguns cavalos

para a fotografia

se alternam como cascos

e ostras que surgem com a correnteza

 

o repuxo apenas da areia

quando os pés vão cavando

buracos

e as pupilas guardam

outra paisagem.

 

Pessoas passam com cadeiras

embaixo do braço

semientregues ao sol

e o declive quando a distância é maior

que o voo

e um pássaro não consegue enfrentar

a força do vento

retrocedendo.

 

Mesmo o navio

na linha do horizonte

mais ao longe

a plataforma

uma ideia de regresso

à infância

à medida que se cava

a areia

e antes que a água chegue

já esteja tudo completo

antes de desmoronar

ficando mais na beira

para ter cuidado

ainda transcorre onde a ostra bebe.

 

 

 

 

 

 

DO VAZIO

 

 

Há o desgaste, não há dúvida,

da vidraça que a tudo envolve

mas sem a carga de aproximação

como o peso da chuva guarda

o peso dos galhos

curvados contra a haste da janela.

Quem o chama? Uma série de

hibiscos caindo no lago.

E a lembrança a prevenir

sobre os cômodos das mãos

a segurar mais alguns horas

antes de tudo partir, ir embora.

Se há cartas para ler

brotando do espaço. Vago.

O que se ressente é um campo

aberto brotando do vazio

quando estrelas se voltam

aos signos. O Zodíaco

e as placas persistentes de alumínio.

Derivam? O que no fim

faz brilhar um coração.

O olhar de minério

a pedir que alcance os óculos.

Hora da rotação sistêmica dos planetas

às voltas com estrelas

Não é de propósito que os plátanos

não assumem a chuva.

A prevenir salas, cômodos

e o incômodo coágulo

de todos os calendários.

 

 

 

 

 

 

OCEANO

 

 

O som do oceano

A um palmo de distância

Da janela, quando o caminho

Da areia é traçado – baleias

Não há contornos definidos

Para a água chegar

A um espelho

No qual é refletida

Resquício de lã

No sorriso aguardado

Há dois ou mais verões

Baleia que sopra

Devagar

À medida que se acentua

O tom do vento

Vermelho depois do pôr-do-sol

A água frisada nas barbatanas

 

Talvez

Venha sempre que os buracos

Se delineiam

Com o crescente da água

Quando se depara

Com o calor mais próximo das dunas

Vão se desfazendo

Uma a uma

Sem a permanência

No arco-íris estampado em relevo na borda

Da poltrona

 

Talvez haja

Um resquício de horizonte

Onde sequer supunham

Risos múltiplos

Antecipando o inverno

Das gengivas

 

Numa fila de girassóis

Crescendo rente à cerca

Com a resina

Das folhas

Sob a caixa d’água

E uma janela solitária

Em cima de um arbusto

Demarca a fronteira

Entre a grama

E os pinheiros

Plantados em relevo como os cisos

O varal com camisas

 

À noite

Algas

Um poste de luz

Ilumina o canteiro

Com sua fileira de pínus

Registrando as placas

De retorno

E um casal caminha

Solitário até

Os bancos de areia

Pela rua deserta

Uma breve luz

Do sol que não surgiu

Durante o dia.

 

 

 

 

 

 

IN VINO VERITAS

 

 

A grama verde e quem perdeu

seu tempo a olhar o sol, as plantas

no templo de Dario Vellozo

ou em sua casa na Cruz do Pilarzinho.

 

A bebida a consumir – Prometeu – o fígado.

Os deuses oferecendo um copo de vinho

com sangue e esperma

in vino veritas se não tinto.

 

Ou talvez os deuses Ares Afrodite

ou mesmo, olhando-se na água, Narciso,

o cavalo – Pégaso – e a casa de Asterion,

não sabia estar a sós, no labirinto.

 

In honore ordinis Sancti Benedicti

A pedra tumular, o baço da abóbada

O céu como um túmulo

(ocaso de estrelas, Leminski?)

 

confabula-se nessa poesia ou prosa.

Um polaco mestiço

(este acaso de papel)

junto aos signos do Zodíaco.

 

 

 

 

 

 

CELEIRO

 

 

A galinha

seguida pelos filhotes

na abertura do portão

atravessam a rua

 

para a bacia

o tanque d’água

uma luz conciliada com

perfumes

 

de abril –

nascem mais perto

da cisterna,

de crista empinada

 

o galo, liames

pedras no lago,

contornam todos

os menores –

 

para os laranjais

e os muros de pedra-

pomes confundidos

com esta claridade.

 

Um trator é desfeito

pelo sol, apenas

não há mais espaço,

pardais em postes

 

O quadro desbotado

num colorido de trigal

e os cercados de arame

não seguram mais

 

bois, vacas

um sistema de máquinas

na igreja, quando

contorna a estrada

 

de cascalho.

Depois, os sinos fazem

ouvir toda a região

pessoas se acumulando

 

como arbustos

e a meteorologia

diz que vai chover,

os pássaros recolhidos

 

no celeiro, tratores

se afastam a leste

e a sul – o equilíbrio

do dia – tudo dorme.

 

 

 

 

 

 

ZÊNITE

 

 

Alguém disse glóbulos

em igual número.

Eu disse universo

e sol do crepúsculo.

 

Eles dizem órions

e estrelas desabam

sobre a praia

cortando o escuro.

 

Do corte na pele,

da carne,

no fórceps do músculo.

Eles dizem

 

Ninguém se ama.

Nenhum ao outro.

Não se perde o perdão.

Não se encontra este corpo.

 

Tudo em vão.

E quem se perdoa?

O coração é um guindaste

que ergue ampolas.

 

Eles dizem banho de sol

à luz do mais curto verão.

Pele semiaquecida do dia

numa praia distendida

 

entre minhas mãos.

Eu disse agulhas para dores diversas.

Eu disse gelo para os olhos abertos.

Alguém disse só primavera.

 

 

 

 

 

 

BIG BANG

 

O cometa me traz um anúncio de outros mundos

E de noite eu não durmo.

 

                                   Murilo Mendes

 

Depois do Big

Bang, mais um espaço

Para a nuvem

De átomos.

 

Pedras do Halley,

Acrílico,

Na rua Consolato

De Murilo

 

E halo de luz

Contra

A foto-pintura

Redoma de vidro

 

Uma poesia-

Converge

Entre luzes,

Cálcio

 

Ordem de planetas,

Nitrato de

Sóis, estrelas, contra

Cometas –

 

Um só infinito

 

 

*

André Dick nasceu em Porto Alegre (RS), em 1976. Publicou os livros de poesia Grafias (2002) e Papéis de parede (2004). Organizou, com Fabiano Calixto, o livro A linha que nunca termina - pensando Paulo Leminski (2004). É doutor em Literatura Comparada pela UFRGS.

 

Leia também outros poemas de André Dick e seus ensaios sobre Agamben, Drummond, Augusto de Campos, Paulo Leminski, João Alexandre Barbosa e o livro Jardim de Camaleões, de Claudio Daniel, e ainda o ensaio A aceitação do difícil.

 

Leia um ensaio de Ronald Polito sobre André Dick.

*

 

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